Dizer o Direito

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

A propositura da ação revisional pelo devedor interrompe o prazo prescricional para o ajuizamento da ação executiva

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Em julho de 2007, João celebrou contrato de mútuo com a Caixa Econômica Federal (CEF).

Em julho de 2010, venceu a última parcela do contrato.

Em julho de 2018, a CEF ajuizou execução cobrando R$ 200 mil de saldo que João ainda estaria devendo.

O executado arguiu a prescrição afirmando que a pretensão se submetia ao prazo prescricional de 5 anos, previsto no art. 206, § 5º, I, do Código Civil:

Art. 206. Prescreve:

(...)

§ 5º Em cinco anos:

I - a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular;

 

Como a última parcela venceu em julho de 2010, a instituição financeira teria até julho de 2015 para executar (5 anos).

A CEF, contudo, contra argumentou afirmando que, em janeiro de 2010, João ajuizou ação revisional contra ela pedindo que fosse recalculado o saldo devedor considerando que os índices aplicados para reajuste das parcelas estaria errado.

Essa ação revisional somente foi definitivamente julgada em julho de 2017.

Assim, a CEF argumentou que a ação ajuizada por João para discutir a dívida interrompeu a prescrição, pois somente após o trânsito em julgado da decisão é que seria possível saber o valor exato a ser exigido do devedor.

Em outras palavras, a CEF defendeu que a prescrição foi interrompida com o ajuizamento da ação que controverteu os valores. Esse prazo prescricional somente foi reiniciado (do zero) após o último ato do processo, qual seja, o trânsito em julgado da sentença.

Resumindo o que a CEF disse:

- realmente, em situações normais, eu teria até julho de 2015 para executar;

- ocorre que, de janeiro de 2010 até julho de 2017, eu fiquei esperando a decisão da Justiça sobre o pedido de revisão formulado pelo devedor;

- em julho de 2017, a Justiça finalmente definiu o valor que era devido e, a partir dessa data, recomeçou meu prazo de 5 anos para executar.

 

O fundamento invocado pela CEF foi o art. 202, I e VI e parágrafo único, do Código Civil:

Art. 202. A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez, dar-se-á:

I - por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual;

(...)

VI - por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor.

Parágrafo único. A prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a interrompeu, ou do último ato do processo para a interromper.

 

O debate foi interessante e não parou por aí.

João veio aos autos e disse que a tese da CEF não poderia ser acolhida porque estaria em confronto com o art. 784, § 1º do CPC e com o raciocínio exposto na Súmula 380 do STJ:

Art. 784 (...)

§ 1º A propositura de qualquer ação relativa a débito constante de título executivo não inibe o credor de promover-lhe a execução.

 

Súmula 380-STJ: A simples propositura da ação de revisão de contrato não inibe a caracterização da mora do autor.

 

O STJ concordou com a argumentação deduzida por João ou pela CEF?

Pela CEF.

 

A configuração da mora nem sempre induz à inércia do credor em relação à persecução do seu direito

A mora é um conceito que guarda relação com o descumprimento de uma obrigação, enquanto a prescrição diz respeito à inércia do credor na busca o seu direito.

Assim, ainda que se reconheça a existência de uma eventual correlação entre os dois institutos jurídicos, não se pode afirmar que o momento em que se verifica o inadimplemento obrigacional coincide, necessariamente, com o termo inicial da prescrição. Em outras palavras: a configuração da mora nem sempre induz à inércia do credor em relação à persecução do seu direito.

Como ilustração dessa afirmativa, pode-se lembrar, por exemplo, que “a jurisprudência do STJ entende que, em caso de responsabilidade civil decorrente de ato ilícito, o prazo prescricional começa a correr a partir da ciência do fato ensejador da reparação” (AgInt no REsp 1.759.188/DF, Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJe de 6/4/2021), muito embora se saiba que, “nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se o devedor em mora, desde que o praticou” (art. 398 do Código Civil).

Não é a mora, portanto, o marco definitivo da fluência da prescrição.

 

A inércia do credor pode ser quebrada não apenas pelo ajuizamento da execução

A quebra da inércia do credor pode ser caracterizada não só pela ação executiva, mas por qualquer outro meio que evidencie a defesa do crédito representado pelo título executivo.

Assim, a prescrição pode ser interrompida não apenas pela provocação judicial por parte do credor. Se o devedor ajuizar ação para questionar o débito, alegando nulidade ou redução do valor pretendido pelo credor, a demanda também terá o condão de interromper a prescrição.

Com efeito, uma vez tornada litigiosa “a coisa” (no caso, o contrato), os atos defensivos praticados no âmbito da demanda ajuizada pelo devedor afastam, de forma inexorável, a inércia do credor, não se justificando, nesse cenário, o decurso do prazo prescricional. Em outras palavras, como a CEF (credora) estava questionando a ação revisional, não se pode dizer que ela estivesse inerte. Nesse sentido:

A propositura de demanda em que se debate o próprio crédito – seja ela anulatória, revisional ou cautelar de sustação de protesto - denota o conhecimento do devedor do interesse do credor em exigir seu crédito. Ademais, a atuação judicial do credor em defesa de seu crédito implica o inevitável afastamento da inércia.

Desse modo, aplica-se a interrupção do prazo prescricional, nos termos do art. 202, I, do CC, ainda que a judicialização da relação jurídica tenha sido provocada pelo devedor.

STJ. 3ª Turma. REsp nº 1.522.093/MS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 17/11/2015.

 

O exercício do direito de ação pelo devedor também interrompe a prescrição

Consequentemente, o exercício do direito de ação por qualquer uma das partes interrompe a prescrição relativa à determinada pretensão, exatamente porque o ajuizamento de uma demanda, tanto pelo credor quanto pelo devedor, buscando ou impugnando precisamente o objeto da relação obrigacional, conduz à quebra da inércia que frustra a prescrição.

 

Na ação revisional, a controvérsia poderia ser resolvida

Além disso, deve ser ainda ponderada a possibilidade de o credor negociar, transigir ou reconhecer, total ou parcialmente, eventual excesso do crédito no âmbito da própria ação movida pelo devedor, o que poderia evitar a necessidade posterior da execução de um título que representa um mesmo objeto. Também não se pode olvidar que o reconhecimento da prescrição se opera em desfavor do titular do crédito.

 

O art. 794, § 1º do CPC não significa que a execução seja a única forma de o credor demonstrar que saiu da inércia

A disposição contida no § 1º do art. 794 do CPC/2015 (“a propositura de qualquer ação relativa ao débito constante do título executivo não inibe o credor de promover-lhe a execução”) não pode ser interpretada no sentido de que a ação executiva seja a única forma de o credor demonstrar uma atitude ativa em relação à pretensão de receber o que lhe é devido, sob pena de impossibilitar uma saída alternativa para a lide, beneficiando-se, injustamente, o devedor.

Por último, deve-se ter em mente que o processo não pode ser uma armadilha para as partes, devendo ele ser entendido como um instrumento para dar efetividade ao direito material. Nesse sentido, a exegese que harmoniza o art. 794, § 1º, do CPC/2015 com o art. 202 do Código Civil é a que melhor se adequa a esse propósito, ampliando as possibilidades de o credor reaver o seu crédito.

 

Em suma:

A propositura da ação revisional pelo devedor interrompe o prazo prescricional para o ajuizamento da ação executiva.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.956.817-MS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 14/06/2022 (Info 743).



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