Dizer o Direito

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Uma pessoa entrou em um hospital público e desferiu um tiro em um dos pacientes, ocasionando a sua morte. O Poder Público tem o dever de indenizar os herdeiros?

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Eduardo recebeu um tiro e foi levado a um hospital público. Ele recebeu o socorro médico e permaneceu internado no local com quadro estável.

No dia seguinte, uma pessoa não identificada – talvez a mesma que tentou ceifar sua vida no dia anterior – entrou no quarto onde Eduardo estava internado no hospital e efetuou quatro disparos contra a vítima, que faleceu no local.

O homicida fugiu sem ser capturado.

Regina, mãe de Eduardo, ajuizou ação de indenização contra o Estado pedindo indenização por danos morais e materiais em decorrência do homicídio de seu filho ocorrido no interior do hospital público.

Argumentou que cabia ao Estado zelar pelos pacientes internos e que a morte só ocorreu em razão da inexistência de vigilância e cuidados mínimos de segurança por parte da instituição, já que não existia portaria ou funcionário responsável para observar a entrada e a saída de pessoas do hospital.

Assim, segundo a requerente, estaria demonstrado o nexo causal entre a conduta do Estado e o evento danoso.

O Estado contestou o pedido, alegando a inexistência de nexo causal, pois a situação era imprevisível. Argumentou que não cometeu ato ilícito e o evento se deu por fato exclusivo de terceiro, o que rompe o nexo causal.

Requereu que os pedidos fossem julgados improcedentes.

 

Para o STJ, o Estado tem responsabilidade civil neste caso?

SIM.

O hospital que deixa de fornecer o mínimo serviço de segurança, contribuindo de forma determinante e específica para homicídio praticado em suas dependências, responde objetivamente pela conduta omissiva.

STJ. 2ª Turma. REsp 1.708.325-RS, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 24/05/2022 (Info 740).

 

 

Responsabilidade objetiva como regra

A responsabilidade civil estatal é, em regra, objetiva e decorre do risco administrativo. Logo, não se exige a existência de culpa por parte do Estado. Isso está previsto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal; nos arts. 186 e 927, parágrafo único do Código Civil; e no art. 14 do Código de Defesa do Consumidor:

Constituição Federal

Art. 37 (...) § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

 

Código Civil

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

(...)

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

 

Código de Defesa do Consumidor

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

 

Responsabilidade estatal em caso de atos omissivos

Existe certa controvérsia no que tange aos atos estatais omissivos.

Embora a lei não tenha feito distinção, há os que entendem que, em se tratando de atos omissivos, a responsabilidade do ente público teria caráter subjetivo.

Vale ressaltar, contudo, que o STF e o STJ possuem diversos julgados afirmando que o Poder Público responde de forma objetiva, inclusive em caso de atos omissivos, quando constatada a precariedade/vício no serviço decorrente da falha no dever legal e específico de agir.

 

Inação do ente público, no caso concreto

O hospital, além do serviço técnico-médico, também é responsável pelo serviço auxiliar de estadia (internação). Assim, o ente público é obrigado a disponibilizar equipe/pessoal e equipamentos necessários e eficazes para o alcance dessa finalidade.

No caso concreto, ficou demonstrada a inação estatal tendo em vista que o evento ocorreu por conta do mau funcionamento dos trabalhos auxiliares e estruturas operacionais (ausência de serviço/pessoal de vigilância). Desse modo, entende-se que o ente público, em virtude da natureza da atividade pública exercida, responde de forma objetiva, uma vez que, inegavelmente, tinha o dever de atuar, ao menos minimamente, para impossibilitar a ocorrência do evento nocivo.

A omissão do Estado no presente feito revela-se específica e contribuiu decisivamente para a morte da vítima, pois o hospital público não ofereceu nenhuma ou sequer a mínima garantia de integridade aos que se utilizam do serviço e pela qual, em razão do risco da atividade prestada, tem o dever de zelo e proteção.

 

Análise dos pressupostos de responsabilidade, no caso concreto

A responsabilidade civil do Estado, seja de ordem subjetiva, seja objetiva - depende, para a configuração da ocorrência de seus pressupostos:

a) ato ilícito;

b) dano sofrido; e

c) nexo de causalidade entre o evento danoso e a ação ou omissão do agente público.

 

No caso concreto, restou demonstrado que:

a) o hospital não possuía nenhum serviço de vigilância; e que

b) o evento morte decorreu de disparo com arma de fogo contra a vítima dentro do hospital.

 

No caso concreto, não há que se falar em fato exclusivo de terceiro como apto a romper o nexo de causalidade. Isso porque uma mínima ação de vigilância e cuidado poderia efetivamente ter evitado a morte da vítima.

Vale ressaltar que esse entendimento não se aplica indistintamente a qualquer ato derivado de conduta omissiva da administração pública. Sob as lentes do bom senso, deve ser analisado o caso concreto.

Nessa situação específica, não houve um evento de grandes proporções que impediria a atuação do Estado. Com um mínimo de segurança seria possível impedir o ingresso do autor do homicídio. Logo, é de se concluir que a conduta do hospital que deixa de fornecer o mínimo serviço de segurança e, por conseguinte, despreza o dever de zelar pela incolumidade física dos seus pacientes contribuiu de forma determinante e específica para o homicídio praticado em suas dependências, afastando-se a alegação da excludente de ilicitude, qual seja, fato de terceiro.

 

Tema correlato

O art. 927, parágrafo único, do Código Civil pode ser aplicado para a responsabilidade civil do Estado

Aplica-se igualmente ao estado o que previsto no art. 927, parágrafo único, do Código Civil, relativo à responsabilidade civil objetiva por atividade naturalmente perigosa, irrelevante o fato de a conduta ser comissiva ou omissiva.

STJ. 2ª Turma REsp 1869046-SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 09/06/2020 (Info 674).



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