Imagine a seguinte situação hipotética:
Antônio, advogado, procurou o
Ministério Público e avisou que tinha informações e provas a respeito de uma
organização criminosa que praticou inúmeros delitos. Afirmou, contudo, que
somente entregaria esses elementos se fosse feito um acordo de colaboração
premiada e se ele obtivesse isenção penal total pelos fatos praticados.
O acordo foi celebrado e Antônio
prestou as seguintes declarações:
- a empresa Alfa Ltda entrou em
recuperação judicial;
- ele foi, então, contratado para
ser o advogado da empresa no processo;
- em conjunto com outras diversas
pessoas, ele praticou diversos crimes falimentares e de lavagem de dinheiro;
- o objetivo seria desviar todo o
dinheiro da empresa sem pagar os credores.
Além de prestar essas
declarações, Antônio entregou ao Ministério Público documentos e gravações que
ele havia obtido em razão de sua atuação como advogado neste processo.
Com base no termo de colaboração
premiada e nos elementos entregues por Antônio, o Ministério Público instaurou
um Procedimento
Investigatório Criminal (PIC).
Ao final deste PIC, o Ministério
Público ofereceu denúncia contra todos os envolvidos.
Um dos denunciados impetrou habeas corpus alegando a
nulidade da colaboração premiada com o trancamento da ação penal. Afirmou que:
“Dr.
Antônio, na condição de advogado contratado da empresa delatou pessoas que lhe
confiaram informações. Na vigência de seu contrato de mandato, aproveitando-se
da relação de confiança com seus clientes, de forma ardilosa e sorrateira,
gravou clandestinamente seus clientes em reuniões jurídicas autenticadas pelo
sigilo profissional”.
Assim, defendeu a ilicitude das provas
pela violação do dever de sigilo profissional.
O STJ concordou com os argumentos da defesa? As provas obtidas são
ilícitas?
SIM.
Nos termos da Lei nº 12.850/2013,
o acordo de colaboração premiada é um meio de obtenção de provas, no qual o
poder estatal compromete-se a conceder benefícios ao investigado/acusado sob
condição de cooperar com a persecução penal, em especial, na colheita de provas
contra os outros investigados/acusados.
Embora o acordo de colaboração
premiada tenha representado uma inovação no sistema de Justiça criminal, ele
precisa, obviamente, respeitar as normas constitucionais e legais. Nesse
sentido, o STF decidiu que é possível a anulação e declaração de ineficácia
probatória de acordos de colaboração premiada firmados em desrespeito às normas
legais e constitucionais (STF. 2ª Turma. HC 142.205/PR, Rel. Min. Gilmar
Mendes, DJe de 1/10/2020).
O dever de sigilo profissional
imposto ao advogado e as prerrogativas profissionais a ele asseguradas não têm
em vista assegurar privilégios pessoais, mas sim os direitos dos cidadãos.
Nessa direção, José Afonso da Silva afirma que a inviolabilidade da atividade
do advogado, “na verdade, é uma proteção ao cliente que confia a ele documentos
e confissões da esfera íntima, de natureza conflitiva e não raro objeto de
reivindicação (...)” (Curso de Direito Constitucional Positivo. 5ª ed. São
Paulo: RT, 1989, p. 504).
Em paradigmático voto, no
julgamento do RMS 67.105/SP, o Ministro Luis Felipe Salomão, citando Walter
Ceneviva, lembra que “a advocacia, enquanto função essencial da Justiça, por
definição constitucional, não sobrevive se não for a certeza de que o sigilo
profissional representa a base sobre a qual se sustenta seu exercício”.
Logicamente, não há empecilho ao
deferimento de medidas restritivas contra advogado investigado ou acusado da
prática de crimes. Também não há ilicitude na conduta do advogado que apresenta
em juízo documentos e provas de que dispõe em razão do exercício profissional
para se defender de imputação de prática de crime feita por um cliente, em
razão do princípio da ampla defesa e contraditório.
O que é inadmissível é a conduta
do advogado que, sponte propria, independentemente de provocação e na
vigência de mandato de procuração que lhe foi outorgado, grava clandestinamente
suas comunicações com seus clientes com objetivo delatados, e entrega às
autoridades investigativas documentos de que dispõe em razão da profissão,
violando o dever de sigilo profissional (art. 34, VII, da Lei nº 8.906/94).
Aliás, no julgamento da Rcl
37.235/RO, o Ministro Gilmar Mendes, na Segunda Turma do Supremo Tribunal
Federal, enfatizou que o sigilo profissional do advogado é “premissa
fundamental para exercício efetivo do direito de defesa e para a relação de
confiança entre defensor técnico e cliente” (DJe de 27/5/2020).
Não é por outra razão que a Lei nº 14.365/2022, que alterou
a Lei nº 8.904/94, passou a dispor no § 6º-I do art. 7º:
Art. 7º (...)
§ 6º-I. É vedado ao advogado efetuar
colaboração premiada contra quem seja ou tenha sido seu cliente, e a
inobservância disso importará em processo disciplinar, que poderá culminar com
a aplicação do disposto no inciso III do caput do art. 35 desta Lei, sem
prejuízo das penas previstas no art. 154 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 (Código Penal).
Embora esse dispositivo não
estivesse em vigência na data dos fatos, sua dicção reforça a interpretação
quanto à ilicitude da colaboração premiada contra quem era seu cliente.
Não havia justa causa para
se afastar o dever de sigilo profissional
Na espécie, não se evidencia
justa causa a excepcionar o dever de sigilo profissional. Conforme já
mencionado, o advogado não estava sendo investigado ou acusado de prática
delitiva, pois - como já mencionado - as investigações somente se iniciaram com
a sua delatio criminis e provas entregues espontaneamente ao Ministério
Público.
Também não se trata de hipótese
de advogado acusado pelo próprio cliente da prática delitiva, que, necessitando
defender-se, apresenta provas de sua inocência.
Vê-se, portanto, a inequívoca a ausência de causa
justificadora para violação do dever de sigilo profissional do advogado,
imposto no art. 34, VII, da Lei nº 8.904/94:
Art. 34. Constitui infração disciplinar:
(...)
VII - violar, sem justa causa,
sigilo profissional;
É inadmissível que o Poder
Judiciário dê guarida a atos negociais firmados em desrespeito à lei e em
ofensa ao princípio da boa-fé objetiva.
A conduta do advogado que em
má-fé delata seu cliente, sem justa causa, ocasiona a desconfiança sistêmica na
própria instituição, cuja indispensabilidade para administração da justiça é
reconhecida no art. 133 da Constituição Federal.
Diante disso, inafastável a
conclusão quanto à ilegalidade da conduta do advogado que trai a confiança nele
depositada, utilizando-se de posição privilegiada, para delatar seus clientes e
firmar acordo com o Ministério Público.
Em suma:
São ilícitas as provas obtidas em acordo de delação
premiada firmado com advogado que, sem justa causa, entrega às autoridades
investigativas documentos e gravações obtidas em virtude de mandato que lhe
fora outorgado, violando o dever de sigilo profissional.
STJ. 5ª Turma. RHC 164.616-GO, Rel. Min. João Otávio de Noronha,
julgado em 27/09/2022 (Info 751).