Imagine a seguinte situação
hipotética:
Em julho de 2007, João celebrou
contrato de mútuo com a Caixa Econômica Federal (CEF).
Em julho de 2010, venceu a última
parcela do contrato.
Em julho de 2018, a CEF ajuizou
execução cobrando R$ 200 mil de saldo que João ainda estaria devendo.
O executado arguiu a prescrição afirmando que a pretensão se
submetia ao prazo prescricional de 5 anos, previsto no art. 206, § 5º, I, do
Código Civil:
Art. 206. Prescreve:
(...)
§ 5º Em cinco anos:
I - a pretensão de cobrança de
dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular;
Como a última parcela venceu em
julho de 2010, a instituição financeira teria até julho de 2015 para executar
(5 anos).
A CEF, contudo, contra argumentou
afirmando que, em janeiro de 2010, João ajuizou ação revisional contra ela pedindo
que fosse recalculado o saldo devedor considerando que os índices aplicados para
reajuste das parcelas estaria errado.
Essa ação revisional somente foi
definitivamente julgada em julho de 2017.
Assim, a CEF argumentou que a ação
ajuizada por João para discutir a dívida interrompeu a prescrição, pois somente
após o trânsito em julgado da decisão é que seria possível saber o valor exato a
ser exigido do devedor.
Em outras palavras, a CEF
defendeu que a prescrição foi interrompida com o ajuizamento da ação que
controverteu os valores. Esse prazo prescricional somente foi reiniciado (do
zero) após o último ato do processo, qual seja, o trânsito em julgado da
sentença.
Resumindo o que a CEF disse:
- realmente, em situações
normais, eu teria até julho de 2015 para executar;
- ocorre que, de janeiro de 2010
até julho de 2017, eu fiquei esperando a decisão da Justiça sobre o pedido de
revisão formulado pelo devedor;
- em julho de 2017, a Justiça
finalmente definiu o valor que era devido e, a partir dessa data, recomeçou meu
prazo de 5 anos para executar.
O fundamento invocado pela CEF foi o art. 202, I e VI e
parágrafo único, do Código Civil:
Art. 202. A interrupção da
prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez, dar-se-á:
I - por despacho do juiz, mesmo
incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na
forma da lei processual;
(...)
VI - por qualquer ato inequívoco,
ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor.
Parágrafo único. A prescrição
interrompida recomeça a correr da data do ato que a interrompeu, ou do último
ato do processo para a interromper.
O debate foi interessante e não
parou por aí.
João veio aos autos e disse que a tese da CEF não poderia
ser acolhida porque estaria em confronto com o art. 784, § 1º do CPC e com o
raciocínio exposto na Súmula 380 do STJ:
Art. 784 (...)
§ 1º A propositura de qualquer
ação relativa a débito constante de título executivo não inibe o credor de
promover-lhe a execução.
Súmula 380-STJ: A simples propositura da ação de revisão de
contrato não inibe a caracterização da mora do autor.
O STJ concordou com a
argumentação deduzida por João ou pela CEF?
Pela CEF.
A configuração da mora nem
sempre induz à inércia do credor em relação à persecução do seu direito
A mora é um conceito que guarda
relação com o descumprimento de uma obrigação, enquanto a prescrição diz
respeito à inércia do credor na busca o seu direito.
Assim, ainda que se reconheça a
existência de uma eventual correlação entre os dois institutos jurídicos, não
se pode afirmar que o momento em que se verifica o inadimplemento obrigacional
coincide, necessariamente, com o termo inicial da prescrição. Em outras
palavras: a configuração da mora nem sempre induz à inércia do credor em
relação à persecução do seu direito.
Como
ilustração dessa afirmativa, pode-se lembrar, por exemplo, que “a
jurisprudência do STJ entende que, em caso de responsabilidade civil decorrente
de ato ilícito, o prazo prescricional começa a correr a partir da ciência do
fato ensejador da reparação” (AgInt no REsp 1.759.188/DF, Relatora Ministra
Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJe de 6/4/2021), muito embora se saiba
que, “nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se o devedor em
mora, desde que o praticou” (art. 398 do Código Civil).
Não é a mora, portanto, o marco
definitivo da fluência da prescrição.
A inércia do credor pode
ser quebrada não apenas pelo ajuizamento da execução
A quebra da inércia do credor pode
ser caracterizada não só pela ação executiva, mas por qualquer outro meio que
evidencie a defesa do crédito representado pelo título executivo.
Assim, a prescrição pode ser
interrompida não apenas pela provocação judicial por parte do credor. Se o
devedor ajuizar ação para questionar o débito, alegando nulidade ou redução do
valor pretendido pelo credor, a demanda também terá o condão de interromper a prescrição.
Com efeito, uma vez tornada
litigiosa “a coisa” (no caso, o contrato), os atos defensivos praticados no
âmbito da demanda ajuizada pelo devedor afastam, de forma inexorável, a inércia
do credor, não se justificando, nesse cenário, o decurso do prazo
prescricional. Em outras palavras, como a CEF (credora) estava questionando a
ação revisional, não se pode dizer que ela estivesse inerte. Nesse sentido:
A propositura de demanda em que se debate o próprio crédito
– seja ela anulatória, revisional ou cautelar de sustação de protesto - denota
o conhecimento do devedor do interesse do credor em exigir seu crédito.
Ademais, a atuação judicial do credor em defesa de seu crédito implica o
inevitável afastamento da inércia.
Desse modo, aplica-se a interrupção do prazo prescricional,
nos termos do art. 202, I, do CC, ainda que a judicialização da relação
jurídica tenha sido provocada pelo devedor.
STJ. 3ª Turma. REsp nº 1.522.093/MS, Rel. Min. Marco Aurélio
Bellizze, julgado em 17/11/2015.
O exercício do direito de
ação pelo devedor também interrompe a prescrição
Consequentemente, o exercício do
direito de ação por qualquer uma das partes interrompe a prescrição relativa à
determinada pretensão, exatamente porque o ajuizamento de uma demanda, tanto
pelo credor quanto pelo devedor, buscando ou impugnando precisamente o objeto
da relação obrigacional, conduz à quebra da inércia que frustra a prescrição.
Na ação revisional, a
controvérsia poderia ser resolvida
Além disso, deve ser ainda
ponderada a possibilidade de o credor negociar, transigir ou reconhecer, total
ou parcialmente, eventual excesso do crédito no âmbito da própria ação movida
pelo devedor, o que poderia evitar a necessidade posterior da execução de um
título que representa um mesmo objeto. Também não se pode olvidar que o
reconhecimento da prescrição se opera em desfavor do titular do crédito.
O art. 794, § 1º do CPC não
significa que a execução seja a única forma de o credor demonstrar que saiu da
inércia
A disposição contida no § 1º do
art. 794 do CPC/2015 (“a propositura de qualquer ação relativa ao débito
constante do título executivo não inibe o credor de promover-lhe a execução”)
não pode ser interpretada no sentido de que a ação executiva seja a única forma
de o credor demonstrar uma atitude ativa em relação à pretensão de receber o
que lhe é devido, sob pena de impossibilitar uma saída alternativa para a lide,
beneficiando-se, injustamente, o devedor.
Por último, deve-se ter em mente
que o processo não pode ser uma armadilha para as partes, devendo ele ser
entendido como um instrumento para dar efetividade ao direito material. Nesse
sentido, a exegese que harmoniza o art. 794, § 1º, do CPC/2015 com o art. 202
do Código Civil é a que melhor se adequa a esse propósito, ampliando as
possibilidades de o credor reaver o seu crédito.
Em suma:
A propositura da ação revisional pelo devedor
interrompe o prazo prescricional para o ajuizamento da ação executiva.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.956.817-MS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva,
julgado em 14/06/2022 (Info 743).