Dizer o Direito

domingo, 6 de novembro de 2022

Análise da responsabilidade civil pelos danos causados às vítimas na superfície em razão da queda do avião que transportava Eduardo Campos

 

SITUAÇÃO 1: VÍTIMA AJUIZOU A AÇÃO CONTRA A EMPRESA ARRENDATÁRIA E POSSUIDORA INDIRETA

O caso concreto foi, com adaptações, foi o seguinte:

Em 13/08/2014, o candidato à presidência da república Eduardo Campos faleceu, vítima de um acidente aéreo. O avião em que estava (jato Cessna) caiu em uma rua no bairro do Boqueirão, cidade de Santos (SP).

A queda da aeronave destruiu quase por completo os imóveis da região, dentre os quais o apartamento de Regina.

De acordo com os registros da ANAC, o jato Cessna estava arrendado para a empresa AF Ltda., sendo esta empresa a operadora legal da aeronave.

Regina ajuizou ação de indenização por danos morais e materiais contra AF Ltda, arrendatária do avião.

A empresa AF apresentou contestação e arguiu sua ilegitimidade passiva, tendo em vista que, antes do acidente, teria transferido a posse da aeronave aos empresários João e Apolo. Eles eram os possuidores diretos da aeronave, eles que estavam usando como quisessem e, portanto, eles seriam os responsáveis pela manutenção técnica, escolha e remuneração de pilotos.

Alegou que a aeronave foi cedida gratuitamente para campanha eleitoral.

Por fim, aduziu a responsabilidade exclusiva de João e Apolo.

 

A empresa arrendatária do avião foi condenada a pagar a indenização?

SIM. Vamos entender com calma.

 

Qual é o tipo de responsabilidade aqui envolvida?

Importante esclarecer que, em se tratando de danos decorrentes de transporte de pessoas, o Código Civil adota a responsabilidade pela teoria objetiva, conforme se observa no art. 734:

Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.

 

A responsabilidade civil aqui tem como fundamento o “risco da atividade”.

Vale ressaltar, contudo, que o art. 734 do Código Civil fala em danos causados “às pessoas transportadas e suas bagagens”.

Como se trata de transporte aéreo, deve-se analisar, de forma específica, o Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) – Lei nº 7.565/86.

O CBA não prevê, de forma expressa, a responsabilidade civil com base na teoria objetiva. Apesar disso, o STJ possui diversos julgados no sentido de que a responsabilidade civil no caso de transporte aeroviário é, sim, objetiva.

Assim, é importante definir uma primeira conclusão:

A responsabilidade do transportador aéreo é, em regra, objetiva.

Assim, independentemente de ter havido conduta culposa, se os danos indenizáveis decorrerem da atividade de transporte aéreo, haverá responsabilidade do explorador.

STJ. 4ª Turma. REsp 1.414.803/SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 4/5/2021.

 

Neste caso, era um avião fretado (e não uma linha regular). Mesmo assim se aplica o CBA?

SIM. O Código Brasileiro de Aeronáutica não se limita a regulamentar apenas o transporte aéreo regular de passageiros, realizado por quem detém a respectiva concessão, mas todo serviço de exploração de aeronave, operado por pessoa física ou jurídica, proprietária ou não, com ou sem fins lucrativos, de forma que o CBA será plenamente aplicado, desde que a relação jurídica não esteja regida pelo CDC.

Se for uma relação de consumo, prevalece o CDC em caso de divergências porque sua força normativa é extraída diretamente da CF/88 (art. 5º, XXXII).

STJ. 4ª Turma. REsp 1.414.803/SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 4/5/2021.

 

O que diz o CBA sobre a responsabilidade civil em caso de danos causados a terceiros no solo?

A responsabilidade será do explorador da aeronave, nos termos do art. 268 do CBA:

Art. 268. O explorador responde pelos danos a terceiros na superfície, causados, diretamente, por aeronave em voo, ou manobra, assim como por pessoa ou coisa dela caída ou projetada.

 

Diante deste cenário, os danos sofridos por terceiros em superfície (ex: Regina), causados diretamente pela atividade de transporte aéreo, serão de responsabilidade do explorador.

 

Quem é considerado “explorador”?

O CBA traz essa definição em seu art. 123:

Art. 123. Considera-se operador ou explorador de aeronave:

I - a pessoa natural ou jurídica prestadora de serviços aéreos; (Redação dada pela Lei nº 14.368, de 2022)

II - a pessoa natural ou jurídica que utilize aeronave, de sua propriedade ou de outrem, de forma direta ou por meio de prepostos, para a realização de operações que não configurem a prestação de serviços aéreos a terceiros; (Redação dada pela Lei nº 14.368, de 2022)

III - o fretador que reservou a condução técnica da aeronave, a direção e a autoridade sobre a tripulação;

IV - o arrendatário que adquiriu a condução técnica da aeronave arrendada e a autoridade sobre a tripulação.

 

Obs: na época dos fatos (antes da Lei nº 14.368/2022), os inciso II tinha a seguinte redação: “II - o proprietário da aeronave ou quem a use diretamente ou através de seus prepostos, quando se tratar de serviços aéreos privados;”

A doutrina esclarece que a exploração, nos casos acima referenciados, pode ocorrer independente do título de propriedade ou de posse, mediante qualquer forma lícita.

 

No caso concreto, a empresa AF Ltda pode ser considerada “exploradora”, para os fins acima explicados?

SIM. A empresa demandada, na qualidade de arrendatária e possuidora indireta da aeronave acidentada, nos termos do CBA, é considerada exploradora e, nessa condição, responsável pelos danos provocados a terceiros em superfície.

O terceiro vítima de acidente aéreo, tripulante ou em superfície, e o transportador são, respectivamente, consumidor por equiparação e fornecedor.

Assim, se um avião cai em um bairro residencial e causa danos aos seus moradores, estes serão considerados consumidores por equiparação (bystanders), mesmo não sendo passageiros ou terem qualquer tipo de contrato com a companhia aérea.

Em uma tradução literal, bystanders significa “espectadores”.

Os bystanders estão previstos no próprio CDC:

Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento.

 

A empresa AF deve ser responsabilidade mesmo tendo cedido o avião para a campanha?

SIM. Para Regina, vítima do acidente e considerada consumidora por equiparação, a empresa AF é aparentemente responsável, ainda que outros sujeitos (João e Apolo) tenham supostamente se responsabilizado pela manutenção do avião.

Além disso, como Regina é reconhecida como consumidora por equiparação, todos os fornecedores do serviço deverão ser solidariamente responsáveis.

Nas exatas palavras do Min. Salomão:

“Dessarte, o raciocínio desenvolvido pretende fundamentar duas assertivas, que conferem ainda mais robustez à solução apresentada: 1ª) a teoria da aparência é fator legitimador do ajuizamento da ação de ressarcimento dos danos pelo defeito do serviço contra o aparente responsável, ainda que outros sujeitos houvessem de ser responsabilizados; 2ª) a responsabilidade pela prestação defeituosa do transporte aéreo, porque ancorada também nas normas de direito consumerista, será solidariamente repartida entre todos os fornecedores do serviço, no caso, todos os que se enquadrarem no conceito de explorador e, desde que tenha sido demandado.”

 

Vale ressaltar que o partido político é considerado contratante do serviço de transporte aéreo, ainda que dito contrato não tenha sido oneroso, ou seja, ainda que a empresa tenha cedido gratuitamente a aeronave.

O contrato de transporte aéreo é pacto bilateral, eis que gera obrigações para ambas as partes. A contratada tem como obrigação entregar o passageiro ou a carga em seu destino com segurança e integralidade. Por outro lado, o contratante deve pagar por este serviço, porque, em regra, será oneroso. Todavia, nada impede a pactuação na modalidade gratuita, consoante prevê, inclusive, o art. 256, § 2º, do CBA.

 

Em suma:

 

SITUAÇÃO 2: VÍTIMA AJUIZOU A AÇÃO CONTRA OS POSSUIDORES DIRETOS DA AERONAVE

O caso concreto foi, com adaptações, foi o seguinte:

Conforme explicado acima, o avião em que estava Eduardo Campos caiu e, na colisão, destruiu diversos imóveis residenciais.

De acordo com os registros da ANAC, o jato Cessna estava arrendado para a empresa AF Ltda.

Ocorre que a empresa AF não estava na posse direta do avião. Ela havia cedido a aeronave para dois empresários João e Apolo. Eles eram os possuidores diretos da aeronave e a usavam para fazer viagens.

Com a queda da aeronave, o apartamento de Patrícia foi destruído.

Patrícia ajuizou ação de indenização por danos morais e materiais contra João e Apolo, considerando que, na visão da autora, eles eram os proprietários da aeronave.

Veja que este caso é diferente do acima explicado no qual Regina ajuizou a ação contra a arrendatária (possuidora indireta). Aqui, Patrícia ingressou com a ação contra os possuidores diretos.

 

Os possuidores diretos do avião foram condenados a pagar a indenização?

SIM.

A ação foi ajuizada contra João e Apolo porque a autora pensava que eles eram os proprietários da aeronave. Em contestação, os réus alegaram sua ilegitimidade passiva, negando a qualidade de proprietários ou exploradores/operadores da aeronave.

O juiz e o TJ/SP concluíram que:

1) a aeronave foi objeto de um contrato arrendamento mercantil (a arrendatária era a empresa AF);

2) os réus deste recurso tinham a posse da aeronave, quando do acidente, na qualidade de cessionários de direitos do arrendamento, não formalizado à época do acontecimento. Em outras palavras, a arrendatária fez uma cessão informal do avião para João e Apolo.

 

Possuidor da aeronave também pode ser considerado explorador

Os réus João e Apolo, na qualidade de possuidores da aeronave acidentada, são considerados exploradores e, nessa condição, são também responsáveis pelos danos provocados a terceiros em superfície.

Conforme já explicado, o terceiro vítima de acidente aéreo, tripulante ou em superfície, e o transportador são, respectivamente, consumidor por equiparação e fornecedor.

No caso concreto, os réus pareciam ser os proprietários da aeronave, razão pela qual deve ser invocada, em favor da autora, a teoria da aparência, pela qual se busca valorizar o estado de fato e reconhecer as circunstâncias efetivamente presentes nas relações jurídicas, concedendo proteção a terceiros de boa-fé (STJ. 4ª Turma. REsp 1.358.513/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 12/5/2020).

Além disso, como Patrícia é reconhecida como consumidora por equiparação, todos os fornecedores do serviço deverão ser solidariamente responsáveis, inclusive, os possuidores diretos.

Não competia à consumidora investigar se o contrato de arrendamento mercantil havia sido oficializado. Muito menos caberia às vítimas dos danos provocados pela atividade aérea apurar os titulares da posse direta ou indireta da aeronave, por serem a parte vulnerável da relação jurídica.

Para o STJ, o juiz agiu corretamente ao indeferir o pedido de denunciação da lide feito pelos réus João e Apolo que queriam a presença da empresa AF na lide. Isso porque o art. 88 do CDC veda expressamente a denunciação à lide nas ações derivadas de relações de consumo.

 

Em suma:

 

DOD Plus – julgados correlatos

O prazo prescricional nas ações de responsabilidade civil por acidente aéreo nacional é de 5 anos, com base no Código de Defesa do Consumidor.

STJ. 4ª Turma. REsp 1281090-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 7/2/2012.

 

A proprietária, na qualidade de arrendadora de aeronave, não pode ser responsabilizada civilmente pelos danos causados por acidente aéreo, quando há o rompimento do nexo de causalidade, afastando-se o dever de indenizar

Caso adaptado: estava sendo realizado um evento em comemoração aos 55 anos do aeródromo. Como parte das comemorações, as pessoas podiam pagar um ingresso para participar de voo panorâmico no local. Larissa e outros passageiros embarcaram, então, em um avião Cessna 310, pilotado por João. João, o piloto do primeiro avião, agindo de forma imprudente e imperita, efetuou manobras arriscadas e, ao efetuar um rasante, acabou colidindo com um segundo avião (Cessna 182), que estava em processo de decolagem. O piloto do segundo avião não teve culpa pelo acidente. Todas as pessoas presentes nas duas aeronaves acabaram falecendo. Vale ressaltar que o segundo avião (Cessna 182) pertencia à empresa Klabin e foi arrendado para o aeródromo para participar do evento. Os pais de Larissa ajuizaram ação de indenização por danos morais e materiais contra a Klabin (arrendadora da segunda aeronave). O STJ entendeu que a empresa arrendadora não tem o dever de indenizar, considerando que não praticou ato suficiente para provocar o dano sofrido pela vítima.

STJ. 4ª Turma. REsp 1414803-SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 04/05/2021(Info 695).



Dizer o Direito!