Dizer o Direito

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

É possível o cancelamento unilateral de contrato de plano de saúde coletivo enquanto pendente tratamento médico de usuário acometido de doença grave?

 

Modalidades de planos de saúde

O art. 16, VII, da Lei nº 9.656/98 prevê que existem três modalidades de planos de saúde:

a) individual ou familiar;

b) coletivo empresarial e

c) coletivo por adesão.

 

Plano de saúde individual

O plano de saúde individual é aquele em que a pessoa física contrata diretamente com a operadora ou por intermédio de um corretor autorizado. A vinculação de beneficiários é livre, não havendo restrições relacionadas ao emprego ou à profissão do usuário em potencial (art. 3º da RN n. 195/2009 da ANS).

 

Planos de saúde coletivo

O plano de saúde coletivo é aquele contratado por uma empresa, conselho, sindicato ou associação junto à operadora de planos de saúde para oferecer assistência médica e/ou odontológica às pessoas vinculadas às mencionadas entidades, bem como a seus dependentes.

São dois os regimes de contratação de planos de saúde coletivos:

b) o coletivo empresarial, o qual garante a assistência à saúde dos funcionários da empresa contratante em razão do vínculo empregatício ou estatutário (art. 5º da RN nº 195/2009 da ANS); e

c) o coletivo por adesão, contratado por pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial, como conselhos, sindicatos, cooperativas e associações profissionais (art. 9º da RN nº 195/2009 da ANS).

 

Nos contratos de plano de saúde coletivo, portanto, a relação jurídica de direito material envolve uma operadora e uma pessoa jurídica que atua em favor de uma classe (coletivo por adesão) ou em favor de seus respectivos empregados (coletivo empresarial).

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Regina mantinha, há alguns anos, contrato de plano de saúde coletivo empresarial com a operadora Bradesco Saúde S.A.

Determinado dia, Regina recebeu um comunicado da empresa informando que o Bradesco Saúde cancelou unilateralmente os planos de saúde dos empregados e que não haveria mais cobertura a partir de março/2017.

Com a notícia do cancelamento, Regina procurou o Bradesco Saúde pretendendo continuar no plano, migrando para a modalidade individual. Ela explicou que estava em tratamento de câncer de mama e, por isso, precisava continuar recebendo assistência médica. A despeito disso, foi informada que o Bradesco não trabalhava com a modalidade de plano de saúde individual e, portanto, ela ficaria realmente sem cobertura.

Diante desse cenário, Regina propôs ação de obrigação de fazer contra o Bradesco Saúde para que fosse imediatamente restabelecido o convênio médico na forma individual com as mesmas condições anteriores adquiridas no plano coletivo.

A questão chegou até o STJ. Vamos entender o que foi decidido.

 

Rescisão em caso de plano de saúde INDIVIDUAL

No caso de plano de saúde individual, a própria Lei nº 9.656/98 reservou um tratamento mais restritivo para eventual rescisão.

O art. 13, parágrafo único, II, da Lei previu o seguinte:

Art. 13.  Os contratos de produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1º desta Lei têm renovação automática a partir do vencimento do prazo inicial de vigência, não cabendo a cobrança de taxas ou qualquer outro valor no ato da renovação.

Parágrafo único.  Os produtos de que trata o caput, contratados individualmente, terão vigência mínima de um ano, sendo vedadas:

(...)

II - a suspensão ou a rescisão unilateral do contrato, salvo por fraude ou não-pagamento da mensalidade por período superior a sessenta dias, consecutivos ou não, nos últimos doze meses de vigência do contrato, desde que o consumidor seja comprovadamente notificado até o quinquagésimo dia de inadimplência; e

 

Logo, o parágrafo único do art. 13 da Lei nº 9.656/98 proíbe a rescisão unilateral imotivada do plano privado de assistência à saúde individual ou familiar por iniciativa da operadora.

 

 

E a rescisão em caso de plano de saúde COLETIVO?

Em se tratando de plano de saúde coletivo (com quantidade igual ou superior a 30 beneficiários), a operadora pode fazer a rescisão unilateral e imotivada do contrato coletivo se cumpridos três requisitos:

a) o contrato contenha cláusula expressa prevendo a possibilidade de rescisão unilateral;

b) o contrato esteja em vigência por período de pelo menos 12 meses;

c) haja a prévia notificação da rescisão com antecedência mínima de 60 dias.

 

Esses requisitos estão previstos no art. 17 da Resolução Normativa DC/ANS nº 195/2009.

Desse modo:

É possível a resilição unilateral do contrato coletivo de saúde, uma vez que a norma inserta no art. 13, II, b, parágrafo único, da Lei 9.656/98 aplica-se exclusivamente a contratos individuais ou familiares.

STJ. 4ª Turma. AgInt nos Edcl no ARESP 1.197.972/SP, Rel. Min. Raul Araújo, DJ 20/3/2019.

 

Obs: em se tratando de contratos coletivos de plano de saúde com menos de 30 usuários, o STJ entende que eles se assemelham aos planos individuais ou familiares e, por isso, incide o CDC, obrigando a operadora a apresentar uma justificativa idônea para validar a rescisão unilateral, tendo em vista o escasso poder de barganha da estipulante, a vulnerabilidade do grupo de usuários e o necessário respeito aos princípios da boa-fé e da conservação dos contratos (STJ. 2ª Seção. EREsp 1.692.594/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 12/2/2020).

 

Primeira conclusão: poderia ter havido a rescisão unilateral

Como esse plano empresarial desfrutado por Regina era oferecido para mais de 30 usuários da empresa, tem-se que o Bradesco poderia sim ter promovido a rescisão unilateral. Isso porque o parágrafo único do art. 13 da Lei nº 9.656/98 restringe-se aos seguros e planos de saúde individuais ou familiares.

 

Regina pode exigir que o Bradesco ofereça para ela um plano individual mesmo ele não trabalhando, normalmente, com planos individuais?

NÃO.

Quando houver o cancelamento do plano privado coletivo de assistência à saúde, deverá ser permitida aos usuários a migração para planos individuais ou familiares, observada a compatibilidade da cobertura assistencial e a portabilidade de carências, desde que a operadora comercialize tal modalidade de contrato e o consumidor opte por se submeter às regras e aos encargos peculiares da avença.

Por outro lado, a operadora de plano de saúde não pode ser obrigada a oferecer plano individual a usuário de plano coletivo extinto se ela não disponibiliza no mercado tal tipo de plano.

Não é ilegal a recusa de operadoras de planos de saúde de comercializarem planos individuais por atuarem apenas no segmento de planos coletivos. Com efeito, não há norma alguma que as obrigue a atuar em determinado ramo de plano de saúde.

Vale ressaltar, ainda, que Regina teria direito à portabilidade para outra operadora que oferecesse plano individual:

Os beneficiários de plano de saúde coletivo, após a resilição unilateral do contrato pela operadora, têm direito à portabilidade de carências ao contratar novo plano observado o prazo de permanência no anterior, sem o cumprimento de novos períodos de carência ou de cobertura parcial temporária e sem custo adicional pelo exercício do direito.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.732.511-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 04/08/2020 (Info 677).

 

Em tal hipótese, caberá à operadora — que rescindiu unilateralmente o plano coletivo e que não comercializa plano individual — comunicar diretamente aos usuários sobre o direito ao exercício da portabilidade, "indicando o valor da mensalidade do plano de origem, discriminado por beneficiário", assim como o início e o fim da contagem do prazo de 60 dias (art.  8º, § 1º, da Resolução Normativa DC/ANS n. 438/2018).

 

Se não fizer a migração, Regina ficará desamparada?

NÃO. Havendo usuário do plano internado ou em pleno tratamento de saúde, a operadora, mesmo após exercer o direito à rescisão unilateral, deverá assegurar a continuidade dos cuidados assistenciais até a efetiva alta médica, por força da interpretação sistemática e teleológica do art. 8º, § 3º, alínea “b”, e art. 35-C, incisos I e II, da Lei nº 9.656/98, bem como do art. 16 da Resolução Normativa DC/ANS n. 465/2021.

Além de encontrar previsão nos dispositivos acima citados, essa conclusão também está amparada na boa-fé objetiva, na segurança jurídica, na função social do contrato e no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Ainda que haja motivação idônea para rescindir o contrato, o fim da cobertura não pode resultar em risco à preservação da saúde e da vida do usuário que se encontre em situação de extrema vulnerabilidade.

 

 

Em suma:

A operadora, mesmo após o exercício regular do direito à rescisão unilateral de plano coletivo, deverá assegurar a continuidade dos cuidados assistenciais prescritos a usuário internado ou em pleno tratamento médico garantidor de sua sobrevivência ou de sua incolumidade física, até a efetiva alta, desde que o titular arque integralmente com a contraprestação devida.

STJ. 2ª Seção. REsp 1.846.123-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 22/06/2022 (Recurso Repetitivo – Tema 1082) (Info 742).

 

DOD Plus – informações complementares

É vedada à operadora de plano de saúde a resilição unilateral imotivada dos contratos de planos coletivos empresariais com menos de trinta beneficiários

O art. 13, parágrafo único, II, da Lei nº 9.656/98, que veda a resilição unilateral dos contratos de plano de saúde, não se aplica às modalidades coletivas, tendo incidência apenas nas espécies individuais ou familiares.

No entanto, no caso de planos coletivos empresariais com menos de trinta usuários, em vista da vulnerabilidade da empresa estipulante, dotada de escasso poder de barganha, não se admite a simples rescisão unilateral pela operadora de plano de saúde, havendo necessidade de motivação idônea.

STJ. 4ª Turma. REsp 1.776.047-SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 23/04/2019 (Info 646).

 

Plano de saúde coletivo que mais se assemelha a um contrato individual e impossibilidade de rescisão unilateral imotivada

Não é válida a rescisão unilateral imotivada de plano de saúde coletivo empresarial por parte da operadora em face de microempresa com apenas dois beneficiários.

No caso concreto, havia um contrato coletivo atípico e que, portanto, merecia receber tratamento como se fosse um contrato de plano de saúde individual. Isso porque a pessoa jurídica contratante é uma microempresa e são apenas dois os beneficiários do contrato, sendo eles hipossuficientes frente à operadora do plano de saúde.

No contrato de plano de saúde individual é vedada a rescisão unilateral, salvo por fraude ou não-pagamento da mensalidade.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.701.600-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 06/03/2018 (Info 621)

 

Legitimidade ativa de usuário de plano de saúde coletivo para questionar a rescisão unilateral promovida pela operadora

O beneficiário de plano de saúde coletivo por adesão possui legitimidade ativa para se insurgir contra rescisão contratual unilateral realizada pela operadora.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.705.311-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 09/11/2017 (Info 615).


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