segunda-feira, 28 de novembro de 2022
É possível a fundamentação per relationem para decretar ou prorrogar a interceptação telefônica, desde que o magistrado faça considerações autônomas, ainda que sucintas, justificando a medida
Imagine a seguinte situação
hipotética:
O Ministério Público requereu a
interceptação telefônica de diversas pessoas investigadas por crimes contra a
administração pública.
O pedido foi deferido pelo Juízo de primeiro grau em decisão
assim motivada:
“Em face dos
fatos expostos na representação, bem como o caráter imprescindível da medida
para a investigação criminal e de conformidade com as disposições previstas na
Lei nº 9296/96, defiro os pedidos formulados pelo Ministério Público,
determinando a quebra do sigilo e a interceptação telefônica das linhas
elencadas a fls. 9/10.”
Passados alguns dias, o Ministério Público pediu a
interceptação de novos investigados e a prorrogação das interceptações
anteriores. O Juiz deferiu os pedidos com a seguinte decisão:
“Representa o
Ministério Público pela prorrogação de interceptações telefônicas e novas
interceptações.
A
representação vem acompanhada de relatórios do Ministério Público e da Polícia
Federal – ambos investigaram os fatos deste procedimento –.
Assim,
considerando o teor de referido expediente e das conversas telefônicas
transcritas, mantidas pelas pessoas investigadas, entendo ser de rigor o
deferimento das novas medidas, o que faço, com fundamento nos dispositivos da
Lei nº 9.296/96, e determino sejam expedidos ofícios às operadoras.”
As decisões que deferiram as demais prorrogações também
seguiram com essa mesma linha de fundamentação:
“De
conformidade com as disposições previstas na Lei nº 9.296/96, ante a nova
representação do Ministério Público, e considerando os novos elementos trazidos
para o presente expediente, que indicam a necessidade do prosseguimento das
investigações em curso, então defiro as medidas requeridas e determino as novas
interceptações telefônicas, assim como a prorrogação das que estão em
andamento, por mais 15 dias.”
A operação foi deflagrada e os
suspeitos denunciados.
Um dos acusados impetrou habeas
corpus, sustentando, em suma, a nulidade da decisão que autorizou a
interceptação das comunicações telefônicas do réu, bem como dos atos que
deferiram a prorrogação das diligências, por não apresentarem fundamentos
idôneos.
Segundo argumentou a defesa, “o d.
Magistrado de primeiro grau como se somente dispusesse de um carimbo, deferiu
todos eles sem a mínima individualização das motivações ensejadoras da
continuidade da medida para cada alvo e da forma mais desfundamentada, lacônica
e ilegal possível permitiu a relativização de direitos fundamentais do paciente
e de várias pessoas”.
O STJ concordou com o pedido da
defesa? As decisões de interceptação foram anuladas com a consequentemente
anulação das provas obtidas?
SIM.
O STJ declarou a ilicitude das
provas obtidas por meio das interceptações telefônicas, bem como de todas as que delas decorreram, com determinação de
desentranhamento dos autos.
Vamos entender alguns pontos
interessantes do tema.
A interceptação de
comunicações telefônicas depende de decisão judicial fundamentada
O art. 5º da Lei nº 9.296/96 (Lei de Interceptação
Telefônica) preconiza:
Art. 5º A decisão será fundamentada,
sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que
não poderá exceder o prazo de 15 dias, renovável por igual tempo uma vez
comprovada a indispensabilidade do meio de prova.
Vale ressaltar que a
interceptação pode ser prorrogada sucessivas vezes, desde que fundamentada a
decisão.
Desse modo, tanto o deferimento
como a prorrogação precisam ser fundamentadas.
O que é fundamentação per relationem?
Trata-se de uma forma de
motivação por meio da qual se faz remissão ou referência às alegações de uma
das partes, a precedente ou a decisão anterior nos autos do mesmo processo. É
chamada pela doutrina e jurisprudência de motivação ou fundamentação per
relationem ou aliunde. Também é denominada de motivação referenciada, por
referência ou por remissão.
A decisão que se utiliza de
fundamentação per relationem é válida?
SIM. O entendimento
jurisprudencial pacificado é no sentido de que a utilização da fundamentação per
relationem, seja para fim de reafirmar a fundamentação de decisões
anteriores, seja para incorporar à nova decisão os termos de manifestação
ministerial anterior, não implica vício de fundamentação (STJ. 5ª Turma. AgRg
no AREsp n. 1.7906.66/SP, Min. Felix Fischer, DJe 6/5/2021).
A fundamentação per
relationem pode ser utilizada mesmo em decisões que decretem a interceptação
telefônica?
SIM. Admite-se o uso da motivação
per relationem para justificar a quebra do sigilo das comunicações
telefônicas (STJ. 5ª Turma. AgRg no RHC n. 136.245/MG, Min. João Otávio de
Noronha, DJe 20/9/2021).
No entanto, tem-se exigido, na
jurisprudência da 6ª Turma do STJ, que o juiz, ao reportar-se a fundamentação e
a argumentos alheios, ao menos os reproduza e os ratifique, eventualmente, com
acréscimo de seus próprios motivos.
No caso concreto esses
cuidados não foram tomados
No caso, as decisões que
autorizaram a prorrogação da medida não foram concretamente motivadas, haja
vista que o Magistrado se restringiu a consignar o deferimento da representação
ministerial, sem apresentar nenhum fundamento concreto que lastreasse a conclusão
pela necessidade da diligência e a impossibilidade de obtenção dos elementos
por outro meio.
Não há, sequer, menção ao nome
dos investigados no ato que inicialmente deferiu a interceptação.
Também as decisões que
autorizaram a prorrogação da medida não foram concretamente motivadas, haja
vista que, mais uma vez, o Juiz de primeiro grau se limitou a autorizar a
inclusão de outros terminais a prorrogação das diligências já em vigor e a
exclusão de outras linhas telefônicas, nos moldes requeridos pelo Parquet, sem
registrar, sequer, os nomes dos representados adicionados e daqueles em relação
aos quais haveria continuidade das diligências, nem sequer dizer a razão pela
qual autorizava as medidas.
Por conseguinte, os atos
decisórios não apresentaram motivos suficientes para justificar as medidas
deferidas, pois seu nível de abstração permitiria a realização de diligências
semelhantes em qualquer outro pleito formulado (mesmo que não guardasse nenhuma
relação com os fatos apurados na medida cautelar apreciada).
A rigor, as decisões que servirem
para deferir medidas semelhantes em qualquer procedimento investigatório são
insuficientes, portanto, para suprir os requisitos constitucionais e legais de
fundamentação da cautela.
Em suma:
STJ. 6ª Turma. RHC 119.342-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz,
julgado em 20/09/2022 (Info 751).
As interceptações podem ter
revelado elementos informativos que levaram a novas “provas”. Ex: um dos
investigados pode ter mencionado um endereço e este endereço foi alvo,
posteriormente, de uma medida de busca e apreensão na qual foram encontrados
importantes documentos. Essa apreensão dos documentos também é ilícita com base
na teoria do fruto da árvore envenenada?
Segundo a Doutrina dos Frutos da
Árvore Envenenada (fruits of the poisonous tree doctrine), consagrada no
art. 5º, LVI, da CF/88, é nula a prova
derivada de conduta ilícita.
Já que a árvore está envenenada (isto é, se uma prova é
ilícita), os seus frutos (as demais provas obtidas a partir da prova ilícita)
também estarão envenenados como consequência lógica. Essa teoria foi
expressamente consagrada no § 1º do art. 156 do CPP:
Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas
do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a
normas constitucionais ou legais.
§ 1º São também inadmissíveis as
provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade
entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte
independente das primeiras.
(...)
O STJ afirmou que caberá ao Juízo
singular, após descartar todos os elementos viciados pela ilicitude, averiguar
se há outros obtidos por fonte totalmente independente ou cuja descoberta seria
inevitável, a permitir o prosseguimento do feito.
DOD Plus
Admite-se o uso da motivação per relationem para justificar a
quebra do sigilo das comunicações telefônicas. No entanto, as decisões que
deferem a interceptação telefônica e respectiva prorrogação devem prever,
expressamente, os fundamentos da representação que deram suporte à decisão - o
que constituiria meio apto a promover a formal incorporação, ao ato decisório,
da motivação reportada como razão de decidir - sob pena de ausência de
fundamento idôneo para deferir a medida cautelar.
STJ. 6ª Turma.
HC 654131-RS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 16/11/2021
(Info 723).
Jurisprudência em Teses (Ed. 117):
2) É admissível a utilização da técnica de fundamentação per
relationem para a prorrogação de interceptação telefônica quando mantidos os
pressupostos que autorizaram a decretação da medida originária.