Imagine a seguinte situação
hipotética:
João praticou um roubo contra uma
pessoa em via pública.
O crime foi presenciado por
policiais militares que estavam em uma viatura e iniciaram perseguição para
prender o sujeito.
Durante a fuga, João jogou fora um
simulacro de arma de fogo, um aparelho celular e um chip de operadora de
telefonia, objetos recolhidos pelos policiais em via pública.
Na Delegacia, o chip foi inserido
em outro aparelho de celular, ocasião em que se constatou que o chip pertencia à
Regina.
Regina foi chamada na Delegacia e
relatou que havia sido vítima de roubo e reconheceu João como sendo o autor do
crime.
Ao serem ouvidos pelo Delegado,
os policiais militares relataram que é muito comum a retirada do chip dos
celulares roubados para dificultar a identificação dos proprietários.
Em razão disso, João foi denunciado.
A defesa alegou a nulidade dos
elementos informativos que embasaram a denúncia com base em três supostas
ilegalidades:
I) busca pessoal realizada sem
justa causa;
II) quebra de sigilo telefônico
sem autorização judicial; e
III) reconhecimento pessoal em
desacordo com as diretrizes do art. 226 e seguintes do CPP.
Os argumentos da defesa
foram acolhidos pelo STJ?
NÃO.
I) havia justa causa para a
busca pessoal
O art. 244 do CPP trata sobre a busca pessoal nos seguintes
termos:
Art. 244. A busca pessoal independerá de mandado, no
caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na
posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito,
ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.
Conforme prevê o art. 244 do CPP,
a busca pessoal independerá de mandado quando houver prisão ou fundada suspeita
de que a pessoa esteja na posse de arma proibida, objetos ou papéis que
constituam corpo de delito, ou ainda quando a medida for determinada no curso
de busca domiciliar. (STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp 1403409/RS, Rel. Min. Rogério
Schietti Cruz, julgado em 26/03/2019, DJe 04/04/2019).
No caso, os policiais
visualizaram o delito de roubo sendo praticado pelo réu em via pública e o
perseguiu, tendo ele empreendido fuga. Após contínua perseguição, o indivíduo
foi alcançado.
Assim, não há se falar em
nulidade da busca pessoal quando o acusado é preso em flagrante impróprio, considerando
que, neste caso, indiscutivelmente, há fundada suspeita do cometimento do
delito.
O flagrante impróprio é aquele que ocorre quando o agente é
perseguido, logo após o crime, em situação que faça presumir ser autor da
infração penal. Está descrito no art. 302, III, do CPP:
Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:
(...)
III - é perseguido, logo após,
pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça
presumir ser autor da infração;
Primeira conclusão:
Não há se falar em nulidade da busca
pessoal quando o acusado é preso em flagrante impróprio, após perseguição
policial, pois indubitavelmente há situação de fundada suspeita do cometimento
do delito.
STJ.
5ª Turma. HC 720.605-PR, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 09/08/2022 (Info
744).
II) não houve quebra de
sigilo telefônico
Conforme já explicado, durante a
fuga, o acusado dispensou (descartou) um simulacro de arma de fogo, um aparelho
celular e um chip de operadora de telefonia, objetos esses
encontrados em via pública.
Apreendido o chip descartado
pelo acusado, houve a inserção em outro aparelho telefônico pela polícia para
fins de possível identificação da vítima lesada, o que de fato ocorreu. Ocorre
que a vítima não era proprietária do celular descartado, mas somente do chip.
A defesa sustentou que o aparelho
pertencia ao próprio acusado.
Contudo, verificou-se que o
aparelho telefônico não foi examinado. Assim, ainda que o celular fosse de
propriedade do acusado, não houve extração de nenhum dado do aparelho, pois o
alvo de análise foi apenas o chip telefônico descartado, que de fato
era de uma das vítimas.
Logo, não houve quebra de sigilo
telefônico.
Hipótese distinta seria se o
celular fosse acessado pelos policiais e alguma informação retirada e utilizada
em desfavor do acusado, o que não ocorreu.
Dessa forma, o STJ não admitiu a
tese defensiva no sentido de suposta violação de sigilo telefônico, uma vez que
não encontrou amparo no contexto fático narrado nos autos.
Segunda conclusão:
STJ. 5ª
Turma. HC 720.605-PR, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 09/08/2022 (Info
744).
III) reconhecimento pessoal
e diretrizes do art. 226 CPP
A defesa argumentou que houve reconhecimento pessoal do
acusado sem a observância das formalidades do art. 226 do CPP, o que torna
inválido o ato:
Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o
reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I - a pessoa que tiver de fazer o
reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
II
- a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao
lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem
tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
III - se houver razão para recear
que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra
influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a
autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
IV - do ato de reconhecimento
lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada
para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
Parágrafo único. O disposto no nº III deste artigo não terá
aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.
A posição atual do STJ sobre o
art. 226 do CPP é a seguinte:
O reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por
fotografia, realizado na fase do inquérito policial, apenas é apto para
identificar o réu e fixar a autoria delitiva quando observadas as formalidades
previstas no art. 226 do Código de Processo Penal e quando corroborado por
outras provas colhidas na fase judicial, sob o crivo do contraditório e da
ampla defesa.
STJ. 5ª Turma.
HC 652.284/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em
27/4/2021.
Em precedente ainda mais recente,
pontuou o STF no seguinte sentido:
A desconformidade ao regime procedimental determinado no
art. 226 do CPP deve acarretar a nulidade do ato e sua desconsideração para
fins decisórios, justificando-se eventual condenação somente se houver
elementos independentes para superar a presunção de inocência.
STF. 2ª Turma. RHC 206846/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes,
julgado em 22/2/2022.
No caso dos autos, a autoria não
está baseado somente no reconhecimento realizado em sede de inquérito e
confirmado em juízo, mas no conjunto de provas produzidas, merecendo destaque o
fato de o réu ter sido flagrado no momento do delito, sendo perseguido, ocasião
em que inclusive dispensou o simulacro de arma de fogo. Assim, diante da
existência de outras provas independentes, não deve ser acolhida a pretensão
defensiva.
Terceira conclusão:
Estabelecida a autoria através de
outras provas independentes, que não apenas o reconhecimento realizado em sede
de inquérito e confirmado em juízo, afasta-se a alegação de nulidade da
condenação por violação do art. 226 do CPP.
STJ.
5ª Turma. HC 720.605-PR, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 09/08/2022 (Info
744).