Dizer o Direito

domingo, 27 de novembro de 2022

O procedimento de dúvida suscitado por registrador imobiliário será julgado pela Justiça Federal caso envolva bens de autarquia pública federal

A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:

A Universidade Federal do Ceará – que tem natureza jurídica de autarquia pública federal – protocolizou na serventia (“cartório”) do Registro Imobiliário de Fortaleza (CE) pedido de unificação de dois imóveis com abertura de uma matrícula para o terreno unificado.

O Titular do Registro Imobiliário entendeu que a Universidade precisava realizar algumas providências antes de ser possível atender o requerimento. Diante disso, expediu uma “nota devolutiva” na qual expôs os motivos pelos quais não seria possível efetuar a unificação pretendida naquele momento.

A autarquia federal não concordou com as exigência feitas pelo Oficial do Registro afirmando que elas não estariam previstas na legislação.

 

O que fazer diante desta situação de impasse?

A apresentante do título (no caso, a UFC – autarquia federal) deverá requerer ao Oficial do Registro que ele suscite “dúvida” e encaminhe a questão para que o Juiz decida se a exigência é devida ou não.

Inicia-se, aqui, o chamado procedimento de dúvida.

 

O que é o procedimento de dúvida?

A dúvida é um procedimento administrativo iniciado pelo titular da serventia extrajudicial, a requerimento do apresentante, nas situações em que houver divergência sobre alguma exigência que seja feita pelo Oficial e com a qual o apresentante não concorde. Neste caso, esta discordância deverá ser encaminhada ao juiz competente (em regra, o Juiz da Vara de Registros Públicos) para que este decida sobre a legalidade da exigência que foi feita pelo titular como condição para o registro.

Vale ressaltar que as exigências do Oficial devem ser feitas por escrito. A isso chamamos de “nota de devolução” (ou “nota devolutiva”).

 

Quem suscita a dúvida?

O Oficial (Registrador). É ele quem suscita a dúvida (a requerimento do interessado).

 

Denominação

O termo “dúvida” é utilizado pela legislação. No entanto, vale ressaltar que dúvida, aqui, não está empregada no sentido de ignorância. Em outras palavras, o Oficial não suscita a dúvida porque ele não sabe o que fazer, ou seja, por estar em dúvida. Não é isso. Ele sabe o que fazer, exige determinado documento do apresentante, mas este não concorda. Daí se inicia o procedimento. Assim, a palavra “dúvida” é utilizada no sentido de “objeção, discordância, impugnação”.

 

Procedimento

Encontra-se previsto no art. 198 da Lei nº 6.015/73:

Art. 198. Se houver exigência a ser satisfeita, ela será indicada pelo oficial por escrito, dentro do prazo previsto no art. 188 desta Lei e de uma só vez, articuladamente, de forma clara e objetiva, com data, identificação e assinatura do oficial ou preposto responsável, para que:   (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022)

I - (revogado);   (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022)

II - (revogado);   (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022)

III - (revogado);    (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022)

IV - (revogado);   (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022)

V - o interessado possa satisfazê-la; ou   (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

VI - caso não se conforme ou não seja possível cumprir a exigência, o interessado requeira que o título e a declaração de dúvida sejam remetidos ao juízo competente para dirimi-la.   (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

 

§ 1º O procedimento da dúvida observará o seguinte: (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

I - no Protocolo, o oficial anotará, à margem da prenotação, a ocorrência da dúvida;    (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

II - após certificar a prenotação e a suscitação da dúvida no título, o oficial rubricará todas as suas folhas;   (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

III - em seguida, o oficial dará ciência dos termos da dúvida ao apresentante, fornecendo-lhe cópia da suscitação e notificando-o para impugná-la perante o juízo competente, no prazo de 15 (quinze) dias; e   (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

IV - certificado o cumprimento do disposto no inciso III deste parágrafo, serão remetidos eletronicamente ao juízo competente as razões da dúvida e o título.    (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

 

§ 2º A inobservância do disposto neste artigo ensejará a aplicação das penas previstas no art. 32 da Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, nos termos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça.   (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

 

Caso o interessado não impugne a dúvida no prazo de 15 dias: não há problema

Art. 199. Se o interessado não impugnar a dúvida no prazo referido no item III do artigo anterior, será ela, ainda assim, julgada por sentença.

  

Oitiva do MP (prazo: 10 dias)

Art. 200. Impugnada a dúvida com os documentos que o interessado apresentar, será ouvido o Ministério Público, no prazo de dez dias.

 

Diligências

Art. 201. Se não forem requeridas diligências, o juiz proferirá decisão no prazo de quinze dias, com base nos elementos constantes dos autos.

 

Produção de provas

Não é possível a dilação probatória, pois se trata de procedimento especial e sumário (posição da maioria da doutrina).

Assim, o exame de questões mais complexas, que envolvam produção de provas deverá ser resolvida pela jurisdicional adequada.

 

Sentença

A dúvida é decidida por sentença, que deverá ser prolatada no prazo de 15 dias.

Apesar de o art. 202 da LRP utilizar o nome “sentença”, a doutrina e a jurisprudência entendem que não se trata de uma sentença igual àquela prevista no art. 203, § 1º, do CPC/2015:

Art. 203 (...)

§ 1º Ressalvadas as disposições expressas dos procedimentos especiais, sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução.

 

A sentença do procedimento de dúvida (art. 202 da LRP) é um ato decisório administrativo, que não se reveste das mesmas características da sentença judicial, não resultando de quaisquer das hipóteses previstas nos arts. 485 e 487 do CPC/2015.

 

Juízo competente

O juízo competente é previsto na Lei de Organização Judiciária.

Em geral, é o Juiz da Vara de Registros Públicos.

A doutrina aponta uma situação excepcional em que o procedimento de dúvida será decidido por um Juiz Federal. Trata-se da hipótese prevista na Lei nº 5.972/73, que regula o procedimento para o registro da propriedade de bens imóveis discriminados administrativamente ou possuídos pela União. Obs: veja abaixo o que decidiu o STJ.

 

Resultado da sentença (art. 203):

Transitada em julgado a decisão da dúvida, proceder-se-á do seguinte modo:

I - se for julgada PROCEDENTE (o Oficial tinha razão): não é efetuado o registro.

Os documentos são devolvidos à parte, independentemente de translado, dando-se ciência da decisão ao Oficial, para que a consigne no Protocolo e cancele a prenotação.

 

II - se for julgada IMPROCEDENTE (o Oficial não tinha razão): é efetuado o registro.

O interessado apresentará, de novo, os seus documentos, com o respectivo mandado, ou certidão da sentença, que ficarão arquivados, para que, desde logo, se proceda ao registro, declarando o oficial o fato na coluna de anotações do Protocolo.

 

Recurso cabível contra a sentença: APELAÇÃO.

Aqui também é importante esclarecer que esta “apelação” prevista no procedimento de dúvida não é igual à apelação do art. 1.009 do CPC/2015.

A apelação do procedimento de dúvida (art. 202 da LRP) tem natureza administrativa e a apelação do CPC é recurso judicial.

 

Vamos voltar ao nosso caso concreto

O Registrador suscitou a dúvida e encaminhou o procedimento ao Juízo da Vara de Registros Públicos de Fortaleza (CE). Quando viu que havia interesse de autarquia federal, o magistrado declinou da competência para a Justiça Federal.

Distribuída a dúvida na Justiça Federal, o magistrado federal também se considerou incompetente e suscitou conflito negativo de competência, a ser dirimido pelo STJ (art. 105, I, “d”, da CF/88).

 

O que decidiu o STJ? Quem é competente para julgar esse procedimento administrativo de dúvida: o Juízo Estadual ou o Juízo Federal?

O Juízo federal.

O fundamento para isso está na interpretação ampliada do art. 3º da Lei nº 5.972/73, que regula o procedimento para o registro de bens imóveis da União. Confira:

Art. 3º Nos quinze dias seguintes à data do protocolo do requerimento da União, o Oficial do Registro verificará se o imóvel descrito se acha lançado em nome de outrem. Inexistindo registro anterior, o oficial procederá imediatamente à transcrição do decreto de que trata o artigo 2º, que servirá de título aquisitivo da propriedade do imóvel pela União. Estando o imóvel lançado em nome de outrem, o Oficial do Registro, dentro dos cinco dias seguintes ao vencimento daquele prazo, remeterá o requerimento da União, com a declaração de dúvida, ao Juiz Federal competente para decidi-la.

 

O STJ amplia a interpretação desse art. 3º em dois pontos:

• apesar de o dispositivo falar apenas em “União”, ele deve ser interpretado para que abranja também as demais pessoas jurídicas de direito público integrantes da Administração Pública Federal;

• o dispositivo disciplina a suscitação de dúvida baseada na existência de registro anterior em nome de terceiro. Mesmo não sendo o caso concreto, o STJ afirma que se deve aplicar o mesmo raciocínio porque o objetivo da norma é o de proteger o interesse federal que possa vir a ser atingido em razão da irregularidade no seu patrimônio imobiliário.

 

Em suma:

 

Em igual medida:

(...) 1. Tratando-se de pedido de abertura de matrícula, no Registro de Imóveis, de bem em nome da União, sobressalta o interesse desta, tanto mais que a eficácia atributiva de propriedade do registro implica em a decisão influir no domínio federal.

2. À luz do sistema constitucional de prerrogativas da União, a decisão de qualquer procedimento judicial que possa infirmar o seu domínio deve tramitar na Justiça Federal, consoante a ratio essendi da Súmula 150 do STJ. (...)

STJ. 1ª Seção. CC 32.584/RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, relator para acórdão Min. Luiz Fux, julgado em 11/12/2002.

 

 


Print Friendly and PDF