quinta-feira, 17 de novembro de 2022
O simples fato de o passaporte do executado estar apreendido é suficiente para se determinar a sua devolução?
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João foi condenado a pagar R$ 100
mil em favor de Pedro.
Como não houve pagamento
voluntário, Pedro iniciou o cumprimento de sentença.
Tentou-se a penhora de bens do
devedor, mas não se encontrou nada em seu nome.
A despeito disso, João
constantemente aparecia nas redes sociais fazendo viagens internacionais.
Diante desse cenário, em 2019, Pedro
requereu ao juízo a suspensão do passaporte do executado até que ele pague a
dívida. O juiz deferiu o pedido.
Primeira pergunta: isso é
possível? Em tese, é possível que o juiz, no cumprimento de sentença ou em um
processo autônomo de execução comum, determine a suspensão do passaporte e da
CNH do executado?
SIM. Tais providências são
classificadas como medidas executivas atípicas (meios executivos atípicos).
A adoção de meios executivos atípicos é cabível desde que
cumpridos os seguintes requisitos:
• existam indícios de que o devedor possui patrimônio
expropriável (bens que podem ser penhorados);
• essas medidas atípicas sejam adotadas de modo subsidiário;
• a decisão judicial que a determinar contenha fundamentação
adequada às especificidades da hipótese concreta;
• sejam observados o contraditório substancial e o postulado da
proporcionalidade.
STJ. 3ª Turma. REsp 1788950/MT, Rel. Min. Nancy Andrighi,
julgado em 23/04/2019.
Efetividade do processo,
princípio do resultado na execução e atipicidade das medidas executivas
O principal fundamento para isso seria o art. 139, IV, do
CPC/2015, que representou uma importante novidade do Código e que teve por
objetivo dar mais efetividade ao processo:
Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as
disposições deste Código, incumbindo-lhe:
(...)
IV - determinar todas as medidas
indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para
assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por
objeto prestação pecuniária;
No caso do processo de execução,
a adoção de medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias
apresenta-se como um importante instrumento para permitir a satisfação da
obrigação que está sendo cobrada (obrigação exequenda). Com isso, podemos dizer
que esse dispositivo homenageia (prestigia) o “princípio do resultado na
execução”.
As medidas executivas atípicas,
sobretudo as coercitivas, não são penalidades judiciais impostas ao devedor,
pois, se assim fossem, implicariam obrigatoriamente em quitação da dívida após
o cumprimento da referida pena, o que não ocorre.
Por esse motivo, é correto dizer
que essas medidas também não representam uma superação do dogma da
patrimonialidade da execução, uma vez que são os bens - e apenas os bens - do
devedor que respondem pelas suas dívidas. Não se deve confundir, todavia,
patrimonialidade da execução com a possibilidade de imposição de restrições
pessoais como método para dobrar a recalcitrância do devedor.
Voltando ao caso concreto:
depois de 2 anos, João impetrou habeas corpus alegando que as medidas
coercitivas atípicas não poderiam ser impostas por tempo indeterminado sem
justificativa plausível. Como já se passou muito tempo, seria o caso de liberar
novamente o passaporte. Na situação concreta, o STJ acolheu esse argumento?
NÃO.
As medidas coercitivas atípicas
devem ser deferidas e mantidas enquanto conseguirem operar, sobre o devedor,
restrições pessoais capazes de incomodar e suficientes para tirá-lo da zona de
conforto, especialmente no que se refere aos seus deleites, aos seus banquetes,
aos seus prazeres e aos seus luxos, todos bancados pelos credores.
Não há uma fórmula mágica nem
deve haver um tempo pré-estabelecido para a duração de uma medida coercitiva.
Esta deve perdurar, portanto, pelo tempo suficiente para dobrar (fazer ceder) a
renitência do devedor. O objetivo é convencer o executado de que é mais
vantajoso adimplir a obrigação do que, por exemplo, não poder realizar viagens
internacionais.
O devedor argumenta que está em situação
de miserabilidade, não sendo possível adimplir as suas dívidas. Ao mesmo tempo,
ele pede a liberação do passaporte. Essas posturas são contraditórias. Isso
porque ou bem o devedor realmente se encontra em situação de penúria financeira
e não reúne condições de satisfazer a dívida (e, nessa hipótese, a suspensão do
passaporte será duplamente inócua, como técnica coercitiva e porque o documento
apenas ficará sob a posse do devedor no Brasil, diante da impossibilidade de
custear viagens internacionais) ou o devedor está realmente ocultando
patrimônio e terá revogada a suspensão tão logo quite as suas dívidas.
Em suma:
STJ. 3ª Turma. HC 711.194-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Rel.
Acd. Min. Nancy Andrighi, julgado em 21/06/2022 (Info 749).
DOD Plus –
não confundir
Na execução fiscal não cabe
a retenção de passaporte ou a suspensão da CNH como forma de compelir o
executado a pagar o débito
A lógica de mercado não se aplica às execuções fiscais, pois o
Poder Público já é dotado, pela Lei nº 6.830/80, de privilégios processuais.
Assim, são excessivas as medidas atípicas aflitivas pessoais,
tais como a suspensão de passaporte e da licença para dirigir, quando aplicadas
no âmbito de execução fiscal.
STJ. 1ª Turma. HC 453.870-PR, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia
Filho, julgado em 25/06/2019 (Info 654).
São cabíveis medidas
executivas atípicas, de cunho não patrimonial, no cumprimento de sentença
proferida em ação de improbidade administrativa
É cabível a apreensão de passaporte e a suspensão da CNH no bojo
do cumprimento de sentença proferida em ação de improbidade administrativa.
Em regra, a jurisprudência do STJ entende ser possível a
aplicação de medidas executivas atípicas na execução e no cumprimento de
sentença comum, desde que, verificando-se a existência de indícios de que o
devedor possua patrimônio expropriável, tais medidas sejam adotadas de modo subsidiário,
por meio de decisão que contenha fundamentação adequada às especificidades da
hipótese concreta, com observância do contraditório substancial e do postulado
da proporcionalidade.
Na ação de improbidade administrativa, com ainda mais razão, há
a possibilidade de aplicação das medidas executivas atípicas, pois se tutela a
moralidade e o patrimônio público. No que diz respeito à proporcionalidade, o
fato de se tratar de uma ação de improbidade administrativa deve ser levado em
consideração na análise do cabimento da medida aflitiva não pessoal no caso
concreto, já que envolve maior interesse público.
STJ. 2ª Turma, REsp 1929230-MT, Rel. Min. Herman Benjamin,
julgado em 04/05/2021 (Info 695).