Dizer o Direito

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Produtor rural pode pedir recuperação judicial?

 

Recuperação judicial

A recuperação judicial surgiu para substituir a antiga “concordata” e tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise do devedor, a fim de permitir que a atividade empresária se mantenha e, com isso, sejam preservados os empregos dos trabalhadores e os interesses dos credores.

A recuperação judicial consiste, portanto, em um processo judicial, no qual será construído e executado um plano com o objetivo de recuperar a empresa que está em vias de efetivamente ir à falência.

Nas palavras do Min. Luis Felipe Salomão:

“A recuperação judicial é instrumento jurisdicional de superação da crise econômico-financeira da atividade empresarial. Revela-se como artefato viabilizador do desenvolvimento econômico, social, cultural e ambiental, na medida em que promove a continuidade da atividade econômica da empresa com potencial de realização.”

 

Fases da recuperação

De forma resumida, a recuperação judicial possui três fases:

a) postulação: inicia-se com o pedido de recuperação e vai até o despacho de processamento;

b) processamento: vai do despacho de processamento até a decisão concessiva;

c) execução: da decisão concessiva até o encerramento da recuperação judicial.

 

Requisitos para a recuperação judicial

A recuperação judicial é um processo judicial, ou seja, é um pedido que será formulado ao juiz.

Para isso, no entanto, é necessário que a devedora cumpra alguns requisitos previstos no art. 48 da Lei nº 11.101/2005:

Art. 48. Poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos e que atenda aos seguintes requisitos, cumulativamente:

I – não ser falido e, se o foi, estejam declaradas extintas, por sentença transitada em julgado, as responsabilidades daí decorrentes;

II – não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial;

III - não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial com base no plano especial de que trata a Seção V deste Capítulo;

IV – não ter sido condenado ou não ter, como administrador ou sócio controlador, pessoa condenada por qualquer dos crimes previstos nesta Lei

 

Requisito temporal de 2 anos

O primeiro requisito para que a empresa possa requerer a recuperação judicial é que ela esteja exercendo regulamente suas atividades há, no mínimo, 2 anos (caput do art. 48) no momento do pedido.

O prazo de 2 anos tem como objetivo principal conceder a recuperação judicial apenas a empresários ou a sociedades empresárias que se acham, de certo modo, consolidados no mercado e que apresentem certo grau de viabilidade econômico-financeira capazes de justificar o sacrifício dos credores.

Segundo Marlon Tomazzete, apenas em relação a empresas sérias, relevantes e viáveis “é que se justifica o sacrifício dos credores em uma recuperação judicial. Uma empresa exercida há menos de dois anos ainda não possui relevância para a economia que justifique a recuperação.” (Curso de direito empresarial: falência e recuperação de empresas. São Paulo: Atlas, 2011, p. 60).

 

ý (Delegado PC/BA 2018 VUNESP) Poderá requerer a recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades empresariais pelo período mínimo de seis meses. (errado)

 

A partir de quando se começa a contar esse prazo de 2 anos?

Em regra, da data de inscrição na junta comercial competente.

Logo, no pedido de recuperação judicial, deverá ser juntada uma certidão emitida pela respectiva junta comercial na qual conste a inscrição do empresário individual ou o registro do contrato social ou do estatuto da sociedade.

Desse modo, estão proibidos de requerer recuperação judicial, os empresários “de fato” ou “irregulares”, isto é, aqueles que exercem a atividade empresarial de modo informal, sem registro na junta comercial.

 

Por que se falou “em regra”? Existe alguma exceção?

SIM. O caso do empresário rural.

Todo empresário, antes de iniciar suas atividades, deverá se inscrever no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, isto é, na Junta Comercial. É o que prevê o art. 967 do Código Civil:

Art. 967. É obrigatória a inscrição do empresário no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, antes do início de sua atividade.

 

Para o empresário rural, todavia, o Código Civil concedeu a faculdade de se registrar ou não perante a Junta da sua unidade federativa. Por isso, o dispositivo utiliza o verbo “pode”:

Art. 971. O empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode, observadas as formalidades de que tratam o art. 968 e seus parágrafos, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro.

 

Ora, se pode ele requerer inscrição, significa que o empreendedor rural, diferentemente do empreendedor econômico comum, não está obrigado a requerer inscrição antes de empreender.

Desse modo, o empreendedor rural, inscrito ou não, está sempre em situação regular; não existe situação irregular para este, mesmo ao exercer atividade econômica agrícola antes de sua inscrição, por ser esta facultativa.

Por isso, se exerce atividade de produção de bens agrícolas, esteja inscrito ou não, estará em situação regular, justamente porque poderia se inscrever ou não.

 

Assim, os efeitos decorrentes da inscrição são distintos para as duas espécies de empresário:

• Para o empreendedor rural, o registro, por ser facultativo, tem o efeito constitutivo de equipará-lo, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro, sendo tal efeito apto a retroagir (ex tunc), pois a condição regular de empresário já existia antes mesmo do registro.

• Já para o empresário comum, o registro, por ser obrigatório, somente pode operar efeitos prospectivos (ex nunc), pois apenas com o registro é que ingressa na regularidade e se constitui efetivamente e validamente, empresário.

 

O registro do produtor rural, portanto, apenas o transfere do regime do Código Civil para o regime empresarial, com efeito ex tunc, pois não o transforma em empresário regular, condição que já antes ostentava apenas em decorrência do anterior exercício da atividade econômica rural.

Assim, a qualidade de empresário rural regular já se fazia presente desde o início do exercício profissional de sua atividade, sendo irrelevante, para fins de regularização, a efetivação da inscrição na Junta Comercial, pois não estava sujeito a registro.

Então, o produtor rural é regido pelo Código Civil, enquanto não registrado e, querendo, passa ao regime jurídico empresarial, após a inscrição é facultativa.

 

Inscrição de empresário na Junta Comercial é ato declaratório

Há doutrinadores que sustentam que o registro apenas declara a condição de empresário individual, tornando-o regular, mas não o transforma em empresário. O próprio STJ já afirmou a natureza declaratória atribuída ao registro efetivado pelo empresário na Junta Comercial.

Assim, nos termos da teoria da empresa, a qualidade de empresário rural também se verificará sempre que comprovado o exercício profissional da atividade econômica rural organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, independentemente da efetivação da inscrição na Junta Comercial.

 

No caso de empresário rural, para fins de cômputo desses 2 anos, é possível aproveitar o tempo em que ele não estava registrado

O empresário rural, para fazer o pedido de recuperação judicial, deve estar registrado.

Assim, o registro empresarial deve ser anterior ao pedido de recuperação judicial.

No entanto, pelas razões acima explicadas, esses 2 anos, exigidos pelo caput do art. 48, não precisam ser exercidos após o registro. No caso de empresário rural, o exercício da atividade econômica rural pelo prazo de 2 anos pode ser computado somando-se ao período anterior e posterior ao registro.

Dessa feita, o registro empresarial deve, sim, ser realizado antes da impetração da recuperação judicial (critério formal). Contudo, a comprovação da regularidade da atividade empresarial pelo biênio mínimo (art. 48 da Lei nº 11.101/2005) será aferida pela manutenção e continuidade do exercício profissional (critério material).

 

Em suma:

O cômputo do período de dois anos de exercício da atividade econômica, para fins de recuperação judicial, nos termos do art. 48 da Lei nº 11.101/2005, aplicável ao produtor rural, inclui aquele anterior ao registro do empreendedor.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.811.953-MT, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 06/10/2020 (Info 681).

STJ. 4ª Turma. REsp 1.800.032-MT, Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. Acd. Min. Raul Araújo, julgado em 05/11/2019 (Info 664).

 

Tema

Essa conclusão foi agora reafirmada em recurso especial repetitivo:

Ao produtor rural que exerça sua atividade de forma empresarial há mais de dois anos, é facultado requerer a recuperação judicial, desde que esteja inscrito na Junta Comercial no momento em que formalizar o pedido recuperacional, independentemente do tempo de seu registro.

STJ. 2ª Seção. REsp 1.905.573-MT, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 22/06/2022 (Recurso Repetitivo – Tema 1145) (Info 743).

 

Lei nº 14.112/2020

A Lei nº 14.112/2020 promoveu algumas mudanças nos parágrafos do art. 48 da Lei nº 11.101/2005. Veja os dispositivos que interessam para fins do julgado analisado:

Art. 48. Poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos e que atenda aos seguintes requisitos, cumulativamente:

(...)

§ 2º No caso de exercício de atividade rural por pessoa jurídica, admite-se a comprovação do prazo estabelecido no caput deste artigo por meio da Escrituração Contábil Fiscal (ECF), ou por meio de obrigação legal de registros contábeis que venha a substituir a ECF, entregue tempestivamente.     (Redação dada pela Lei nº 14.112, de 2020)

§ 3º Para a comprovação do prazo estabelecido no caput deste artigo, o cálculo do período de exercício de atividade rural por pessoa física é feito com base no Livro Caixa Digital do Produtor Rural (LCDPR), ou por meio de obrigação legal de registros contábeis que venha a substituir o LCDPR, e pela Declaração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (DIRPF) e balanço patrimonial, todos entregues tempestivamente. (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)

§ 4º Para efeito do disposto no § 3º deste artigo, no que diz respeito ao período em que não for exigível a entrega do LCDPR, admitir-se-á a entrega do livro-caixa utilizado para a elaboração da DIRPF.   (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)

§ 5º Para os fins de atendimento ao disposto nos §§ 2º e 3º deste artigo, as informações contábeis relativas a receitas, a bens, a despesas, a custos e a dívidas deverão estar organizadas de acordo com a legislação e com o padrão contábil da legislação correlata vigente, bem como guardar obediência ao regime de competência e de elaboração de balanço patrimonial por contador habilitado.    (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)

 

Desse modo, nos termos do dispositivo transcrito acima, caso o registro ocorra após o início de suas atividades, a comprovação do exercício dessas atividades pelo prazo mínimo exigido para o requerimento de recuperação poderá ser realizada nas formas especificadas nos §§ 2º ao 5º.

O ponto mais importante está no novo § 3º do art. 48 porque ele permite que o produtor rural pessoa física (e não apenas o que atue como pessoa jurídica) possa pedir recuperação judicial. Nesse caso, ele verá obedecer a regra do art. 70-A:

Art. 70-A. O produtor rural de que trata o § 3º do art. 48 desta Lei poderá apresentar plano especial de recuperação judicial, nos termos desta Seção, desde que o valor da causa não exceda a R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais). (Incluído pela Lei nº 14.112/2020)



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