Dizer o Direito

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Não se deve designar a audiência de que trata o art. 16 da LMP se a mulher manifesta interesse de desistir da representação somente após o recebimento da denúncia

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João e Francisca eram casados.

Determinado dia, tiveram uma grave discussão e ele disse que iria matar a mulher.

No mesmo instante, Francisca decidiu que não queria mais viver com ele e, com medo da ameaça, procurou a Delegacia da Mulher.

O Ministério Público ofereceu denúncia contra João pela prática do crime de ameaça, previsto no art. 147 do Código Penal:

Art. 147. Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.

 

Qual é a natureza da ação penal no caso do crime de ameaça?

Trata-se de crime de ação penal pública condicionada. Assim, a denúncia somente pode ser oferecida se houver representação da vítima (art. 147, parágrafo único, do CP).

 

A pena do crime de ameaça é de 1 a 6 meses de detenção. Trata-se, portanto, de infração de menor potencial ofensivo. Por que não foram aplicadas, no exemplo acima, as medidas despenalizadoras da Lei nº 9.099/95 (suspensão condicional do processo e transação penal)?

A Lei Maria da Penha proíbe expressamente que se aplique a Lei nº 9.099/95 para os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher. Veja:

Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995.

 

Por essa razão, a suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha. Nesse sentido:

Súmula 536-STJ: A suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha.

 

Alguns de vocês podem estar se perguntando: “eu já ouvi dizer que a lesão corporal leve é crime de ação pública condicionada, salvo no caso de violência doméstica”. Isso significa que todo crime praticado contra a mulher envolvendo violência doméstica será de ação pública incondicionada?

NÃO.

Realmente, a lesão corporal leve cometida em detrimento da mulher, no âmbito doméstico e familiar, é crime de ação pública incondicionada. Isso porque o art. 88 da Lei nº 9.099/95 não se aplica para os casos de violência doméstica:

Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas.

 

Existe até um enunciado do STJ nesse sentido:

Súmula 542-STJ: A ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada.

 

Por outro lado, é errado dizer que todos os crimes praticados contra a mulher, em sede de violência doméstica, serão de ação penal incondicionada. Continuam existindo crimes praticados contra a mulher (em violência doméstica) que são de ação penal condicionada, desde que a exigência de representação esteja prevista no Código Penal ou em outras leis, que não a Lei nº 9.099/95.

Assim, por exemplo, a ameaça praticada pelo marido contra a mulher continua sendo de ação pública condicionada porque tal exigência consta do parágrafo único do art. 147 do CP.

O que a Súmula nº 542 do STJ afirma é que o delito de LESÃO CORPORAL praticado com violência doméstica contra a mulher é sempre de ação penal incondicionada porque o art. 88 da Lei nº 9.099/95 não pode ser aplicado aos casos da Lei Maria da Penha.

 

Voltando ao nosso exemplo:

Como houve representação da vítima, o Promotor de Justiça ofereceu denúncia contra o réu pela prática de ameaça (art. 147 do CP).

A denúncia foi recebida.

Passado algum tempo, a defesa protocolou um termo assinado por Francisca no qual ela se retrata e diz que não deseja o prosseguimento do processo contra João.

A juíza, porém, afirmou que a manifestação escrita da vítima deveria ser desconsiderada, considerando que a denúncia já havia sido recebida.

João foi condenado à pena de 1 mês de detenção, em regime aberto.

A defesa interpôs recurso de apelação, alegando a nulidade do feito, em razão da posterior retratação da vítima.

O recurso foi desprovido. O TJ afirmou que “a manifestação da vítima, no sentido de que o apelante não fosse mais punido, ocorreu durante a instrução criminal, ou seja, quando não era mais possível que ocorresse tal retratação”.

Ainda inconformado, o réu interpôs recurso especial alegando que a juíza deveria ter designado a audiência prevista no art. 16 da Lei nº 11.340/2006, ainda que posteriormente ao recebimento da denúncia:

Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

 

Salientou que a audiência prevista no art. 16 da Lei 11.340/2006 não se destina a uma confirmação da representação, mas à possibilidade de fiscalização da retratação da representação, valendo-se como direito subjetivo intransigível da vítima.

 

O STJ deu provimento ao recurso do réu?

NÃO. O magistrado somente deve designar a audiência prevista no art. 16 da Lei nº 11.340/2006 quando, antes do recebimento da denúncia, houver algum indício de que a vítima tem a intenção de se retratar, o que não ocorreu no caso dos autos.

A Lei Maria da Penha prevê um procedimento próprio para que a vítima possa eventualmente se retratar de representação já apresentada. Esse procedimento é regido pelo art. 16 da Lei nº 11.340/2006 que, no entanto, afirma que renúncia só será admitida antes do recebimento da denúncia.

 

Em suma:

A realização da audiência prevista no art. 16 da Lei n. 11.340/2006 somente se faz necessária se a vítima houver manifestado, de alguma forma, em momento anterior ao recebimento da denúncia, ânimo de desistir da representação.

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1.946.824-SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 14/06/2022 (Info 743).



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