Dizer o Direito

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

É nula, para fins de identificação criminal, a coleta compulsória de material orgânico não descartado de pessoas definitivamente não condenadas

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João era suspeito de ter praticado, juntamente com outras pessoas, roubo armado contra um banco.

A autoridade policial representou ao juiz pedindo para que fosse autorizada a coleta de material genético dos suspeitos e a inclusão no Banco Nacional de Perfis Genéticos.

Segundo argumentou o Delegado, a obtenção do material biológico no caso concreto mostra-se de extrema relevância para as investigações, na medida em que os vestígios porventura coletados no local do crime poderão ser confrontados com dados fidedignos, potencializando, assim, a identificação da autoria desses fatos e, ainda, em eventuais situações posteriores.

O juiz deferiu o pedido.

A defesa impetrou habeas corpus contra a decisão, tendo ela sido mantida pelo TRF.

Ainda inconformada, a defesa recorreu ao STJ.

 

Foi válida a decisão do magistrado que autorizou a identificação criminal mediante coleta compulsória de material orgânico dos investigados?

NÃO. Vamos entender com calma.

 

Limites à atividade persecutória

O processo penal deve ter uma cariz (feição) garantista, ou seja, deve ser conduzido conforme os parâmetros e diretrizes constitucionais e legais.

Em um processo penal de cariz garantista, busca-se a “verdade processualmente válida”, isto é, aquela em que a reconstrução histórica dos fatos objeto do juízo se vincula a regras precisas, que assegurem às partes maior controle sobre a atividade jurisdicional (STJ. 6ª Turma. HC 712.781/RJ, Rel. Min. Rogério Schietti, DJe 22/3/2022).

A busca da verdade na persecução penal submete-se, portanto, aos limites e ao regramento das leis e da Constituição da República.

Uma dessas limitações ao poder-dever de apurar a verdade dos fatos é a impossibilidade de se obrigar ou induzir o investigado/acusado a colaborar com a averiguação das próprias condutas e a cooperar com sua incriminação. Trata-se daquilo que é popularmente conhecido como “ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo”. Nesse sentido:

Em um Estado democrático de direito, é impossível obrigar investigados a colaborar com a provisão de provas e contribuir para comprovar a pretensão ministerial, que pesa em seu desfavor. Daí a garantia do art. 5º, LXIII, da Constituição da República.

Assim, o não fornecimento à polícia de senhas para acesso aos smartphones, pelos jovens, não induz à procedência da aspiração socioeducativa.

STJ. 6ª Turma. HC 661.598/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti, DJe 25/4/2022.

 

A busca da verdade no processo penal sujeita-se a limitações e regras precisas, que assegurem às partes um maior controle sobre a atividade jurisdicional, cujo objetivo maior é a descoberta da verdade processual e constitucionalmente válida.

Uma dessas limitações, de feição ética, ao poder-dever de investigar a verdade dos fatos é, precisamente, a impossibilidade de obrigar ou induzir o réu a colaborar com sua própria condenação, por meio de declarações ou fornecimento de provas que contribuam para comprovar a acusação que pesa em seu desfavor.

Daí por que a Constituição assegura ao preso o “direito de permanecer calado” (art. 5º, LXIII).

STJ. 6ª Turma. HC 330.559/SC, Rel. Min. Rogerio Schietti, DJe 10/10/2018.

 

Direito à não autoincriminação

O Pacto de San José da Costa Rica (aderido à legislação pátria pelo Decreto nº 678/1992) prevê, como garantia de toda pessoa acusada, que ninguém é obrigado a se autoincriminar e assegura ao acusado/réu o direito a não depor contra si mesmo, nem a declarar-se culpado (art. 8º, item "2", alínea "g").

O direito à não se inculpar também está previsto na Constituição da República, em seu art. 5º, LXIII, segundo o qual “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado”.

O art. 186 do CPP, por sua vez, prevê a possibilidade de o réu ficar em silêncio, quando interrogado.

 

Coleta de material genético

O art. 9º-A da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) prevê:

Art. 9º-A. O condenado por crime doloso praticado com violência grave contra a pessoa, bem como por crime contra a vida, contra a liberdade sexual ou por crime sexual contra vulnerável, será submetido, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA (ácido desoxirribonucleico), por técnica adequada e indolor, por ocasião do ingresso no estabelecimento prisional. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

§ 1º A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo.    (Incluído pela Lei nº 12.654, de 2012)

(...)

§ 2º A autoridade policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz competente, no caso de inquérito instaurado, o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético.  (Incluído pela Lei nº 12.654, de 2012)

(...)

 

A discussão quanto à constitucionalidade dessa previsão está em tramitação no STF (RE 973.837/MG – Tema 905).

O art. 9º-A da LEP, contudo, não se aplica no presente caso porque João e os demais ainda eram apenas suspeitos, não tendo sido condenados.

Poder-se-ia, então, buscar a aplicação do art. 5º-A da Lei nº 12.037/2009, sob o argumento de que esse dispositivo permitiria a coleta de material biológico para a obtenção do perfil genético, na identificação criminal:

Art. 5º-A. Os dados relacionados à coleta do perfil genético deverão ser armazenados em banco de dados de perfis genéticos, gerenciado por unidade oficial de perícia criminal. (Incluído pela Lei nº 12.654, de 2012)

(...)

 

O art. 5º-A acima, incluído pela Lei nº 12.654/2012 na Lei nº 12.037/2009, realmente trouxe ao ordenamento jurídico a possibilidade de coleta de material orgânico de suspeitos para fins de identificação criminal. Apesar disso, cumpre consignar que o STF, ao reconhecer a repercussão geral no RE 973.837/MG, afirmou que há razão bastante para a discussão acerca dos “limites dos poderes do Estado de colher material biológico”, de “traçar o respectivo perfil genético, de armazenar os perfis em bancos de dados e de fazer uso dessas informações”, diante dos relevantes argumentos quanto à eventual “violação a direitos da personalidade” e à “prerrogativa de não se autoincriminar”.

Assim, para o STJ, o STF deu indícios de que esses dispositivos devem ser analisados em conformidade com a garantia constitucional da proibição de autoincriminação.

Existem precedentes do STJ no sentido de que a extração de saliva não representa método invasivo da intimidade. Vale ressaltar, contudo, que esses julgados trataram de hipóteses em que o referido material genético se achava em objetos descartados. Assim, esses julgados do STJ validaram a apreensão de elemento orgânico sem violação ao corpo do indivíduo. É o caso, por exemplo, de um suspeito que fumou e desprezou cigarros; ou ainda de um suspeito que tenha usado copos ou talheres de plástico que tenham sido descartados e recolhidos pela polícia para o exame biológico. Nessas situações, a apreensão do material é válida.

 

Voltando ao caso concreto

No caso, a infração praticada não deixa vestígios, tampouco a autoridade policial noticiou de que forma a providência restritiva traria utilidade às investigações, e não há denúncia contra o investigado, quanto mais sentença condenatória.

De igual modo, os investigados não consentiram com o fornecimento e nem houve coleta a partir de algum material por eles descartado.

Diante disso, a 6ª Turma do STJ declarou a nulidade da coleta compulsória de material orgânico e da inserção dos respectivos dados biológicos no Banco Nacional de Perfis Genéticos na hipótese dos autos, em que:

I. não há sentença contra o investigado;

II. não há proporcionalidade na medida invasiva, não há denúncia em seu desfavor;

III. não há dúvida acerca da identificação do investigado;

IV. o delito pelo qual se determinou a providência restritiva não deixa vestígios;

V. não há comprovação bastante de que a identificação genética do investigado é essencial para a investigação criminal;

VI. não se trata de material biológico descartado;

VII. a coleta dos dados orgânicos depende da intervenção no corpo do indivíduo, não consentida;

VIII. o investigado, em princípio, é primário, de modo que não há motivo idôneo, ao menos por ora, para a inclusão do seu perfil biológico em banco estatal de dados genéticos;

IX. há discussão relevante no Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de atos semelhantes ao ora impugnado violarem direito à personalidade de pessoas definitivamente condenadas, bem como a prerrogativa de os réus não se autoincriminarem (conforme, inclusive, orientação da Corte Europeia de Direitos Humanos); e

X. a espécie não se adequa aos precedentes do STJ, que se reportam a sentenciados, a material descartado ou ao consentimento da provisão dos dados biológicos pelos réus.

 

Diante disso, o STJ, no caso concreto, declarar a nulidade da coleta compulsória de material genético do recorrente e da inserção dos respectivos dados em banco estatal, além de determinar o desentranhamento das informações biológicas dos autos de eventual investigação ou processo em andamento.

 

Em suma:

É nula, para fins de identificação criminal, a coleta compulsória de material orgânico não descartado de pessoas definitivamente não condenadas.

STJ. 6ª Turma. RHC 162.703-RS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 13/09/2022 (Info 750).



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