Imagine
a seguinte situação hipotética:
João adquiriu, pela internet, duas
passagens aéreas, mediante a utilização de 10.000 pontos de milhas do programa
da empresa aérea Latam, para viajar à Curitiba (PR).
Por
questões pessoais, João precisou cancelar a viagem e solicitou, também pela
internet, o reembolso das milhas, mas não obteve êxito.
A
Latam informou que o reembolso de passagens adquiridas com pontos só poderia
ser feito no aeroporto, ou por intermédio da central de vendas, por telefone,
mas não pelo site.
Sem
conseguir resolver a situação, João ajuizou ação contra a Latam para tentar
reaver as milhas decorrente do cancelamento, além de pedir a condenação da
companhia em danos morais.
A
Latam contestou alegando que não existe previsão legal que a obrigue a
disponibilizar esse tipo de atendimento pela internet. Afirmou que já oferece
aos consumidores outros mecanismos gratuitos que possibilitam a alteração da
viagem e solicitação de reembolsos.
Os
argumentos da companhia aérea foram acolhidos pelo STJ?
NÃO.
Vamos entender com calma.
Programas
de fidelidade representam prestação de serviço regida pelo CDC
Os
programas de fidelidade não dispõem de previsão normativa específica no
ordenamento jurídico. Em outras palavras, não existe lei tratando de forma
específica sobre esse tema.
Vale
ressaltar, contudo, que, mesmo sem essa previsão legal específica, pode-se
concluir que o serviço prestado pela companhia aérea de emissão ou resgate de
passagens por meio de milhas configura uma reação de consumo, de forma que o
adquirente da passagem deve ser considerado consumidor e a companhia aérea
fornecedora, nos termos dos arts. 2º e 3º do CDC.
Após
a pontuação obtida pelo aderente do programa, é a empresa área que emite as
passagens. O gerenciamento dos bilhetes, tanto para a emissão, alteração ou
cancelamento é realizado pela própria companhia. Embora o programa de
fidelidade não seja ofertado aos seus clientes de maneira onerosa, não se
dúvida que proporciona a lucratividade da empresa pela adesão dos consumidores
ao programa.
Negativa
da companhia de cancelar pela internet é prática abusiva
No caso, a conduta
da empresa aérea revelou-se abusiva, nos termos do art. 39, V, do CDC:
Art.
39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas
abusivas:
(...)
V
- exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;
A
companhia aérea implementou a opção de resgate das passagens aéreas obtidas por
milhas em sua plataforma digital. Ela não estava obrigada a fazer isso, mas
fez.
A
partir do momento em que implementou o resgate de passagens por pontos pela
internet, ela criou, para si, a obrigação de também disponibilizar a opção de
cancelamento pela internet.
A
companhia inseriu no mercado prática facilitadora para o resgate de passagem
aérea e, por essa razão, teria que também disponibilizar a funcionalidade para
as hipóteses de cancelamento.
Desestímulo
para o consumidor cancelar
A
conduta da companhia, além de se revelar contraditória e desprovida de
fundamento técnico ou mesmo econômico, como se poderia cogitar, impunha ônus
excessivo ao consumidor, na medida em que este teria que se deslocar às lojas
físicas da empresa (e apenas aquelas localizadas nos aeroportos) ou utilizar o call
center, medidas indiscutivelmente menos efetivas quando comparadas ao meio
eletrônico.
Disso
se conclui que a conduta serviria mesmo como um desestímulo ao consumidor no
caso do cancelamento da passagem adquirida pelo programa de fidelidade e,
assim, reaver os pontos utilizados para a compra - situação que geraria, por
outro lado, vantagem ao fornecedor.
A
conduta abusiva da companhia, portanto, revela-se dissociada da boa-fé que deve
reger todas as relações jurídicas privadas, e não apenas aquelas sob os
influxos do CDC.
O
abuso do direito se caracteriza sempre que identificada determinada ação pelo
seu titular, que ultrapassa os limites do direito que lhe foi concedido e,
nessa esteira, ofende o ordenamento, acarretando um resultado ilícito. O abuso
ocorre sempre que, aparentemente usando de um direito regular, haja uma
distorção, por um “desvio de finalidade”, de modo a prejudicar a outra parte
interessada ou a terceiros.
Não
se trata de ingerência desmotivada na atividade empresarial
O
STJ disse que, ao obrigar a companhia aérea a oferecer o serviço de
cancelamento pela internet, não está fazendo uma ingerência desmotivada na
atividade empresarial. O que está é exigindo que a companhia tenha um comportamento
coerente e que não cause danos ou inconvenientes aos consumidores.
Os
direitos do consumidor e a livre iniciativa não são, em linha de princípio,
excludentes, devendo, na verdade, ser conciliados, na busca de uma solução que
atenda a ambos, num cenário em que os abusos não têm espaço.
Em
suma:
STJ. 4ª Turma. REsp 1.966.032-DF,
Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 16/08/2022 (Info 745).