Imagine a seguinte situação
hipotética:
João inscreveu-se em concurso
público e, para fins de cota, declarou-se como pardo.
Ele foi aprovado nas provas aplicadas
e obteve a 14ª posição nas cotas reservadas para candidatos autodeclarados
pretos ou pardos.
Foi então convocado para se submeter a
um procedimento chamado de “aferição da condição autodeclarada”, a ser
realizado por uma comissão especial.
Vale ressaltar que esse
procedimento estava previsto no edital.
Primeira pergunta: isso é
possível? O edital do concurso pode exigir que o candidato autodeclarado preto
ou pardo se submeta a uma banca de heteroidentificação?
SIM.
É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios
subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa
humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa.
STF. Plenário. ADC 41/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em
8/6/2017 (Info 868).
O critério da autodeclaração é,
em princípio, válido. Isso porque deve-se respeitar as pessoas tal como elas se
percebem. Entretanto, é possível também
que a Administração Pública adote um controle heterônomo, até mesmo para evitar
abusos na autodeclaração.
Exemplos desse controle
heterônomo: exigência de autodeclaração presencial perante a comissão do
concurso; exigência de apresentação de fotos pelos candidatos; formação de
comissões com composição plural para entrevista dos candidatos em momento
posterior à autodeclaração.
Voltando ao caso concreto:
João se submeteu à análise da comissão
examinadora de heteroidentificação e, depois de alguns dias, resultado foi
publicado no diário oficial: a banca indeferiu sua autodeclaração.
Segundo a análise da comissão o
conjunto de características fenotípicas apresentadas por João não permitiram
que ele fosse considerado pardo.
O candidato interpôs recurso
administrativo instruído com fotografias e laudos emitidos por médicos
dermatologistas, no entanto, mesmo assim, a decisão foi mantida.
Diante disso, João impetrou mandado de
segurança contra o ato do presidente da comissão.
Sustentou ser descendente de pai e mãe
pardos e que é cientificamente reconhecido como pardo, conforme análise de
experts, que lhe aplicaram o protocolo de Fitzpatrick, bem como que possui
caracteres físicos fenotipicamente pardos.
O instrumento processual escolhido
pelo candidato foi correto?
NÃO.
É inadequado o manejo de mandado de segurança com
vistas à defesa do direito de candidato em concurso público a continuar
concorrendo às vagas reservadas às pessoas pretas ou pardas, quando a comissão
examinadora de heteroidentificação não confirma a sua autodeclaração.
STJ. 1ª
Turma. RMS 58.785-MS, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 23/08/2022 (Info
746).
Só caberia mandado de segurança,
neste caso, se os fatos que alicerçam o direito do autor pudessem ser
comprovados de plano e de forma incontestável, mediante a apresentação de prova
documental trazida já com a petição inicial.
No caso, o candidato havia se
declarado pardo quando da inscrição no certame. Todavia, de acordo com a
análise dos membros da comissão designada para a pessoal conferência dessa
informação, a condição de pardo do impetrante não restou provada. Houve a
interposição de recurso administrativo, instruído com fotografias e laudos
emitidos por médicos dermatologistas.
Nesse contexto, o mandado de
segurança não se mostra cabível por duas razões:
1) o parecer emitido pela Comissão
examinadora, quanto ao fenótipo do candidato, ostenta, em princípio, natureza
de declaração oficial, sendo por isso dotada de fé pública. Logo, essa
conclusão não pode ser infirmada senão mediante qualificada e robusta
contraprova. Em outras palavras, é necessária dilação probatória. Ocorre que não
cabe dilação probatória em mandado de segurança.
2) o impetrante, no mandado de
segurança, afirma que a avaliação feita pela comissão examinadora foi “subjetiva”
argumentando que outras pessoas com características fenotípicas semelhantes à
sua tiveram chanceladas semelhantes autodeclarações. Realmente, uma avaliação
fenotípica é subjetiva, não havendo, atualmente, parâmetros absolutos,
objetivamente aferíveis ou numericamente mensuráveis para se ter certeza de que
alguém é preto ou pardo. Ocorre que a existência dessa subjetividade só reforça
que o tema não pode ser decidido por meio do especialíssimo rito do mandado de
segurança.
Sem resolução do mérito
No caso concreto, a ação
mandamental foi extinta por inadequação da via eleita, sem resolução do mérito.
Com isso, o impetrante poderá, assim desejando, postular o direito que afirma
possuir, mediante ajuizamento de ação comum (art. 19 da Lei nº 12.016/2009).