Dizer o Direito

domingo, 20 de novembro de 2022

Empresa de factoring pode emprestar dinheiro a juros?

 

NOÇÕES GERAIS SOBRE MÚTUO

Mútuo

O mútuo é um contrato por meio do qual alguém (mutuante) empresta para uma outra pessoa (mutuário) uma coisa que seja fungível (art. 586 do Código Civil).

Ex: João, no caminho para o local de prova, comprou duas canetas Bic no camelô. Ele empresta uma delas para Pedro fazer a prova do concurso. João e Pedro celebraram um contrato de mútuo.

 

Gratuito ou oneroso

O mútuo pode ser:

a) gratuito (também chamado de “benéfico”): quando não é combinada nenhuma remuneração pelo empréstimo;

b) oneroso (feneratício): quando é combinado que o mutuário irá pagar ao mutuante uma remuneração pelo empréstimo.

 

Mútuo feneratício

A palavra “feneratício” vem do latim “feneratitius”, que significa algo “relativo à usura”.

O mútuo feneratício é o empréstimo que tem fins econômicos, ou seja, no qual haverá o pagamento de uma remuneração ao mutuante. Encontra-se previsto no art. 591 do CC:

Art. 591. Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual.

 

Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.

 

A remuneração pelo empréstimo de coisa fungível é chamada de juros remuneratórios.

Assim, podemos resumir dizendo que mútuo feneratício consiste no “empréstimo de dinheiro a juro”.

Obs: segundo prevalece no STJ, a taxa dos juros moratórios a que se refere o art. 406 do CC é a dispositivo é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC (STJ. 3ª Turma. AgRg no REsp 1105904/DF, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 20/09/2012).

 

Particulares podem celebrar mútuo feneratício?

SIM. Desde que respeitadas as restrições impostas pelo art. 591 do CC.

O art. 591 do CC/2002 impõe restrições em relação à taxa de juros e à capitalização, permitindo apenas a capitalização anual. Além disso, esse dispositivo proíbe, sob pena de redução, que os juros excedam a taxa de 12% ao ano, conforme interpretação sistemática do art. 406 do CC com o art. 1º do Decreto nº 22.626/1933 e o art. 161, § 1º, do CTN.

Desse modo, importante reforçar que o mútuo feneratício não é uma atividade privativa de instituição financeira. Nesse sentido:

Com efeito, como já reconhecido pela Quarta Turma desta Corte,

Em regra, não há proibição legal para empréstimo de dinheiro entre pessoas físicas ou pessoas jurídicas que não componham o sistema financeiro nacional. Há vedação, entretanto, para a cobrança juros, comissões ou descontos percentuais sobre dívidas em dinheiro superiores à taxa permitida por lei, cuja inobservância pode configurar crime nos termos da Lei de Usura.

STJ. 4ª Turma. REsp 1.854.818/DF, relator para acórdão Min. Marco Buzzi, julgado em 7/6/2022.

 

Até mesmo quando, no contrato particular de mútuo feneratício for constatada a prática de usura ou agiotagem, a jurisprudência do STJ entende que deve apenas haver a redução dos juros estipulados para o limite legal, conservando-se o negócio jurídico (REsp 1.106.625/PR, 3ª Turma, DJe 9/9/2011; AgRg no REsp 1.370.532/MG, 3ª Turma, DJe 3/8/2015; AgInt no AREsp 1.486.384/MG, 4ª Turma, DJe 3/12/2019).

 

Mútuo feneratício envolvendo instituições financeiras

Vimos acima que o art. 591 prevê que, no mútuo feneratício, a taxa de juros não pode ser superior à taxa legal prevista no art. 406 do CC. Além disso, a única capitalização possível é a anual.

Vale ressaltar, contudo, que essas restrições contidas no art. 591 do CC não se aplicam para o mútuo feneratício envolvendo instituições financeiras.

Em outras palavras, se o mutuante for uma instituição financeira:

• a taxa de juros contratada poderá ser superior à taxa legal (art. 406); e

• será permitida capitalização de juros com periodicidade inferior a 1 ano.

 

Desse modo, se Lucas empresta dinheiro a juros para Henrique, ele deverá se submeter às restrições do art. 591 do CC. Por outro lado, um banco não estará limitado a tais exigências.

 

Qual será a taxa de juros que o banco poderá cobrar?

O STJ possui o entendimento de que os juros remuneratórios cobrados pelos bancos não estão sujeitos aos limites impostos pela Lei de Usura (Decreto nº 22.626/33), pelo Código Civil ou por qualquer outra lei. Em outras palavras, não existe lei limitando os juros que são cobrados pelos bancos (STJ. 2ª Seção. REsp 1061530/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 22/10/2008).

Existe também uma súmula antiga do STF que afirma isso:

Súmula 596-STF: As disposições do Decreto 22.626 de 1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional.

 

Diante da ausência de lei que imponha limites aos juros cobrados pelas instituições financeiras, o STJ construiu a seguinte regra: os juros cobrados pelos bancos devem utilizar como índice a taxa média de mercado, que é calculada e divulgada pelo Banco Central (BACEN) em sua página na internet.

 

NOÇÕES GERAIS SOBRE FACTORING

Factoring

A palavra factoring pode ser utilizada tanto para designar o contrato (contrato de factoring) como também a sociedade empresária que celebra esse tipo de ajusta, ou seja, que desenvolve essa atividade.

Para entendermos então o que é uma empresa de factoring, é necessário primeiramente sabermos o que é um contrato de factoring.

Factoring (ou faturização) é o contrato por meio do qual um empresário (faturizado) cede a uma instituição de factoring (faturizadora), total ou parcialmente, os títulos de créditos recebidos com a atividade empresária para que a factoring antecipe os pagamentos a prazo ou faça apenas a administração desses créditos.

 

Personagens

· Faturizador: empresa de factoring.

· Faturizado: cliente.

 

Terminologias

O contrato de factoring é também chamado de faturização ou fomento mercantil.

 

Atividades desempenhadas pela factoring

Existem duas modalidades principais de factoring, que se diferenciam, entre si, pelas atividades desempenhadas pela instituição faturizadora.

 

a) Factoring tradicional (conventional factoring):

O empresário cede à factoring os títulos de crédito que recebeu em sua atividade empresária e que somente irão vencer em uma data futura, e a empresa de factoring antecipa esse pagamento, recebendo, como contraprestação, um percentual desses créditos. Trata-se de uma forma de o empresário obter capital de giro nas vendas a prazo. Ex: uma loja recebe um cheque “pré-datado” (pós-datado) para 90 dias no valor de R$ 10 mil. Ocorre que a loja precisa de dinheiro logo. Então, ela cede o cheque para a empresa de factoring, que irá pagar à vista para a loja R$ 9.700,00 e, daqui a 90 dias, irá descontar o cheque, ficando com os R$ 10 mil. A loja recebeu o crédito à vista e teve que pagar um percentual à factoring.

É como se o cliente tivesse “vendido” o título para a factoring, que irá cobrar do devedor no momento do vencimento da dívida.

 

b) Factoring de vencimento (maturity factoring):

Aqui, a faturizadora não antecipa qualquer pagamento ao empresário. O faturizado somente irá receber realmente na data do vencimento. Nesta modalidade de factoring, a faturizadora apenas fica responsável pela prestação de serviços de administração do crédito. Ex: o faturizado recebe inúmeros cheques pós-datados e duplicatas que somente vencerão daqui a alguns dias, cada um em uma data diferente. Para evitar preocupações com esse controle das datas e das cobranças, o empresário manda esses títulos para a factoring, que ficará responsável por gerenciar esses créditos e fazer a cobrança nas datas de vencimento. Na data do vencimento de cada título, a factoring paga o crédito ao empresário e vai cobrar dos devedores originários, dispensando o faturizado desse trabalho.

 

Factoring não é instituição financeira

O conceito legal de instituição financeira está previsto no art. 17 da Lei nº 4.595/64, e a factoring não se enquadra em tal definição:

Art. 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros.

 

A factoring não faz a captação de dinheiro de terceiros, como acontece com os bancos. A empresa de factoring utiliza recursos próprios em suas atividades.

Logo, a factoring não integra o Sistema Financeiro Nacional nem necessita de autorização do Banco Central para funcionar. Nesse sentido:

As empresas popularmente conhecidas como factoring desempenham atividades de fomento mercantil, de cunho meramente comercial, em que se ajusta a compra de créditos vencíveis, mediante preço certo e ajustado, e com recursos próprios, não podendo ser caracterizadas como instituições financeiras.

STJ. 3ª Seção. CC 98.062/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 25/08/2010.

 

CONTRATO DE MÚTUO E FACTORING

Uma empresa de factoring pode celebrar contrato de mútuo feneratício?

SIM.

 

Mas a factoring não é instituição financeira....

Não tem problema. Já vimos acima que não é necessário ser instituição financeira para praticar mútuo feneratício. O mútuo feneratício pode ser celebrado mesmo sem ser instituição financeira.

A única ressalva está no fato do limite de juros e capitalização.

Se a factoring emprestar dinheiro deverá respeitar os limites que são impostos aos particulares no que tange aos juros e à capitalização.

Em outras palavras, a factoring pode emprestar dinheiro a juros (pode celebrar mútuo feneratício), mas não poderá cobrar as mesmas taxas de juros ou índices de capitalização de um banco.

Desse modo:

Embora não constitua instituição financeira, não é vedado à sociedade empresária de factoring celebrar contrato de mútuo feneratício, devendo apenas serem respeitadas as regras dessa espécie contratual aplicáveis aos particulares, especialmente quanto aos juros devidos e à capitalização.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.987.016-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 06/09/2022 (Info 750).

 

E qual é o limite de juros das factorings?

As empresas de factoring não se enquadram no conceito de instituições financeiras e, por isso, os juros remuneratórios estão limitados em 12% ao ano, nos termos da Lei de Usura (STJ. 4ª Turma. REsp 1048341/RS, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 10/02/2009). 

Assim, por exemplo, em hipótese na qual o contrato intitulado como de factoring é descaracterizado para o de mútuo feneratício, o negócio jurídico, em regra, permanece válido, mas deve observar aos arts. 586 a 592 do CC/2002, além das disposições gerais, e eventuais juros devidos não podem ultrapassar a taxa de 12% ao ano, permitida apenas a capitalização anual (arts. 591 e 406 do CC/2002; 1º do Decreto nº 22.626/1933; e 161, § 1º, do CTN), sob pena de redução ao limite legal, conservando-se o negócio.



Dizer o Direito!