Imagine a seguinte situação
hipotética:
João era dono de um imóvel
(galpão). Ele alugou esse imóvel para a empresa Gama Ltda.
Passado algum tempo, João vendeu
esse imóvel para a empresa Alfa Empreendimentos Imobiliários.
A empresa Alfa enviou uma
notificou extrajudicial para a Gama fazendo a denúncia da locação, por não ter
interesse em manter o contrato nos termos estipulados originalmente. A Alfa
disse: se quiser manter a locação, teremos que aumentar o aluguel. Se não
quiser, deverá desocupar o imóvel em 90 dias.
A Gama não se manifestou sobre a
nova proposta contratual para renovar a locação nem desocupou o imóvel.
Diante disso, a Alfa propôs ação
de imissão de posse contra a empresa Gama Ltda.
A autora requereu a concessão da
tutela antecipada para imiti-la na posse do imóvel, com a expedição de mandado
de imissão de posse determinando a desocupação em prazo não superior a 48h. Ao
final, requereu que a ação fosse julgada procedente para imitir,
definitivamente, a autora na posse do imóvel, bem como a condenação da ré ao
pagamento de perdas e danos, consistentes no pagamento dos aluguéis em atraso.
A ré contestou a demanda
afirmando que não cabe ação de imissão de posse em casos de relação locatícia.
O STJ concordou com essa
alegação da ré?
SIM. Vamos por partes.
O que acontece se determinado
imóvel, que está alugado, for vendido para outra pessoa que não o locatário?
Regra: o adquirente poderá
denunciar o contrato de locação, tendo o locatário que desocupar o imóvel no
prazo máximo de 90 dias.
Obs: denunciar um contrato consiste
na conduta de declarar a intenção de encerrar o pacto.
A alienação do imóvel permite ao
adquirente denunciar o contrato de locação, tendo em vista a incidência do
princípio da relatividade dos efeitos contratuais, um dos princípios
fundamentais da teoria geral dos contratos, segundo o qual as estipulações
contratuais só produzem efeitos entre as partes contratantes, não atingindo
terceiros estranhos ao negócio jurídico, salvo se presente expressa cláusula de
vigência devidamente averbada.
Exceção: o contrato não
poderá ser denunciado e a locação continuará em vigor se estiverem presentes os
seguintes requisitos cumulativos:
a) o contrato de locação for por
tempo determinado;
b) o contrato de locação contiver
cláusula de vigência em caso de alienação (conhecida doutrinariamente como
“cláusula de vigência” ou “cláusula de respeito”);
c) o contrato de locação estiver
averbado junto à matrícula do imóvel.
Nesse caso, o adquirente, ao
comprar o imóvel, já estava ciente da existência da locação e, portanto, terá
que respeitar o contrato, que irá vigorar até que termine o seu prazo.
É isso que está previsto expressamente na Lei nº 8.245/91
(lei que rege as locações dos imóveis urbanos):
Art. 8º Se o imóvel for alienado
durante a locação, o adquirente poderá denunciar o contrato, com o prazo de
noventa dias para a desocupação, salvo se a locação for por tempo determinado e
o contrato contiver cláusula de vigência em caso de alienação e estiver
averbado junto à matrícula do imóvel.
Exceção ao princípio da relatividade
dos contratos
De acordo com o princípio da
relatividade dos contratos, o ajuste somente gera efeitos entre as partes (res
inter alios acta), não obrigando terceiros.
Assim, um contrato de locação, em
regra, somente obriga o locador, o locatário e eventual fiador que tenha
figurado no pacto.
Os direitos e as obrigações
nascidos de um contrato não atingem terceiros, cuja manifestação de vontade não
teve participação na formação desse negócio jurídico.
A parte final do art. 8º,
portanto, é uma hipótese de exceção ao princípio da relatividade dos contratos.
Ação adequada para retomar
a posse do imóvel
O problema, no caso concreto, foi
a escolha da ação proposta.
Por força de expressa disposição do art. 5º da Lei nº 8.245/91,
a ação adequada para retomar a posse do imóvel em casos de aquisição de imóvel
locado é a ação de despejo:
Art. 5º Seja qual for o
fundamento do término da locação, a ação do locador para reaver o imóvel é a de
despejo.
Parágrafo único. O disposto neste
artigo não se aplica se a locação termina em decorrência de desapropriação, com
a imissão do expropriante na posse do imóvel.
Segundo a doutrina, a alienação
do imóvel durante a relação locatícia não rompe a locação, que continuará tendo
existência e validade, tanto que o adquirente que assume a posição do antigo
proprietário tem o direito de denunciar o contrato se assim desejar ou de
permanecer inerte e sub-rogar-se nos direitos e deveres do locador dando
continuidade à relação locatícia.
Logo, o adquirente tem direito de
denunciar o contrato de locação na forma do art. 8º, mas só poderá reaver a
posse direta do imóvel mediante o ajuizamento da ação de despejo, nos termos do
art. 5º.
Em suma:
STJ. 3ª
Turma. REsp 1.864.878-AM, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em
30/08/2022 (Info 751).