Imagine
a seguinte situação adaptada:
Lucas
foi assistir ao jogo de futebol entre o São Paulo e o Corinthians, no estádio
do Morumbi, válido pelo Campeonato Paulista de Futebol.
A
diretoria do São Paulo determinou que a torcida do Corinthians teria direito a apenas
10% dos ingressos.
Lucas,
corintiano, ficou no setor do estádio reservado para os torcedores do clube.
Após
o fim da partida, Lucas e todos os corintianos foram obrigados a permanecer na
arquibancada por orientação da Polícia Militar considerando que a torcida do
São Paulo estava em maior número e era melhor aguardar que saíssem das
imediações do estádio.
A
saída dos corintianos foi liberada por volta das 19h e, após alguns minutos,
alguém que estava no estacionamento do clube jogou um artefato explosivo em
direção à torcida, gerando tumulto.
Os
policiais acharam que os corintianos que tinham jogado o artefato e, por isso,
atiraram algumas bombas de efeito moral, aumentando ainda mais o tumulto.
Lucas,
que ficou feriado no episódio, ajuizou ação de indenização por danos morais e
materiais contra o São Paulo Futebol Clube e contra a Federação Paulista de
Futebol.
O
juiz julgou os pedidos improcedentes, sob o argumento de que não foi possível
concluir a autoria nem a origem do arremesso do artefato explosivo.
Lucas
recorreu e o Tribunal de Justiça deu provimento à apelação, pois reconheceu a
responsabilidade objetiva dos réus, por acidente de consumo. Condenou os
requeridos ao pagamento de danos morais no valor de R$ 20 mil, além de danos
materiais.
Tanto
o São Paulo como a Federação Paulista interpuseram recurso especial.
A
condenação foi mantida? O São Paulo Futebol Clube (time mandante) e a Federação
Paulista de Futebol possuem responsabilidade civil neste caso?
SIM.
Dever
de garantir a segurança dos torcedores mesmo após a partida
O art. 13 da Lei nº
10.671/2003 (Estatuto do Torcedor) determina que se deve garantir a segurança
do torcedor nos locais onde são realizados os jogos. Essa proteção deve ocorrer
antes, durante e depois das partidas:
Art.
13. O torcedor tem direito a segurança nos locais onde são realizados os
eventos esportivos antes, durante e após a realização das partidas.
Esse
dever deve ser prioritariamente garantido pelo time mandante do jogo
O clube mandante é
quem tem o dever de promover a segurança dos torcedores, organizando a
logística no entorno do estádio, de modo a proporcionar a entrada e a saída de
torcedores com eficiência e segurança:
Art.
14. Sem prejuízo do disposto nos arts. 12 a 14 da Lei nº 8.078, de 11 de
setembro de 1990, a responsabilidade pela segurança do torcedor em evento
esportivo é da entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo e de
seus dirigentes, que deverão:
I
– solicitar ao Poder Público competente a presença de agentes públicos de
segurança, devidamente identificados, responsáveis pela segurança dos
torcedores dentro e fora dos estádios e demais locais de realização de eventos
esportivos;
II
- informar imediatamente após a decisão acerca da realização da partida, dentre
outros, aos órgãos públicos de segurança, transporte e higiene, os dados
necessários à segurança da partida, especialmente:
a)
o local;
b)
o horário de abertura do estádio;
c)
a capacidade de público do estádio; e
d)
a expectativa de público;
III
- colocar à disposição do torcedor orientadores e serviço de atendimento para
que aquele encaminhe suas reclamações no momento da partida, em local:
a)
amplamente divulgado e de fácil acesso; e
b)
situado no estádio.
Vale
ressaltar, contudo, que as entidades responsáveis pela organização da
competição possuem responsabilidade solidária
A Federação
Paulista de Futebol – por ser organizadora do Campeonato Paulista – também possui
responsabilidade solidária, por força do art. 19 do Estatuto:
Art.
19. As entidades responsáveis pela organização da competição, bem como seus
dirigentes respondem solidariamente com as entidades de que trata o art. 15 e
seus dirigentes, independentemente da existência de culpa, pelos prejuízos
causados a torcedor que decorram de falhas de segurança nos estádios ou da
inobservância do disposto neste capítulo.
Falha
na prestação do serviço
Como forma de
concretizar a obrigação de garantir a segurança dos partícipes do evento
esportivo, o art. 17 do Estatuto do Torcedor institui o dever de criação e
implementação de planos de ação relativos à segurança, transporte e
contingências possíveis de se verificarem nesses eventos:
Art.
17. É direito do torcedor a implementação de planos de ação referentes a
segurança, transporte e contingências que possam ocorrer durante a realização
de eventos esportivos.
A
falha na segurança envolvendo a realização de uma partida de futebol
corresponde, portanto, a uma falha/defeito na prestação do serviço.
Os
danos causados aos torcedores são regidos pelo CDC
O Estatuto do
Torcedor equiparou as entidades desportivas à figura do fornecedor do Código de
Defesa do Consumidor:
Art.
3º Para todos os efeitos legais, equiparam-se a fornecedor, nos termos da Lei
nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, a entidade responsável pela organização da
competição, bem como a entidade de prática desportiva detentora do mando de
jogo.
Uma
vez estabelecida a relação equiparada à de consumo, verifica-se a
responsabilidade objetiva e solidária, nos termos do art. 14 do Estatuto do
Torcedor, das entidades organizadoras, com os clubes e seus dirigentes, pelos
danos que decorram de falhas de segurança nos estádios.
As entidades
responsáveis pela organização respondem, portanto, independentemente da
existência de culpa, pelos prejuízos advindos da realização da partida:
Art.
19. As entidades responsáveis pela organização da competição, bem como seus
dirigentes respondem solidariamente com as entidades de que trata o art. 15 e
seus dirigentes, independentemente da existência de culpa, pelos prejuízos
causados a torcedor que decorram de falhas de segurança nos estádios ou da
inobservância do disposto neste capítulo.
Assim,
para atrair a responsabilidade da agremiação mandante do jogo, é suficiente a
comprovação do dano, da falha de segurança e do nexo de causalidade.
Responsabilidade
objetiva
Não
há dúvidas, portanto, de que a teoria de responsabilização no caso concreto é
de ordem objetiva, ligada ao fato e ao risco da atividade e desprendida da
prova da culpa (teoria subjetiva).
Por outro lado, a legislação brasileira citada não
adota a teoria do risco integral, admitindo, portanto, a isenção da
responsabilidade, caso comprovada a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro ou
a ausência de dano.
Não
há causa excludente de responsabilidade
Como
a existência do dano ao torcedor é incontroversa, resta verificar a ocorrência
do fato do serviço (falha na segurança) e a eventual quebra do nexo de
causalidade, pela culpa exclusiva de terceiro.
Verifica-se
que o dever de garantir a segurança do torcedor não se limita a convocar a
força policial ao estádio ao longo da partida, mas também em um sem número de
medidas e providências contidas no plano de ação previsto no art. 17 da Lei nº 10.671/2003.
No
caso, o plano de ação, se houve, foi manifestamente falho, pois, conforme
narrado pelas instâncias ordinárias, os torcedores do time visitante ficaram reclusos
por quase uma hora, numa área pequena, protegida por muros provisórios, sem
conforto ou informações, o que já caracteriza tratamento incompatível com
aquele exigido pela norma.
Além
disso, a força policial presente não foi capaz de conter o tumulto causado pelo
artefato e atuou de forma a gerar ainda mais confusão. Não se olvide que, nos
termos do art. 13 da aludida lei de regência, o torcedor tem direito a
segurança “antes, durante e após a realização das partidas”.
Responsabilidade
abrange o entorno do estádio
O
local do evento esportivo não se restringe ao estádio ou ginásio, mas abrange
também o seu entorno. Por essa razão, o clube mandante deve promover a
segurança dos torcedores na chegada do evento, organizando a logística no
entorno do estádio, de modo a proporcionar a entrada e a saída de torcedores
com celeridade e segurança.
Assim,
o fato de a primeira bomba ter sido arremessada da parte externa do estádio não
interfere no dever de indenizar, pois os danos ocorreram nas dependências da
arena esportiva e o arremesso está inserido no contexto da partida de futebol e
da rivalidade das torcidas, no âmbito, portanto, da atividade exercida pelo clube
mandante, cujo risco é tutelado pela norma.
Em
suma:
STJ. 3ª Turma. REsp 1.773.885-SP,
Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 30/08/2022 (Info 747).
DOD Plus – julgado correlato
A entidade esportiva
mandante do jogo responde pelos danos sofridos por torcedores, em decorrência
de atos violentos provocados por membros de torcida rival.
STJ. 3ª Turma. REsp
1924527-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/06/2021 (Info 701).