terça-feira, 8 de novembro de 2022
A inquirição de testemunhas diretamente pelo magistrado que assume o protagonismo na audiência de instrução e julgamento viola o art. 212 do CPP
Art. 212 do CPP e Lei nº
11.690/2008
O
art. 212 do Código de Processo Penal dispõe sobre a forma de inquirição das
testemunhas na audiência. Este dispositivo foi alterado no ano de 2008 e
atualmente prevê:
Art. 212.
As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não
admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação
com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.
Parágrafo
único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.
(Redação
dada pela Lei nº 11.690/2008)
Com a reforma do CPP, operada
pela Lei nº 11.690/2008, a participação do juiz na inquirição das testemunhas
foi reduzida ao mínimo possível.
Desse modo, as perguntas agora
são formuladas diretamente pelas partes (MP e defesa) às testemunhas (sistema
de inquirição direta ou cross examination).
Quem começa perguntando: quem
arrolou
Outra inovação trazida é pela
Lei nº 11.690/2008: quem começa perguntando à testemunha é a parte que teve a
iniciativa de arrolá-la.
Ex: na denúncia, o MP arrolou
duas testemunhas (Carlos e Fernando). A defesa, na resposta escrita, também
arrolou uma testemunha (André). No momento da audiência de instrução, inicia-se
ouvindo as testemunhas arroladas pelo MP (Carlos e Fernando).
Quem primeiro fará perguntas a
essas testemunhas?
O Ministério Público. Quando o
MP acabar de perguntar, a defesa terá direito de formular seus questionamentos
e, por fim, o juiz poderá complementar a inquirição, se houver pontos não
esclarecidos.
Depois de serem ouvidas todas
as testemunhas de acusação, serão inquiridas as testemunhas de defesa (no
exemplo dado, apenas André). Quem primeiro fará as perguntas a André?
A defesa. Quando a defesa
acabar de perguntar, o Ministério Público terá direito de formular
questionamentos e, por fim, o juiz poderá complementar a inquirição, se houver
pontos não esclarecidos.
Como funciona na prática a
inquirição?
As perguntas são formuladas
pelas partes diretamente à testemunha.
É o chamado sistema da inquirição direta.
O sistema de inquirição direta
divide-se em:
a) direct examination (quando
a parte que arrolou a testemunha faz as perguntas) e
b) cross examination
(quando a parte contrária é quem formula as perguntas). Em provas, contudo, é
comum vir a expressão cross examination
como sinônima de inquirição direta.
Ex: o Juiz passa a palavra ao
promotor: “Dr., o senhor pode formular as perguntas diretamente à testemunha
arrolada pela acusação.”
Daí, então, o Promotor inicia
as perguntas, dirigindo-se diretamente à testemunha: “Você viu o réu matar a vítima? O réu segurava um revólver? Qual era a
cor de sua camisa?”
O que o juiz fará?
Em regra, o juiz deverá apenas
ficar calado, ouvindo e valorando, em seu íntimo, as perguntas e as respostas.
O juiz deverá, contudo,
intervir e indeferir a pergunta formulada pela parte caso se verifique uma das
seguintes situações:
a) Quando a pergunta feita pela
parte puder induzir a resposta da testemunha;
b) Quando a pergunta não tiver
relação com a causa;
c) Quando a pergunta for a
repetição de outra já respondida.
Se ocorrer alguma dessas três
situações, o juiz deverá indeferir a pergunta antes que a testemunha responda.
Como funciona na prática a
ordem das perguntas?
As partes formulam as perguntas à testemunha antes do juiz,
que é o último a inquirir.
A ordem de perguntas é atualmente a seguinte:
1º) A parte que arrolou a testemunha faz as perguntas que
entender necessárias;
2º) A parte contrária àquela que arrolou a testemunha faz
outras perguntas;
3º) O juiz, ao final, poderá complementar a inquirição sobre
os pontos não esclarecidos.
Ex: Ivo foi arrolado como testemunha pela defesa. A defesa
do réu começa perguntando. Quando acabar, o juiz passa a palavra ao MP, que irá
formular as perguntas que entender necessárias. Por fim, o juiz poderá
perguntar sobre algum ponto que não foi esclarecido.
Vimos que o juiz é, portanto, o
último a perguntar, fazendo-o apenas para complementar pontos não esclarecidos.
Feita essa revisão, veja agora o
seguinte caso enfrentado pelo STJ:
Sandro foi denunciado pelo crime
de receptação (art. 180 do CP).
Foi designada audiência de
instrução em julgamento.
Iniciada a instrução, quando da
inquirição das testemunhas, a magistrada de primeiro grau, depois de qualificar
a primeira testemunha, passou a fazer perguntas relacionadas aos fatos.
Por outro lado, o Ministério
Público absteve-se de inquirir as testemunhas, vítima ou acusado.
O réu foi condenado.
A defesa interpôs apelação
requerendo que fosse declarada a nulidade da audiência de instrução em
decorrência da não observância do art. 212 do CPP.
O advogado argumentou que a “magistrada
não apenas conduziu a audiência, mas protagonizou as oitivas das testemunhas,
de modo que a representante do Ministério Público não fez sequer uma pergunta,
ou seja, todos elementos probatórios foram produzidos pela magistrada”.
A questão chegou até o STJ.
Os argumentos da defesa foram acolhidos?
SIM.
Inicialmente, é importante relembrar que o reconhecimento de
vício que leve à anulação de ato processual exige a efetiva demonstração de
prejuízo ao acusado, por força do art. 563 do CPP (pas de nullité sans grief):
Art. 563. Nenhum ato será declarado nulo, se da
nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa.
Na instrução processual, a
inquirição da testemunha deverá ser feita a partir de perguntas formuladas
diretamente pelas partes, podendo o Juiz completar a inquirição, em relação aos
pontos não esclarecidos (art. 212 do CPP).
No caso dos autos, a maioria das
perguntas foi formulada pela magistrada, tendo a defesa realizado
questionamentos, sendo que a representante do Ministério Público absteve-se de
se manifestar.
Assim, restou evidenciado que a juíza
assumiu o protagonismo na inquirição de testemunhas, em clara violação ao art.
212 do CPP.
Tendo a prova sido produzida
irregularmente, presumido o prejuízo sofrido pela defesa do paciente, uma vez
que é inviável avaliar a instrução processual se o juízo de origem tivesse
obedecido ao dispositivo tido por violado.
Em suma:
STJ. 6ª Turma. HC 735.519-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado
em 16/08/2022 (Info 745).