Dizer o Direito

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

O sócio devedor tem legitimidade e interesse para impugnar desconsideração inversa da personalidade jurídica?

 

NOÇÕES GERAIS SOBRE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

Princípio da autonomia patrimonial

As pessoas jurídicas são sujeitos de direitos. Isso significa que possuem personalidade jurídica distinta de seus instituidores. Assim, por exemplo, não é porque o sócio morreu que, obrigatoriamente, a pessoa jurídica será extinta.

De igual modo, o patrimônio da pessoa jurídica é diferente do patrimônio de seus sócios.

Ex.1: se uma sociedade empresária possui um veículo, esse automóvel não pertence aos sócios, mas sim à própria pessoa jurídica.

Ex.2: se uma sociedade empresária possui uma dívida, este débito deverá ser pago com os bens da própria sociedade, não podendo, para isso, em regra, ser utilizado o patrimônio pessoal dos sócios.

Vigora, portanto, o princípio da autonomia patrimonial entre os bens do sócio e da pessoa jurídica.

 

Desconsideração da personalidade jurídica

O ordenamento jurídico prevê algumas situações em que essa autonomia patrimonial pode ser afastada.

Tais hipóteses são chamadas de “desconsideração da personalidade jurídica” (disregard of legal entity ou teoria do superamento da personalidade jurídica).

Quando se aplica a desconsideração da personalidade jurídica, os bens particulares dos administradores ou sócios são utilizados para pagar dívidas da pessoa jurídica.

 

Desconsideração da personalidade jurídica no CC-2002

A desconsideração da personalidade jurídica, no âmbito das relações civis gerais, está disciplinada no art. 50 do CC:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (Redação dada pela Lei 13.874/2019)

 

Desse modo, na desconsideração da personalidade jurídica, o juiz, mediante requerimento, autoriza que os bens particulares dos administradores ou sócios sejam utilizados para pagar as dívidas da pessoa jurídica, mitigando, assim, a autonomia patrimonial.

 

O que é desconsideração INVERSA da personalidade jurídica?

Na desconsideração inversa (ou invertida) da personalidade jurídica, o juiz, mediante requerimento, autoriza que os bens da pessoa jurídica sejam utilizados para pagar as dívidas dos sócios.

Segundo a Min. Nancy Andrigui, “a desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio.” (REsp 1.236.916-RS).

• Desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita: bens dos sócios/administradores são utilizados para pagar dívidas da pessoa jurídica.

• Desconsideração inversa da personalidade jurídica: bens da pessoa jurídica são utilizados para pagar dívidas dos sócios.

Os exemplos mais citados pelos livros sobre desconsideração inversa estão no campo do Direito de Família. É o caso de um marido (ou companheiro) que transfere todos os seus bens para a sociedade empresária a fim de não ter que dividir seu patrimônio no divórcio ou dissolução da união estável.

 

A desconsideração inversa é admitida no direito brasileiro?

SIM. A possibilidade de desconsideração inversa sempre foi admitida pela doutrina e jurisprudência e, desde 2019, encontra-se expressamente prevista no § 3º do art. 50 do Código Civil:

Art. 50 (...)

§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874/2019)

 

Regras processuais sobre a desconsideração da personalidade jurídica

O CPC/2015 trouxe regras para disciplinar o procedimento para a decretação ou não da desconsideração da personalidade jurídica no processo.

O Código previu que essa desconsideração poderá ser postulada de duas formas:

a) em caráter principal, quando o pedido é formulado já na petição inicial;

b) em caráter incidental, quando o pedido é feito no curso do processo.

 

EXPLICAÇÃO DO JULGADO

Imagine a seguinte situação hipotética:

João ajuizou ação de cobrança contra Pedro.

O pedido foi julgado procedente, condenado o réu a pagar R$ 200 mil em favor do autor.

João iniciou o cumprimento de sentença.

Não foram encontradas contas bancárias nem bens veículos ou imóveis em nome de Pedro.

O exequente achou estranho já que Pedro é sócio de uma empresa (Alfa Ltda).

Diante disso, João pediu a instauração de incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica, nos termos do art. 133 do CPC:

Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.

§ 1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.

§ 2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.

 

Assim, João pediu para que a dívida fosse paga com o patrimônio da sociedade empresária, da qual Pedro é sócio majoritário.

O instaurou o incidente e determinou a citação da pessoa jurídica (Alfa) para se manifestar (art. 135 do CPC).

Concluída a instrução, juiz autorizou a desconsideração inversa da personalidade jurídica, considerando que ficou demonstrado o abuso da personalidade jurídica em razão de confusão patrimonial (art. 50 do Código Civil).

 

Agravo de instrumento

Pedro, o sócio executado, interpôs agravo de instrumento impugnando essa decisão.

Vale ressaltar que cabe agravo de instrumento, neste caso, por força de previsão expressa do art. 1.015, IV, do CPC:

Art. 1.015. Cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre:

(...)

IV - incidente de desconsideração da personalidade jurídica;

 

Em contrarrazões, João sustentou que Pedro não teria legitimidade nem interesse recursal. Isso porque, com a decisão, os bens que serão atingidos serão da empresa em vez dos bens pessoais de Pedro. Logo, só quem teria legitimidade e interesse para impugnar a decisão seria a empresa Alfa, que terá seu patrimônio atingido.

 

O que decidiu o STJ? Pedro possui legitimidade e interesse para impugnar a decisão?

SIM.

De acordo com a literalidade dos arts. 133 e seguintes do CPC, apenas a parte que tiver seu patrimônio atingido pela desconsideração é que integrará o polo passivo do incidente, sem a necessidade de intimar o devedor, uma vez que, em razão da autonomia patrimonial da sociedade empresária e de seus sócios, não haverá confusão patrimonial entre os patrimônios destes, os quais responderão individualmente pelas dívidas contraídas. Assim, se fossemos adotar a literalidade do CPC, realmente o devedor (no caso, Pedro) não teria legitimidade para figurar no incidente nem para recorrer.

Ocorre que, não obstante a autonomia da pessoa jurídica e dos sócios, essa autonomia só existe por força da vontade dos sócios da pessoa jurídica que decidem se associar (a denominada affectio societatis), tanto é assim que, se houver a quebra desse vínculo, também haverá a dissolução da sociedade.

Além disso, conforme explica Fernando Gajardoni, existe interesse jurídico do devedor originário, pois, havendo o acolhimento do pleito de desconsideração e sendo a dívida paga com patrimônio de terceiro (em nosso exemplo, a empresa), surge para este o direito de regresso em face do devedor originário (Comentários ao Código de Processo Civil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 205).

Logo, é razoável que o sócio devedor integre o incidente de desconsideração inversa e possa recorrer em caso de deferimento da desconsideração considerando que possui interesse jurídico.

Ressalte-se ainda que, mesmo que o devedor não tenha figurado como litisconsorte no incidente de desconsideração, ele poderá intervir no feito na condição de assistente, dado o seu manifesto interesse jurídico (RODRIGUES, Daniel Colnago. Intervenção de terceiros. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 102-104).

 

Em suma:

O sócio executado possui legitimidade e interesse recursal para impugnar a decisão que defere o pedido de desconsideração inversa da personalidade jurídica dos entes empresariais dos quais é sócio.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.980.607-DF, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 09/08/2022 (Info 744).



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