Dizer o Direito

sábado, 3 de setembro de 2022

É possível desclassificar o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP) para o delito de importunação sexual (art. 215-A do CP)?

 

O julgado comentado envolve o delito de importunação sexual (art. 215-A do CP). Antes de verificarmos o que foi decidido, irei fazer uma breve exposição sobre esse crime. Se estiver sem tempo, pode ir diretamente para a explicação do julgado.

 

IMPORTUNAÇÃO SEXUAL

A Lei nº 13.718/2018 acrescentou um novo delito no art. 215-A do Código Penal, chamado de “importunação sexual”:

Importunação sexual

Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.

  

Em que consiste o delito:

- O agente (que pode ser homem ou mulher)

- pratica contra a vítima (que também pode ser homem ou mulher)

- ato libidinoso

- com o objetivo de satisfazer a própria lascívia

- ou a lascívia de terceiro.

 

Ato libidinoso

Ato libidinoso é todo ato de cunho sexual capaz de gerar no sujeito a satisfação de seus desejos sexuais.

Exs: penetração do pênis na vagina (chamada de conjunção carnal), penetração anal, sexo oral, masturbação, toques íntimos etc.

 

Lascívia

Lascívia é o prazer sexual, o prazer carnal, a luxúria.

Obs: luxúria não tem nada a ver com luxo, mas sim com sexo.

 

Exemplo 1:

Dentro de um ônibus, determinado homem faz automasturbação e ejacula nas costas de uma passageira que está sentada à sua frente.

Esta conduta abominável, lamentavelmente, tem ocorrido com certa frequência.

O fato não podia ser enquadrado como estupro (art. 213 do CP), considerando que não houve violência ou grave ameaça:

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

 

Também não podia ser classificado como violação sexual mediante fraude (art. 215 do CP), tendo em vista que o ato libidinoso não foi praticado com a vítima:

Violação sexual mediante fraude

Art. 215.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

 

Diante disso, essa conduta era “punida” como contravenção penal:

Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor:

Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

 

Agora, com a Lei nº 13.718/2018, este fato é tipificado como importunação sexual, delito do art. 215-A do CP.

Vale ressaltar que a Lei nº 13.718/2018 REVOGOU a contravenção penal do art. 61 do DL 3.688/41.

 

Exemplo 2:

O art. 215-A do CP também serve para punir a conduta do frotteurismo.

O frotteurismo consiste em “tocar e esfregar-se em uma pessoa sem seu consentimento. O comportamento geralmente ocorre em locais com grande concentração de pessoas, dos quais o indivíduo pode escapar mais facilmente de uma detenção (por ex., calçadas movimentadas ou veículos de transporte coletivo). Ele esfrega seus genitais contra as coxas e nádegas ou acaricia com as mãos a genitália ou os seios da vítima. Ao fazê-lo, o indivíduo geralmente fantasia um relacionamento exclusivo e carinhos com a vítima.” (http://www.psiquiatriageral.com.br/ dsm4/sexual4.htm. Acesso em 29/09/2018).

No frotteurismo não há violência ou grave ameaça, razão pela qual não se enquadra como estupro (art. 213 do CP), mas sim o delito do art. 215-A do CP.

 

“Se o ato não constitui crime mais grave”

Há uma subsidiariedade expressa no preceito secundário do art. 215-A do CP. Isso significa que, se a conduta praticada puder se enquadrar em um delito mais grave, não será o crime do art. 215-A do CP.

Ex: se o agente “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia”, mas utilizando-se de violência ou grave ameaça, poderá configurar o crime do art. 213 do CP (mais grave e mais específico).

 

Bem jurídico protegido

É a liberdade sexual.

 

Sujeito ativo

Crime comum.

Pode ser praticado por qualquer pessoa (homem ou mulher).

 

Sujeito passivo

Pode ser praticado contra qualquer pessoa (homem ou mulher).

Assim, o art. 215-A do CP é crime bicomum.

 

Se a vítima for pessoa menor de 14 anos

Neste caso, a conduta poderá configurar o crime do art. 218-A do CP:

Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente

Art. 218-A. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos

 

A depender de peculiaridades do caso concreto, o fato pode até mesmo ser enquadrado como estupro de vulnerável. Veja esta situação analisada pelo STJ (com adaptações):

O homem convenceu uma criança de 10 anos a ir até o motel com ele.

Chegando lá, o agente pediu que a garota ficasse nua na sua frente, tendo sido atendido.

O simples fato de ver a menina nua já satisfez o sujeito que, após alguns minutos olhando a criança, determinou que ela vestisse novamente as roupas.

Foram, então, embora do local sem que o agente tenha tocado na garota.

A criança acabou contando o que se passou a seus pais e o sujeito foi denunciado pelo Ministério Público pela prática de estupro de vulnerável.

O STJ manteve a imputação:

A conduta de contemplar lascivamente, sem contato físico, mediante pagamento, menor de 14 anos desnuda em motel pode permitir a deflagração da ação penal para a apuração do delito de estupro de vulnerável.

STJ. 5ª Turma. RHC 70.976-MS, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 2/8/2016 (Info 587).

 

O sujeito passivo precisa ser uma pessoa específica

Conforme explica com muita propriedade Rogério Sanches:

“O tipo exige que o ato libidinoso seja praticado contra alguém, ou seja, pressupõe uma pessoa específica a quem deve se dirigir o ato de autossatisfação. Assim é não só porque o crime está no capítulo relativo à liberdade sexual, da qual apenas indivíduos podem ser titulares, mas também porque somente desta forma se evita confusão com o crime de ato obsceno. Com efeito, responde por importunação sexual quem, por exemplo, se masturba em frente a alguém porque aquela pessoa lhe desperta um impulso sexual; mas responde por ato obsceno quem se masturba em uma praça pública sem visar a alguém específico, apenas para ultrajar ou chocar os frequentadores do local.” (Lei 13.718/18: Introduz modificações nos crimes contra a dignidade sexual. Disponível em: http://meusitejuridico.com.br/2018/09/25/lei-13-71818-introduz-modificacoes-nos-crimes-contra-dignidade-sexual/. Acesso em 02/10/2018).

 

Elemento subjetivo

O crime é punido a título de dolo.

Exige-se um elemento subjetivo específico (vulgo “dolo específico”): o agente deve ter praticado a conduta “com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”.

Não admite modalidade culposa.

 

Importunação sexual x Ato obsceno

Existe um outro crime (ato obsceno) que, no caso concreto, poderia ser confundido com a importunação sexual. Vamos comparar os dois crimes:

IMPORTUNAÇÃO SEXUAL

ATO OBSCENO

Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.

Art. 233. Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:

Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.

O sujeito passivo é determinado (uma pessoa determinada ou um grupo de pessoas determinado).

Sujeito passivo é a coletividade (crime vago).

Exige-se um elemento subjetivo especial. O agente pratica a conduta “com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”.

O elemento subjetivo é o dolo, não se exigindo do sujeito nenhuma finalidade específica.

A conduta não precisa ter sido praticada em lugar público, ou aberto ou exposto a público. Ex: pode ser praticado no interior de uma casa.

Para que o crime se configure, é indispensável que o ato obsceno tenha sido praticado em lugar público, ou aberto ou exposto ao público.

Para que o crime se configure, é indispensável que o ato libidinoso tenha sido praticado contra alguém que não concordou com isso. A análise da anuência ou não da pessoa atingida é fundamental.

Não importa se houve ou não anuência das pessoas que estavam presentes. Se o ato obsceno foi praticado em lugar público, ou aberto ou exposto ao público, haverá o crime.

Infração de médio potencial ofensivo.

Infração de menor potencial ofensivo.

 

Tentativa

Na teoria, é possível. Isso porque se trata de crime plurissubsistente.

Crime plurissubsistente é aquele no qual a execução pode ser fracionada em vários atos.

 

Ação penal

Trata-se de crime de ação pública INCONDICIONADA.

A partir da Lei nº 13.718/2018, todos os crimes contra a dignidade sexual são crimes de ação pública incondicionada (art. 225 do CP).

 

Infração de médio potencial ofensivo

A importunação sexual possui pena de 1 a 5 anos de reclusão. Logo, classifica-se como infração de médio potencial ofensivo. Isso significa que é possível a concessão de suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei nº 9.099/95).

 

Não se trata de crime hediondo

Dos delitos contra a dignidade sexual, apenas o estupro (art. 213, caput e §§ 1º e 2º), o estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1º, 2º, 3º e 4º) e o favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, caput, e §§ 1º e 2º) são crimes hediondos.

 

Revogação do art. 61 da Lei de Contravenções Penais

A Lei nº 13.718/2018, além de inserir o crime do art. 215-A ao CP, também revogou o art. 61 do DL 3.688/41 (contravenção penal que era chamada de importunação ofensiva ao pudor). Compare:

IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR

IMPORTUNAÇÃO SEXUAL

Lei de Contravenções Penais (DL 3.688/41)

Art. 61. Importunar alguem, em lugar público ou acessivel ao público, de modo ofensivo ao pudor:

Pena - multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

Código Penal

Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.

Era uma contravenção penal.

Trata-se de crime.

Revogada pela Lei nº 13.718/2018.

Incluído pela Lei nº 13.718/2018.

 

Pergunta: houve abolitio criminis? Os indivíduos que estavam respondendo ou já haviam sido condenados por importunação ofensiva ao pudor foram beneficiados com a Lei nº 13.718/2018 e poderão pedir o reconhecimento de abolito criminis?

NÃO. A conduta descrita no art. 61 do DL 3.688/41 passou a ser prevista no art. 215-A do Código Penal, ainda que com outra redação mais abrangente.

Desse modo, não houve houve abolitio criminis, mas sim continuidade normativo-típica.

O princípio da continuidade normativa ocorre “quando uma norma penal é revogada, mas a mesma conduta continua sendo crime no tipo penal revogador, ou seja, a infração penal continua tipificada em outro dispositivo, ainda que topologicamente ou normativamente diverso do originário.” (Min. Gilson Dipp, em voto proferido no HC 204.416/SP).

Logo, para as pessoas que estavam respondendo ou haviam sido condenadas pelo art. 61 do DL 3.688/41 antes da Lei nº 13.654/2018, nada muda.

 

Os indivíduos que ejacularam nas vítimas ou que praticaram frotteurismo antes do dia 25/09/2018 poderão responder pelo crime do art. 215-A do CP?

NÃO. Somente podem responder pelo art. 215-A do CP aqueles que praticaram a conduta a partir do dia 25/09/2018 (se foi no dia 25/09/2018, já incide o art. 215-A).

Como a Lei nº 13.718/2018 incluiu uma nova infração penal (art. 215-A do CP) mais grave que a contravenção penal do art. 61, ela representa novatio legis in pejus (lei penal mais grave), não podendo retroagir para alcançar situações pretéritas (art. 5º, XL, da CF/88).

 

EXPLICAÇÃO DO JULGADO

Imagine a seguinte situação adaptada (nomes fictícios):

Uma criança, na época com cinco anos de idade, foi deixada aos cuidados de Regina, então companheira de João.

A criança ficou no apartamento onde moravam Regina e João.

Em determinado momento, na sala do apartamento, João se posicionou em frente da criança e, com a calça abaixada e o pênis ereto, mostrou seu órgão genital, pedindo que a criança “chupasse seu pinto”.

Regina entrou na sala no momento e interrompeu o ato, desferindo um soco no pênis de João, retirando a criança de perto dele.

João foi denunciado pelo crime de estupro de vulnerável na forma tentada (art. 217-A c/c art. 14, II, do CP):

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

 

Art. 14. Diz-se o crime:

(...)

II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.

 

Ao final da instrução, o juízo de origem julgou procedente a pretensão punitiva, condenando o réu.

Inconformado, o réu recorreu, requerendo a desclassificação do crime para importunação sexual (art. 215-A do CP).

O Tribunal de Justiça deu provimento à apelação e desclassificou o crime.

De acordo com o acórdão da Corte Estadual:

“(...) No caso dos autos, a desclassificação torna-se viável, diante do princípio da proporcionalidade.

Na hipótese, diante da pequena extensão dos atos praticados (mostrar o pênis ereto ao infante e pedir para que este o chupasse), sem que ocorresse qualquer contato entre as partes, muito embora próximos (ambos estavam na sala de tv) permite tal conclusão”.

 

O MP não concordou e interpôs recurso especial pedindo o restabelecimento da condenação por estupro de vulnerável tentado.

 

O STJ concordou com o pedido do MP? 

SIM.

A 3ª Seção do STJ, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial do MP para restabelecer a sentença condenatória de 1º grau, que reconheceu a tentativa de estupro de vulnerável, e fixou a seguinte tese:

Presente o dolo específico de satisfazer à lascívia, própria ou de terceiro, a prática de ato libidinoso com menor de 14 anos configura o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP), independentemente da ligeireza ou da superficialidade da conduta, não sendo possível a desclassificação para o delito de importunação sexual (art. 215-A do CP).

STJ. 3ª Seção. REsp 1.959.697-SC, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 08/06/2022 (Recurso Repetitivo – Tema 1121) (Info 740).

 

Cifra negra nas estatísticas

O abuso sexual contra o público infantojuvenil é uma realidade que insiste em perdurar ao longo do tempo.

A grande dificuldade desse problema, porém, é dimensioná-lo, pois uma parte considerável dos delitos, conforme a doutrina, “ocorrem no interior dos lares, que permanecem recobertos pelo silêncio das vítimas”.

Há uma elevada taxa de cifra negra nas estatísticas. Além do natural medo de contar para os pais (quando estes não são os próprios agressores), não raro essas vítimas sequer, como alerta a doutrina, “possuem a compreensão adequada da anormalidade da situação vivenciada”.

 

Prática de qualquer ato libidinoso destinado à satisfação da lascívia contra menor de 14 anos configura estupro de vulnerável

A prática de qualquer ato libidinoso, compreendido como aquele destinado à satisfação da lascívia, com menor de 14 anos, configura o delito de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP):

(...) 3. No caso em apreço, o acusado, ao tocar nos seios da criança, ainda que por cima da roupa, praticou todos os atos necessários à tipificação do delito de estupro de vulnerável, que não exige atos invasivos, conforme jurisprudência deste Tribunal.

4. Não obstante a inovação trazida pelo art. 215-A do Código Penal (introduzido pela Lei 13.718/2018), “a Terceira Seção desta Corte Superior sedimentou a jurisprudência, então já dominante, pela presunção absoluta da violência em casos da prática de conjunção carnal ou ato libidinoso diverso com pessoa menor de 14 anos” (REsp n. 1.320.924/MG, relator Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 16/8/2016, DJe de 29/8/2016, grifei), de modo que é “inaplicável o art. 215-A do CP para a hipótese fática de ato libidinoso diverso de conjunção carnal praticado com menor de 14 anos, pois tal fato se amolda ao tipo penal do art. 217-A do CP, devendo ser observado o princípio da especialidade” (AgRg nos EDcl no AREsp n. 1.225.717/RS, relator Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 21/2/2019, DJe 6/3/2019). (...)

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1.824.358/MG, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 03/11/2020.

 

Não é necessário contato físico

Vale ressaltar que é sempre necessário o especial fim de agir: “para satisfazer à lascívia”. Porém, não se tolera as atitudes voluptuosas, por mais ligeiras que possam parecer. Em alguns precedentes, ressaltou-se até mesmo que o delito prescinde inclusive de contato físico entre vítima e agressor:

É pacífica a compreensão, portanto, de que o estupro de vulnerável se consuma com a prática de qualquer ato de libidinagem ofensivo à dignidade sexual da vítima, conforme já consolidado por esta Corte Nacional.

Doutrina e jurisprudência sustentam a prescindibilidade do contato físico direto do réu com a vítima, a fim de priorizar o nexo causal entre o ato praticado pelo acusado, destinado à satisfação da sua lascívia, e o efetivo dano à dignidade sexual sofrido pela ofendida.

STJ. 6ª Turma. HC 478.310/PA, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 9/2/2021.

 

Assim, a maior ou menor superficialidade dos atos libidinosos, a intensidade do contato ou a virulência da ação criminosa não são critérios relevantes para a tipificação do delito em questão.

Além disso, é válido lembrar que outras circunstâncias incidentais, como o consentimento da vítima, sua experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre vítima e agente delitivo, igualmente, não se revelam capazes de excluir o crime ou modificar a figura típica.

 

Não se aplica o art. 215-A por força dos princípios da especialidade e da subsidiariedade

A superveniência do art. 215-A do CP (crime de importunação sexual) trouxe novamente a discussão à tona, mas o conflito aparente de normas é resolvido pelo princípio da especialidade do art. 217-A do CP, que possui o elemento especializante “menor de 14 anos”, e também pelo princípio da subsidiariedade expressa do art. 215-A do CP, conforme se verifica de seu preceito secundário in fine:

Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.

 

Estudando a nova figura típica, e cotejando com as outras então existentes, a doutrina observa que, na importunação sexual, a falta de anuência da vítima não pode consistir em nenhuma forma de constrangimento.

Se houver constrangimento no sentido de “obrigar” alguém à prática de ato de libidinagem, estará configurado o crime de estupro, ante a presença do verbo nuclear do tipo do art. 213 do CP.

Nos casos de estupro de vulnerável, por outro lado, é necessário advertir que não há propriamente um constrangimento à prática de atos sexuais. Não existe sequer presunção de constrangimento ou de violência. Na figura típica do art. 217-A do CP, pune-se simplesmente a prática de atos de libidinagem com alguém menor de catorze anos ou com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

Por isso, ao contrário do que ocorre no cotejo entre os arts. 213 e 215-A, ambos do CP, o constrangimento não é elemento especializante do estupro de vulnerável. O fator especializante do art. 217-A do CP é simplesmente a idade da vítima: “vítima menor de 14 (catorze) anos”.

 

Mandamento constitucional de criminalização

Desclassificar a prática de ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos para o delito do art. 215-A do CP, crime de médio potencial ofensivo que admite a suspensão condicional do processo, desrespeitaria ao mandamento constitucional de criminalização do art. 227, §4º, da CF/88, que determina a punição severa do abuso ou exploração sexual de crianças e adolescentes:

Art. 227 (...)

§ 4º A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.

 

Tratados internacionais

Desclassificar a prática de ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos para o delito do art. 215-A do CP também significaria o descumprimento a tratados internacionais.

O art. 19 da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança é peremptório ao impor aos Estados a adoção de medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra “todas” as formas de abuso.

 

Princípio da proporcionalidade no aspecto da proibição da proteção insuficiente

Em verdade, a subsunção no art. 217-A do CP prestigia o princípio da proporcionalidade, notadamente no aspecto da proibição da proteção insuficiente, bem como o princípio da proteção integral, conforme visto. Vale lembrar que a criança e adolescente são indivíduos que possuem uma condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (art. 6º do ECA). Por isso, a proteção especial não se mostra afrontosa ao princípio da isonomia.

De fato, o legislador pátrio poderia, ou mesmo deveria, promover uma graduação entre as espécies de condutas sexuais praticadas em face de pessoas vulneráveis, seja por meio de tipos intermediários, o que poderia ser feito através de crimes privilegiados, ou causas especiais de diminuição. De sorte que, assim, tornar-se-ia possível penalizar mais ou menos gravosamente a conduta, conforme a intensidade de contato e os danos (físicos ou psicológicos) provocados. Mas, infelizmente, não foi essa a opção do legislador e, em matéria penal, a estrita legalidade se impõe ao que idealmente desejam os aplicadores da lei criminal.

 

Absoluta intolerância de atos de conotação sexual envolvendo menores de 14 anos

Verifique-se que a opção legislativa é pela absoluta intolerância com atos de conotação sexual com pessoas menores de 14 anos, ainda que superficiais e não invasivos.

"O abuso sexual contra crianças e adolescentes é problema jurídico, mas sobretudo de saúde pública, não somente pelos números colhidos, mas também pelas graves consequências para o desenvolvimento afetivo, social e cognitivo”. Nesse sentido, “não é somente a liberdade sexual da vítima que deve ser protegida, mas igualmente o livre e sadio desenvolvimento da personalidade sexual da criança” (BIANCHINI, A.; MARQUES, I. L.; ROSSATO, L. A.; SILVA, L. P. E.; GOMES, L. F.; LÉPORE, P. E.; CUNHA, R. S. Pedofilia e abuso sexual de crianças e adolescentes. São Paulo: Saraiva, 2013, e-book, Introdução, cap. 1).

Tanto a jurisprudência desta Corte Superior quanto a do Supremo Tribunal Federal são pacíficas em rechaçar a pretensão de desclassificação da conduta de praticar ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos para o crime de importunação sexual (art. 215-A do CP).


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