No Brasil, existe a responsabilidade
penal das pessoas jurídicas por crimes ambientais?
SIM. O art. 225, § 3º, CF/88 prevê o seguinte:
Art. 225 (...) § 3º As condutas e
atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores,
pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,
independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
A Lei nº 9.605/98, regulamentando o dispositivo constitucional,
estabeleceu:
Art. 3º As pessoas jurídicas serão
responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta
Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante
legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da
sua entidade.
Parágrafo único. A responsabilidade
das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou
partícipes do mesmo fato.
Vale ressaltar que é possível a responsabilização
penal da pessoa jurídica por delitos ambientais independentemente da
responsabilização concomitante da pessoa física que agia em seu nome:
É possível a responsabilização penal da pessoa jurídica por
crimes ambientais independentemente da responsabilização concomitante da pessoa
física que a represente.
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp n. 1.988.504/RN, Rel. Min. Ribeiro
Dantas, julgado em 14/6/2022.
Assim, a jurisprudência do STF e do STJ não mais adota a
chamada teoria da “dupla imputação”, antiga posição segundo a qual a pessoa
jurídica somente poderia ser punido se em conjunto com uma pessoa física. Veja
como o tema é cobrado em provas:
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(Vunesp/PGM/Ribeirão Preto/Procurador/2019) Atualmente, tanto o STF como o STJ
consideram a necessidade de dupla imputação, tanto da pessoa física, que
praticou o ato, como da pessoa jurídica, em crimes ambientais praticados por
pessoas jurídicas. (errado)
Feitos esses esclarecimentos, veja
o seguinte caso concreto julgado pelo:
O Ministério Público do Estado do
Paraná ajuizou ação penal contra uma empresa (Agrícola Jandele S.A.) imputando-lhe o delito tipificado no art. 54,
§ 2º, V, da Lei nº 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais) porque ela teria causado
poluição mediante lançamento de resíduos sólidos (derivados de milho e soja) em
desconformidade com as exigências contidas na legislação estadual.
A denúncia foi recebida em 24/08/2018.
Algum tempo depois, a Agrícola
Jandele foi incorporada por outra empresa (Seara Alimentos Ltda.). Isso
significa que a Agrícola Jandele foi absorvida pela Seara Alimentos e deixou de
existir.
O art. 227 da Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404/76)
nos esclarece em que consiste a incorporação:
Art. 227. A incorporação é a operação
pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em
todos os direitos e obrigações.
No mesmo sentido é o art. 1.116 do Código Civil:
Art. 1.116. Na incorporação, uma ou várias
sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e
obrigações, devendo todas aprová-la, na forma estabelecida para os respectivos
tipos.
Desse modo, juridicamente, a Agrícola Jandele, ao ser
incorporada, deixou de existir, conforme prevê o art. 219, II, da Lei nº
6.404/76:
Art. 219. Extingue-se a companhia:
(...)
II - pela incorporação ou fusão, e
pela cisão com versão de todo o patrimônio em outras sociedades.
Diante disso, a Seara Alimentos
impetrou mandado de segurança suscitando a tese de extinção da punibilidade,
porque a ré originária da ação penal (Agrícola Jandelle S.A.) foi incorporada
pela impetrante, com o encerramento de sua personalidade jurídica.
Logo, pediu para que se aplicasse, por analogia, o art. 107,
I, do Código Penal, e que fosse extinta a punibilidade:
Art. 107. Extingue-se a punibilidade:
I - pela morte do agente;
(...)
A impetrante argumentou que ela (Seara Alimentos), apesar de
ter incorporado a ré, não pode ser responsabilizada penalmente porque se trata
de pessoa jurídica distinta. Se ela fosse responsabilizada criminalmente pela
conduta de outra pessoa, isso afrontaria o princípio da intranscendência da
pena, previsto no art. 5º, XLV da Constituição e no 13 do Código Penal:
Art. 5º (...)
XLV - nenhuma pena passará da pessoa
do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento
de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles
executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;
Art. 13. O resultado, de que depende a
existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. (...)
O Tribunal de Justiça do Paraná
concordou com a tese e extinguiu a punibilidade.
O Ministério Público, contudo,
interpôs recurso especial alegando que:
a) o princípio da intranscendência ou
pessoalidade da pena atinge o ser humano, não o ente coletivo, não se podendo
considerar extinta a punibilidade do ente coletivo com sua incorporação,
condenado ou sob persecução, sob pena de aniquilar-se os fins preventivos do
direito penal da pessoa jurídica;
b) o inciso XLV do artigo 5º da
Constituição da República se refere à ideia da intranscendência da pena,
todavia a CF/88 admite que sanções patrimoniais possam ir além, alcançando seus
sucessores até o valor do patrimônio transferido;
c) o artigo 4º da Lei 9.605/98 prevê a
desconsideração da pessoa jurídica, caso ela seja obstáculo ao ressarcimento de
prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.
O STJ deu provimento ao recurso do MP?
NÃO.
As responsabilidades civil e
administrativa podem ser transferidas para a empresa incorporadora
A incorporadora sucede a empresa
incorporada, assumindo seus direito e obrigações. Contudo, somente os direitos
e obrigações compatíveis com a natureza da incorporação.
A obrigação é uma relação de
caráter patrimonial, que permite exigir de alguém uma prestação
(RIZZARDO, Arnaldo. Direito das obrigações. 9ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2018, p. 4).
O ilícito ambiental praticado, em
tese, pela Agrícola Jandelle acarreta responsabilização cível, penal e
administrativa.
A responsabilidade reparar o dano
ambiental na esfera cível ou administrativa gera obrigações que podem ser transferidas
para a empresa incorporadora. Em tais relações, de natureza indiscutivelmente
patrimonial, é possível identificar todos os elementos que estruturam uma
obrigação, a saber: (I) as partes ativa e passiva (elemento subjetivo), (II) o
objeto, que consiste em prestações patrimoniais de dar ou fazer, e (III) o
vínculo jurídico que os une (a responsabilidade civil decorrente da lei, nessa
situação hipotética). Por conseguinte, as obrigações reparatórias derivadas do
ato ilícito descrito na denúncia podem ser redirecionadas (em tese), nos exatos
limites dos arts. 1.116 do CC/2002 e 227 da Lei nº 6.404/76.
A responsabilidade penal
não pode ser transferida
A pretensão punitiva estatal pela
prática do crime tipificado no art. 54 da Lei nº 9.605/98 não se enquadra no
conceito de obrigação e não pode ser transmitida.
As sanções criminais não se
equiparam a obrigações cíveis, porque o fundamento jurídico de sua incidência é
distinto.
Na relação entre o Ministério
Público e o réu em uma ação penal, não existem os três elementos obrigacionais
há pouco referenciados, justamente porque a pretensão punitiva criminal não é
uma obrigação, dela divergindo em suas fontes, estruturas e consequências.
No aspecto estrutural, o vínculo
das obrigações recai sobre o patrimônio do devedor (art. 798 do CPC), enquanto
a pretensão punitiva sujeita não só os bens do acusado, mas também sua
liberdade e, em casos extremos, sua própria vida (art. 5º, XLVII, “a”, da CF/88)
à potestade estatal.
Essa severidade adicional do
braço sancionador do Estado justifica outra diferença nas estruturas da
obrigação e da pretensão punitiva: enquanto a obrigação, sem atravessar a crise
do inadimplemento, pode ser espontaneamente cumprida pelo devedor, a pretensão
punitiva sequer é tecnicamente adimplível.
O autor de um delito não pode,
ele próprio, reconhecer a prática do crime e privar-se de sua liberdade com uma
pena reclusiva, sendo imprescindível a intermediação do Poder Judiciário para a
imposição de sanções criminais - e isso mesmo nos casos em que o sistema
jurídico permite negociações entre acusação e defesa a seu respeito, como nos
acordos de colaboração premiada, regidos pela Lei nº 12.850/2013.
Por fim, as consequências
jurídicas da obrigação e da pretensão punitiva são também distintas. Se de um
lado a obrigação reclama adimplemento (espontâneo ou forçado) ou resolução em
perdas e danos, a pretensão punitiva, de outro, gera a aplicação de pena quando
julgada procedente pelo Poder Judiciário.
Todas essas diferenciações
demonstram que não é possível enquadrar a pretensão punitiva na
transmissibilidade regida pelos arts. 1.116 do CC/2002 e 227 da Lei nº 6.404/76,
o que nos traz a uma conclusão intermediária: não há, no regramento jurídico da
incorporação, norma autorizadora da extensão da responsabilidade penal à
incorporadora por ato praticado pela incorporada.
Princípio da pessoalidade
ou transcendência
Ainda no aspecto consequencial, a pena (sanção penal) possui
um regramento próprio, com garantias específicas que não existem no campo do
direito das obrigações. Uma essas garantias é justamente o princípio da
pessoalidade ou intranscendência, previsto no art. 5º, XLV, da CF/88:
Art. 5º (...)
XLV - nenhuma pena passará da pessoa
do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do
perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra
eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;
Para o Ministério Púbico, esse princípio
não teria aplicação às pessoas jurídicas, destinando-se exclusivamente às
pessoas naturais.
O STJ, contudo, não acolheu esse argumento:
O princípio da intranscendência da pena, previsto no art. 5º,
XLV, da CR/1988, tem aplicação às pessoas jurídicas. Afinal, se o direito penal
brasileiro optou por permitir a responsabilização criminal dos entes coletivos,
mesmo com suas peculiaridades decorrentes da ausência de um corpo biológico,
não pode negar-lhes a aplicação de garantias fundamentais utilizando-se dessas
mesmas peculiaridades como argumento.
STJ. 3ª Seção. REsp 1.977.172-PR, Rel. Min. Ribeiro Dantas,
julgado em 24/08/2022 (Info 746).
Se houver fraude ou único
propósito de se isentar da pena, a solução pode ser distinta
Neste caso concreto apreciado
pelo STJ, a ação penal havia sido extinta pouco após o recebimento da denúncia,
muito antes da prolação da sentença. Logo, não havia qualquer indício de que a
incorporação pudesse ter sido utilizada como uma fraude para que a empresa se isentasse
de eventual responsabilização penal.
O STJ afirmou, contudo, que, se
ocorrer fraude na incorporação ou se a incorporação for verdadeira, mas apenas
realizada para se escapar do cumprimento da pena aplicada em sentença
definitiva, nestes casos, haverá evidente distinção do precedente acima
explicado, devendo ser aplicada consequência jurídica diversa.
Ocorrendo fraude na incorporação
ou incorporação verdadeira para fugir da pena, será possível, em tese, haver a desconsideração
ou ineficácia da incorporação em face do Poder Público, a fim de garantir o
cumprimento da pena.
Trata-se de soluções em tese
possíveis para evitar o esvaziamento da pretensão punitiva estatal, a serem
aprofundadas pelo Judiciário nas hipóteses sobreditas. O fundamental, neste
julgamento, é compreender que a situação dos autos não abrange fraude ou
incorporação com o fim de escapar a uma pena já aplicada, mesmo porque, repito,
a ação penal foi trancada pouco após o recebimento da denúncia. Se configurada
alguma dessas outras hipóteses, haverá distinção em relação ao precedente ora
firmado, com a necessária aplicação de consequência jurídica diversa.
Em suma:
STJ. 3ª Seção. REsp
1.977.172-PR, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 24/08/2022 (Info 746).