Imagine
a seguinte situação hipotética:
A
Polícia Federal descobriu que, em uma fazenda localizada no interior da Bahia, estava
ocorrendo a atividade de extração clandestina de areia.
Isso
é algum problema? É proibida a lavra clandestina de areia?
Sim.
A extração ilegal de areia pode configurar, em tese, dois crimes diferentes:
•
o delito do art. 2º da Lei nº 8.176/91; e
•
o crime do art. 55 da Lei nº 9.605/98.
Art.
2º Constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpação, produzir
bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou
em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo.
Pena:
detenção, de um a cinco anos e multa.
Art.
55. Executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente
autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida:
Pena
- detenção, de seis meses a um ano, e multa.
A
areia é um recurso mineral pertencente à União. Compete à União, mediante
autorização, conceder a terceiros o direito de minerar. Nesse sentido:
A previsão contida no
art. 2º da Lei 8.176/91 tem por objeto a preservação de bens e matérias-primas
que integrem o patrimônio da União, de modo que a exploração, seja qual for a
matéria-prima, requer a devida autorização estatal, não importando a natureza
do respectivo ato, mas tão somente que haja autorização para tanto.
STJ. 5ª Turma. AgRg no
REsp n. 1.944.475/PB, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 28/9/2021.
Além
disso, a retirada ilegal de areia pode ocasionar a erosão acelerada e a
compactação do solo. Logo, essa lavra deve ser acompanhada de medidas
compensatórias dos danos causados ao meio ambiente.
É
possível se reconhecer o concurso de crimes entre o art. 2º da Lei nº 8.176/91
e o art. 55 da Lei nº 9.605/98?
SIM.
Isso porque tutelam bens jurídicos diferentes:
Os crimes tipificados
nos arts. 2º da Lei n. 8.176/1991 e 55 da Lei n. 9.605/1998 visam à tutela de
bens jurídicos diversos. Enquanto este delito tem por finalidade a proteção do
meio ambiente, quanto aos recursos encontrados no solo e no subsolo, aquele tem
por objeto a preservação de bens e matérias-primas que integrem o patrimônio da
União.
A jurisprudência do
STJ, em diversas situações, já afastou o conflito aparente de normas e, em
vista da lesividade a bens jurídicos distintos, reconheceu o concurso formal de
crimes.
STJ. 6ª Turma. AgRg no
REsp 1.856.109/RS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 16/6/2020.
É inaplicável o
princípio da especialidade entre os delitos dos arts. 2º da Lei n. 8.176/1991 e
55 da Lei n. 9.605/1998, porquanto tutelam bens jurídicos diversos: o primeiro
protege a ordem econômica e o último, o meio ambiente. Aplica-se, ao caso, o
concurso formal de crimes.
STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp n. 1.156.802/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz,
julgado em 6/8/2019.
Para
a configuração desses delitos é indispensável a realização de perícia por serem
crimes materiais que deixam vestígio?
NÃO.
Os crimes previstos nos
artigos 2º da Lei 8.176/1991 e 55 da Lei 9.605/1998 são formais, ou seja, não
exigem resultado naturalístico para a sua consumação, razão pela qual ainda que
haja efetivo dano não há que se falar em indispensabilidade de perícia para a
sua comprovação.
Na espécie, a ação
penal foi instruída com o parecer técnico elaborado pelo Departamento de Produção
Mineral, o que é suficiente para a comprovação da materialidade delitiva, uma
vez que tal documento atestou a usurpação de matéria-prima da União e a
exploração de recurso natural, o que inclusive foi verificado in loco.
STJ. 5ª Turma. AgRg no
HC n. 539.223/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 3/12/2019.
Voltando
ao caso concreto:
De
acordo com o inquérito, no local foram encontrados tratores realizando
escavações e caminhões transportando areia na localidade. Os agentes estimaram
o volume lavrado em 400m³ de areia, precificados, à época, em quase R$ 2
milhões.
As
investigações constataram que houve três períodos de extração ilegal de areia
no local: em março de 2016, em junho de 2016 e dezembro de 2016.
Em
razão desse fato, o Ministério Público ofereceu denúncia pela prática da
conduta típica descrita no art. 2º, da Lei nº 8.176/91 c/c o art. 55, da Lei nº
9.605/88.
Na
denúncia, o Procurador da República narrou que o crime do art. 2º da Lei nº
8.176/91 foi praticado em continuidade delitiva considerando que houve três
extrações de areia.
O
réu se defendeu argumentando que crime do art. 2º da Lei nº 8.176/91 é de
natureza permanente, de modo que, embora a conduta delituosa de extração tenha
sido constatada em três ocasiões distintas, trata-se de um crime único, devendo
ser afastada a regra da continuidade delitiva.
O
STJ acolheu os argumentos do MPF ou da defesa? O crime do art. 2º da Lei nº
8.176/91 é instantâneo ou permanente?
A
tese invocada pela defesa é acolhida pelo STJ. Trata-se de crime permanente.
Instantâneo
x permanente
A
diferença entre o crime instantâneo e o permanente estabelece-se a partir do
lapso temporal em que verificada a consumação delitiva.
No
crime instantâneo não se verifica um prolongamento da atividade delitiva, sendo
quase que imediata a prática do verbo nuclear do tipo e o resultado (lesão do
bem jurídico).
No
crime permanente, a própria natureza do bem jurídico tutelado no tipo viabiliza
um prolongamento da consumação, de modo que a conduta delitiva se protrai no
tempo, só cessando por vontade do autor.
Por
que é permanente?
O
crime de usurpação por exploração de matérias-primas pertencentes à União (art.
2º da Lei nº 8.176/91), envolve, como regra geral, uma ação contínua do agente
no sentido de explorar o recurso mineral objeto de usurpação, notadamente
porque essa exploração só é possível mediante a prática de múltiplas condutas
que vão além da extração em si.
Em
outras palavras, essa atividade envolve, quase sempre, uma continuidade de atos.
Mesmo
quando a extração é interrompida por alguns dias ou meses, é possível falarmos
que a consumação se prolongou nos casos em que o agente mantém no local a
estrutura e as máquinas utilizadas para a extração. Isso porque, neste caso,
fica evidente que o processo de extração está pronto para ser retomado, não
tendo o agente intencionalmente cessado o crime.
Considerando
a natureza da atividade, é possível concluir que, enquanto verificada essa
exploração, ou seja, a prática de múltiplas condutas visando a extração do bem
mineral, sem evidência de que o agente ativo intencionalmente cessou a
atividade, a hipótese é de crime permanente.
Em
suma:
É hipótese de crime
permanente, a conduta tipificada no art. 2º da Lei nº 8.176/91, na modalidade
de usurpação por exploração de matérias-primas pertencentes à União, enquanto
verificada a prática de múltiplas condutas visando a extração do bem mineral,
sem evidência de que o agente ativo intencionalmente cessou a atividade
extrativa.
STJ. 6ª Turma. REsp 1.998.631-BA,
Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 07/06/2022 (Info 740).