Dizer o Direito

sábado, 5 de novembro de 2022

O acesso ao chip telefônico descartado pelo acusado em via pública não se qualifica como quebra de sigilo telefônico

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João praticou um roubo contra uma pessoa em via pública.

O crime foi presenciado por policiais militares que estavam em uma viatura e iniciaram perseguição para prender o sujeito.

Durante a fuga, João jogou fora um simulacro de arma de fogo, um aparelho celular e um chip de operadora de telefonia, objetos recolhidos pelos policiais em via pública.

Na Delegacia, o chip foi inserido em outro aparelho de celular, ocasião em que se constatou que o chip pertencia à Regina.

Regina foi chamada na Delegacia e relatou que havia sido vítima de roubo e reconheceu João como sendo o autor do crime.

Ao serem ouvidos pelo Delegado, os policiais militares relataram que é muito comum a retirada do chip dos celulares roubados para dificultar a identificação dos proprietários.

Em razão disso, João foi denunciado.

A defesa alegou a nulidade dos elementos informativos que embasaram a denúncia com base em três supostas ilegalidades:

I) busca pessoal realizada sem justa causa;

II) quebra de sigilo telefônico sem autorização judicial; e

III) reconhecimento pessoal em desacordo com as diretrizes do art. 226 e seguintes do CPP.

 

Os argumentos da defesa foram acolhidos pelo STJ?

NÃO.

 

I) havia justa causa para a busca pessoal

O art. 244 do CPP trata sobre a busca pessoal nos seguintes termos:

Art. 244.  A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

 

Conforme prevê o art. 244 do CPP, a busca pessoal independerá de mandado quando houver prisão ou fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida, objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou ainda quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar. (STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp 1403409/RS, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 26/03/2019, DJe 04/04/2019).

No caso, os policiais visualizaram o delito de roubo sendo praticado pelo réu em via pública e o perseguiu, tendo ele empreendido fuga. Após contínua perseguição, o indivíduo foi alcançado.

Assim, não há se falar em nulidade da busca pessoal quando o acusado é preso em flagrante impróprio, considerando que, neste caso, indiscutivelmente, há fundada suspeita do cometimento do delito.

O flagrante impróprio é aquele que ocorre quando o agente é perseguido, logo após o crime, em situação que faça presumir ser autor da infração penal. Está descrito no art. 302, III, do CPP:

Art. 302.  Considera-se em flagrante delito quem:

(...)

III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;

 

Primeira conclusão:

Não há se falar em nulidade da busca pessoal quando o acusado é preso em flagrante impróprio, após perseguição policial, pois indubitavelmente há situação de fundada suspeita do cometimento do delito.

STJ. 5ª Turma. HC 720.605-PR, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 09/08/2022 (Info 744).

 

II) não houve quebra de sigilo telefônico

Conforme já explicado, durante a fuga, o acusado dispensou (descartou) um simulacro de arma de fogo, um aparelho celular e um chip de operadora de telefonia, objetos esses encontrados em via pública.

Apreendido o chip descartado pelo acusado, houve a inserção em outro aparelho telefônico pela polícia para fins de possível identificação da vítima lesada, o que de fato ocorreu. Ocorre que a vítima não era proprietária do celular descartado, mas somente do chip.

A defesa sustentou que o aparelho pertencia ao próprio acusado.

Contudo, verificou-se que o aparelho telefônico não foi examinado. Assim, ainda que o celular fosse de propriedade do acusado, não houve extração de nenhum dado do aparelho, pois o alvo de análise foi apenas o chip telefônico descartado, que de fato era de uma das vítimas.

Logo, não houve quebra de sigilo telefônico.

Hipótese distinta seria se o celular fosse acessado pelos policiais e alguma informação retirada e utilizada em desfavor do acusado, o que não ocorreu.

Dessa forma, o STJ não admitiu a tese defensiva no sentido de suposta violação de sigilo telefônico, uma vez que não encontrou amparo no contexto fático narrado nos autos.

Segunda conclusão:

O acesso ao chip telefônico descartado pelo acusado em via pública não se qualifica como quebra de sigilo telefônico.

STJ. 5ª Turma. HC 720.605-PR, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 09/08/2022 (Info 744).

 

III) reconhecimento pessoal e diretrizes do art. 226 CPP

A defesa argumentou que houve reconhecimento pessoal do acusado sem a observância das formalidades do art. 226 do CPP, o que torna inválido o ato:

Art. 226.  Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;

II - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;

IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

Parágrafo único.  O disposto no nº III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.

 

A posição atual do STJ sobre o art. 226 do CPP é a seguinte:

O reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia, realizado na fase do inquérito policial, apenas é apto para identificar o réu e fixar a autoria delitiva quando observadas as formalidades previstas no art. 226 do Código de Processo Penal e quando corroborado por outras provas colhidas na fase judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa.

STJ. 5ª Turma. HC 652.284/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 27/4/2021.

 

Em precedente ainda mais recente, pontuou o STF no seguinte sentido:

A desconformidade ao regime procedimental determinado no art. 226 do CPP deve acarretar a nulidade do ato e sua desconsideração para fins decisórios, justificando-se eventual condenação somente se houver elementos independentes para superar a presunção de inocência.

STF. 2ª Turma. RHC 206846/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 22/2/2022.

 

No caso dos autos, a autoria não está baseado somente no reconhecimento realizado em sede de inquérito e confirmado em juízo, mas no conjunto de provas produzidas, merecendo destaque o fato de o réu ter sido flagrado no momento do delito, sendo perseguido, ocasião em que inclusive dispensou o simulacro de arma de fogo. Assim, diante da existência de outras provas independentes, não deve ser acolhida a pretensão defensiva.

 

Terceira conclusão:

Estabelecida a autoria através de outras provas independentes, que não apenas o reconhecimento realizado em sede de inquérito e confirmado em juízo, afasta-se a alegação de nulidade da condenação por violação do art. 226 do CPP.

STJ. 5ª Turma. HC 720.605-PR, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 09/08/2022 (Info 744).



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