quinta-feira, 17 de novembro de 2022
É cabível a apreensão do passaporte do falido?
Imagine a seguinte situação
hipotética:
A massa falida pediu
ao juízo falimentar a apreensão do passaporte de João, sob a alegação de
reiterado descumprimento ao art. 104, III e VI, da Lei nº 11.101/2005:
Art.
104. A decretação da falência impõe aos representantes legais do falido os
seguintes deveres:
(...)
III
– não se ausentar do lugar onde se processa a falência sem motivo justo e
comunicação expressa ao juiz, e sem deixar procurador bastante, sob as penas
cominadas na lei;
(...)
VI
– prestar as informações reclamadas pelo juiz, administrador judicial, credor
ou Ministério Público sobre circunstâncias e fatos que interessem à falência;
O
juízo da vara de falências deferiu o pedido e o passaporte foi apreendido.
João
interpôs agravo de instrumento, mas o TJ manteve a decisão argumentando que
havia fundamentos sólidos de que o agravante estava dilapidando seus bens com
viagens luxuosas em detrimento de credores. As viagens eram realizadas por meio
de aeronave particular, avaliada em R$ 100 milhões (pertencente à massa
falida). Além disso, havia fortes indícios de que o alto padrão de vida do
paciente era custeado pela família, mas com o patrimônio dele, que foi
indevidamente transferido aos familiares para evitar que sobre ele recaísse os
efeitos da quebra.
A
defesa impetrou habeas corpus no STJ contra o acórdão do TJ afirmando que
estaria havendo constrangimento ilegal à sua liberdade de locomoção.
O
STJ deferiu o pedido da defesa para devolução do passaporte?
NÃO.
Dentre
os efeitos da sentença declaratória da falência, destaca-se a designação do
administrador judicial, a quem a lei impõe o dever de praticar os atos
necessários à realização do ativo e ao pagamento dos credores, nos termos do
art. 99, IX, c/c art. 22, III, “i”, da Lei nº 11.101/2005.
Concomitantemente,
desde o momento da decretação da falência, o falido perde o direito de
administrar os seus bens e deles dispor, por força do art. 103, caput, da Lei
nº 11.101/2005.
Assim, considerando
que a falência se caracteriza como um processo de execução coletiva decretado
judicialmente, devendo o patrimônio do falido estar comprometido exclusivamente
com o pagamento da massa falida, tem-se possível a aplicação do art. 139, IV,
do CPC/2015, de forma subsidiária, observando o disposto no art. 189 da Lei nº
11.101/2005:
Art.
189. Aplica-se, no que couber, aos procedimentos previstos nesta Lei, o
disposto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil),
desde que não seja incompatível com os princípios desta Lei.
A providência
deferida pelo Juízo falimentar, e confirmada pelo TJ, tem a natureza de meio
coercitivo atípico, estando amparada pelo art. 139, IV, do CPC:
Art.
139. O juiz dirigirá o processo conforme
as disposições deste Código, incumbindo-lhe:
(...)
IV
- determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou
sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial,
inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;
O
CPC teve como um dos seus motes a necessidade de dar à jurisdição mecanismos
capazes de conferir efetividade às decisões judiciais e garantir a tutela
satisfativa.
Muitas
vezes o exaurimento dos meios executivos relacionados no Código – “meios
típicos de execução” – significa que o devedor realmente não dispõe de
patrimônio com o qual pague a dívida. Outras vezes, no entanto, a busca
persistente de bens do devedor não descortina patrimônio sujeito à execução,
mas o comportamento social do executado evidencia incompatibilidade desse dado
com a realidade, tais como: sinais de solvência em ambientes e em redes sociais
ou públicos, em oposição à indisponibilidade patrimonial alegada e aparentada
no processo.
Para
tais situações, indicativas, aliás, de uma postura processualmente desleal e
não cooperativa, o CPC/2015 previu a regra do transcrito art. 139, IV, sem
correspondente no revogado CPC/1973.
Em
suma, as medidas executivas atípicas agregaram-se aos meios típicos de execução
a fim de permitir que o juiz, à luz das circunstâncias do caso concreto,
encontre a técnica mais adequada para proporcionar a efetiva tutela do direito
material violado.
Existem alguns limites materiais
que vêm sendo construídos para orientar a aplicação dos meios atípicos. Um
deles é a necessidade de prévio exaurimento dos meios típicos ou
subsidiariedade dos meios atípicos. Não obstante isso, a imposição de prévio
exaurimento da via típica é exigência que pode ser relativizada em alguns
casos. É o que deve ocorrer quando o comportamento processual da parte, em qualquer
das fases do processo, descortina a sua propensão à deslealdade ou à desordem.
A boa-fé objetiva é princípio
cuja inobservância deve implicar não apenas sanções processuais, como a
prevista no caso de conduta atentatória à dignidade da justiça (art. 774 do
CPC). O descumprimento do princípio, para além da sanção punitiva, deve
irradiar efeitos jurídicos para repelir as consequências da atuação maliciosa.
Diagnosticando o atuar processualmente desleal, deve o juiz se utilizar de
meios capazes de imediatamente fazer cessar ou, ao menos, remediar a nocividade
da conduta. Logo, diante de um comportamento infringente à boa-fé objetiva,
passa o juiz a desfrutar da possibilidade de utilizar-se de meios executivos
atípicos antes mesmo de exaurida a via típica.
Outros limites apresentados à
aplicação dos meios atípicos são a observância do contraditório prévio - salvo
quando puder frustrar os efeitos da medida - e a exigência de fundamentação
adequada, garantias do devido processo legal.
Assim, demonstradas a conduta
processualmente temerária do falido, a consistente fundamentação da decisão e a
observância do contraditório prévio, não configura constrangimento ilegal a
apreensão e retenção de passaportes.
Em suma:
STJ. 4ª
Turma. HC 742.879-RJ, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 13/09/2022 (Info 749).