Dizer o Direito

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Se uma importadora contrata uma transportadora para trazer mercadorias do exterior e ocorre um extravio, a responsabilidade civil decorrente será regida pela Convenção de Montreal?

 

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR AÉREO INTERNACIONAL POR DANOS MATERIAIS CAUSADOS EM BAGAGENS DE PASSAGEIROS É REGIDA PELA CONVENÇÃO DE MONTREAL

Imagine a seguinte situação hipotética:

Letícia passou sua lua de mel em Paris.

Ela voltou da França em um voo direto que pousou em Natal (RN).

A viagem dos sonhos acabou se transformando em um pesadelo ao final. Isso porque a mala de Letícia foi extraviada pela companhia aérea, que simplesmente perdeu a bagagem.

Além do transtorno, Letícia sofreu um enorme prejuízo econômico. Na mala, havia duas bolsas de grife francesa e cinco vestidos da última coleção.

Diante disso, Letícia ajuizou ação de indenização contra a “Air Paris” pedindo o pagamento de R$ 100 mil a título de danos materiais, além de reparação por danos morais.

 

Contestação: tese da indenização tarifada (Convenção de Varsóvia)

O valor de todos os produtos que estavam na mala de Letícia era de R$ 100 mil, sendo esta a quantia cobrada por ela da “Air Paris”.

Na contestação, contudo, a companhia aérea alegou que, no transporte internacional, deve vigorar os limites de indenização impostos pela “Convenção de Varsóvia”.

A Convenção de Varsóvia é um tratado internacional, assinado pelo Brasil em 1929 e promulgado por meio do Decreto nº 20.704/31. Posteriormente, ela foi alterada pelo Protocolo Adicional 4, assinado na cidade canadense de Montreal em 1975 (ratificado e promulgado pelo Decreto 2.861/1998). Daí falarmos em Convenções de Varsóvia e de Montreal.

Essas Convenções estipulam valores máximos que o transportador poderá ser obrigado a pagar em caso de responsabilidade civil decorrente de transporte aéreo internacional. Dessa forma, tais Convenções adotam o princípio da indenizabilidade restrita ou tarifada.

Em caso de extravio de bagagens, por exemplo, a Convenção determina que o transportador somente poderá ser obrigado a pagar uma quantia máxima de cerca de R$ 5.940,00.

Assim, em vez de receber R$ 100 mil, Letícia teria que se contentar com o limite máximo de indenização (por volta de R$ R$ 5.940,00).

 

Conflito entre dois diplomas

No presente caso, temos um conflito entre dois diplomas legais:

• O CDC, que garante ao consumidor o princípio da reparação integral do dano;

• As Convenções de Varsóvia e de Montreal, que determinam a indenização tarifada em caso de transporte internacional.

Assim, a antinomia ocorre entre o art. 14 do CDC, que impõe ao fornecedor do serviço o dever de reparar os danos causados, e o art. 22 da Convenção de Varsóvia, que fixa limite máximo para o valor devido pelo transportador, a título de reparação.

 

Qual dos dois diplomas irá prevalecer? Em caso de apuração dos danos materiais decorrentes de extravio de bagagem ocorrido em transporte internacional envolvendo consumidor, aplica-se o CDC ou a indenização tarifada prevista nas Convenções de Varsóvia e de Montreal?

As Convenções internacionais.

Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor.

STF. Plenário. RE 636331/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes e ARE 766618/SP, Rel. Min. Roberto Barroso, julgados em 25/05/2017 (Repercussão Geral – Tema 210) (Info 866).

 

Veja como esse tema já foi muito explorado em provas:

þ (Promotor MP/GO 2019) Nos termos do artigo 178 da Constituição Federal da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor. (certo)

þ (Promotor MP/BA 2018) nos termos do artigo 178 da Constituição da República brasileira, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor. (certo)

ý (Juiz TJ/BA 2019 CEBRASPE) Pela sua especificidade, as normas previstas no CDC têm prevalência em relação àquelas previstas nos tratados internacionais que limitam a responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros pelo desvio de bagagem, especialmente as Convenções de Varsóvia e de Montreal. (errado)

 

O STJ também segue o entendimento do STF:

É possível a limitação, por legislação internacional especial, do direito do passageiro à indenização por danos materiais decorrentes de extravio de bagagem.

STJ. 3ª Turma. REsp 673.048-RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 08/05/2018 (Info 626).

 

Por que prevalecem as Convenções?

Porque a Constituição Federal de 1988 determinou que, em matéria de transporte internacional, deveriam ser aplicadas as normas previstas em tratados internacionais. Veja:

Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade.

 

Assim, em virtude dessa previsão expressa quanto ao transporte internacional, deve-se afastar o Código de Defesa do Consumidor e aplicar o regramento do tratado internacional.

 

Critérios para resolver esta antinomia

A Convenção de Varsóvia, enquanto tratado internacional comum, possui natureza de lei ordinária e, portanto, está no mesmo nível hierárquico que o CDC. Logo, não há diferença de hierarquia entre os diplomas normativos. Diante disso, a solução do conflito envolve a análise dos critérios cronológico e da especialidade.

Em relação ao critério cronológico, os acordos internacionais referidos são mais recentes que o CDC. Isso porque, apesar de o Decreto 20.704 ter sido publicado em 1931, ele sofreu sucessivas modificações posteriores ao CDC.

Além disso, a Convenção de Varsóvia – e os regramentos internacionais que a modificaram – são normas especiais em relação ao CDC, pois disciplinam modalidade especial de contrato, qual seja, o contrato de transporte aéreo internacional de passageiros.

 

Duas importantes observações:

1) as Convenções de Varsóvia e de Montreal regulam apenas o transporte internacional (art. 178 da CF/88). Em caso de transporte nacional, aplica-se o CDC;

2) as Convenções de Varsóvia e de Montreal devem ser aplicadas não apenas na hipótese de extravio de bagagem, mas também em outras questões envolvendo o transporte aéreo internacional;

3) as indenizações por danos morais decorrentes de extravio de bagagem e de atraso de voo internacional não estão submetidas à tarifação prevista na Convenção de Montreal, devendo-se observar, nesses casos, a efetiva reparação do consumidor preceituada pelo CDC (STJ. 3ª Turma. REsp 1.842.066-RS, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 09/06/2020. Info 673).

 

O ENTENDIMENTO ACIMA TAMBÉM SE APLICA NO CASO DE CONTRATO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL DE CARGA

Imagine a seguinte situação hipotética:

A empresa Eagle Ltda celebrou contrato de transporte internacional de carga com a companhia aérea Lan Airlines.

A companhia aérea deveria trazer de Auckland (Nova Zelândia) até Curitiba (PR) uma carga de equipamentos de informática.

Para cobrir os riscos do transporte, a empresa Eagle celebrou contrato de seguradora com uma seguradora. Assim, se houvesse alguma avaria na carga, a seguradora indenizaria a Eagle e buscaria o ressarcimento com a companhia aérea. Foi justamente o que aconteceu. Parte dos equipamentos foi danificado no transporte.

A seguradora pagou a Eagle pelos prejuízos sofridos (R$ 18 mil) e, em seguida, ajuizou ação de cobrança (ação regressiva) contra a companhia aérea.

Na ação, a seguradora argumentou que se encontra legalmente sub-rogada em todos os direitos e ações da sua segurada Eagle, credora original da obrigação de transporte.

A companhia aérea apresentou contestação alegando que a indenização decorrente de danos a cargas em transporte aéreo internacional é disciplinada pela Convenção de Montreal (promulgada pelo Decreto nº 5.910/2006) e que se utiliza o valor de US$ 20,00 (vinte dólares americanos), por quilo de mercadoria. Logo, o valor da indenização seria menor do que aquele que estava sendo cobrado.

A autora refutou argumentando que não deveria ser aplicada a Convenção de Montreal, mas sim o Código de Defesa do Consumidor.

 

O que o STJ entende a respeito do tema? Essa relação jurídica também deve ser regida pela Convenção de Montreal?

SIM.

Durante os debates ocorridos no julgamento do STF (Tema 210), os Ministros ressaltaram que a tese jurídica de repercussão geral fixada diz respeito à responsabilidade civil do transportador aéreo internacional por danos materiais decorrentes da perda, destruição, avaria ou atraso de bagagens de passageiros.

No entanto, o STJ afirmou que, mesmo quando não houver extravio de bagagem de passageiro (mas sim contrato de transporte de carga) também deve ser aplicada a Convenção de Montreal, por força da regra de sobredireito trazida pelo art. 178 da Constituição, que determina a prevalência dos acordos internacionais sobre transporte internacional.

 

Em suma:



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