Dizer o Direito

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Se a parte recebeu benefício previdenciário ou assistencial por força de decisão judicial precária que, posteriormente, foi revogada, ela terá que devolver as quantias

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João é aposentado do regime geral de previdência social (INSS), recebendo R$ 3 mil a título de proventos.

Ele propõe ação judicial contra o INSS pedindo a revisão de sua aposentadoria sob o argumento de que o valor teria sido calculado de forma errada.

O juiz concorda com os argumentos do autor e concede tutela provisória de urgência (“tutela antecipada”), determinando que o INSS fique pagando mensalmente R$ 4 mil de proventos.

A Turma Recursal reforma a sentença do magistrado, revogando a tutela provisória de urgência (“tutela antecipada”) anteriormente concedida e julgando improcedente o pedido.

Ocorre que João recebeu 10 meses desse valor a mais por força da tutela provisória de urgência.

 

Indaga-se: segundo o STJ, o autor terá que devolver a quantia recebida?

SIM.

Em 2014, o STJ fixou a seguinte tese no Tema Repetitivo 692:

A reforma da decisão que antecipa a tutela obriga o autor da ação a devolver os benefícios previdenciários indevidamente recebidos.

STJ. 1ª Seção. REsp 1.401.560-MT, Rel. para acórdão Min. Ari Pargendler, julgado em 12/2/2014 (Recurso Repetitivo – Tema 692) (Info 570).

 

Vale ressaltar que, depois desse precedente do STJ, houve alguns julgados do STF apontando em sentido contrário, mas sem uma posição muito clara do Plenário da Corte:

(...) A jurisprudência do STF já assentou que o benefício previdenciário recebido de boa-fé pelo segurado, em decorrência de decisão judicial, não está sujeito à repetição de indébito, em razão de seu caráter alimentar. Precedentes. 2. Decisão judicial que reconhece a impossibilidade de descontos dos valores indevidamente recebidos pelo segurado não implica declaração de inconstitucionalidade do art. 115 da Lei nº 8.213/1991. (...)

STF. 1ª Turma. ARE 734242 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 04/08/2015.

 

Existem, inclusive, alguns julgados afirmando que não cabe ao STF analisar o tema, sob o argumento de que a matéria seria infraconstitucional: RE 798793 AgR, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 10/02/2015.

Nesse sentido, é importante ainda destacar que o STF, ao julgar o Tema 799 da Repercussão Geral (ARE 722.421/MG, j. em 19/3/2015), firmou expressamente que: “A questão acerca da devolução de valores recebidos em virtude de concessão de antecipação de tutela posteriormente revogada tem natureza infraconstitucional e a ela atribuem-se os efeitos da ausência de repercussão geral”.

No mesmo caminho: RE 1.202.649 AgR (relator Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, j. em 20/12/2019) e RE 1.152.302 AgR (relator Ministro Marco Aurélio, Primeira Turma, j. em 28/5/2019).

 

Diante desse cenário, o STJ resolveu se reunir novamente para deliberar sobre o tema. O que ficou decidido? O STJ continua entendendo que tem que devolver?

SIM.

A reforma da decisão que antecipa os efeitos da tutela final obriga o autor da ação a devolver os valores dos benefícios previdenciários ou assistenciais recebidos.

O CPC/2015 prevê que a efetivação da tutela provisória corre por conta do exequente, e a sua eventual reforma restitui as partes ao estado anterior à concessão, o que obriga o exequente a ressarcir eventuais prejuízos sofridos pelo executado. Nesse sentido:

Art. 302. Independentemente da reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se:

I - a sentença lhe for desfavorável;

(...)

III - ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legal;

(...)

Parágrafo único. A indenização será liquidada nos autos em que a medida tiver sido concedida, sempre que possível.

 

Art. 520. O cumprimento provisório da sentença impugnada por recurso desprovido de efeito suspensivo será realizado da mesma forma que o cumprimento definitivo, sujeitando-se ao seguinte regime:

I - corre por iniciativa e responsabilidade do exequente, que se obriga, se a sentença for reformada, a reparar os danos que o executado haja sofrido;

II - fica sem efeito, sobrevindo decisão que modifique ou anule a sentença objeto da execução, restituindo-se as partes ao estado anterior e liquidando-se eventuais prejuízos nos mesmos autos;

(...)

§ 5º Ao cumprimento provisório de sentença que reconheça obrigação de fazer, de não fazer ou de dar coisa aplica-se, no que couber, o disposto neste Capítulo.

 

Mas e o STF...?

O Min. Relator Og Fernandes assim explicou:

“(...) o fato de o STF ter alguns precedentes contrários ao entendimento do Tema Repetitivo 692/STJ não invalida o repetitivo. Explico. O STF adota o posicionamento referido em algumas ações originárias propostas (na maioria, mandados de segurança) em seu âmbito. Porém, não o faz com caráter de guardião da Constituição Federal, mas sim na análise concreta das ações originárias. A maioria dos precedentes do STF não diz respeito a lides previdenciárias e, além disso, são todos anteriores às alterações inseridas no art. 115, inc. II, da Lei n. 8.213/1991. Na verdade, atualmente o STF vem entendendo pela inexistência de repercussão geral nessa questão, por se tratar de matéria infraconstitucional, como se verá mais adiante.

O que se discute no caso em tela é a interpretação de artigo de lei federal, mais especificamente, o art. 115, inc. II, da Lei n. 8.213/1991 e vários dispositivos do CPC/2015. Assim, vale o entendimento do STJ sobre a matéria, pois, segundo o art. 105 da Carta Magna, é esta Corte a responsável pela uniformização da interpretação da legislação infraconstitucional no país. É por isso que o STF veda, de forma reiterada, o cabimento de recurso extraordinário para apreciar matéria infraconstitucional, a exemplo do enunciado nas Súmulas n. 636 ("Não cabe recurso extraordinário por contrariedade ao princípio constitucional da legalidade, quando a sua verificação pressuponha rever a interpretação dada a normas infraconstitucionais pela decisão recorrida."), e 638 ("A controvérsia sobre a incidência, ou não, de correção monetária em operações de crédito rural é de natureza infraconstitucional, não viabilizando recurso extraordinário.") da Corte Suprema.

(...)

Em suma, a Suprema Corte entende que a questão não é constitucional e deve, portanto, ser deslindada nos limites da legislação infraconstitucional, o que foi feito com bastante clareza pelo legislador ao trazer a nova redação do art. 115, inc. II, da Lei n. 8.213/1991.”

 

Voltando ao exemplo:

Em nosso exemplo, com a revogação da tutela provisória de urgência (“tutela antecipada”), João terá que devolver R$ 10 mil ao INSS, considerando que foi esse o valor que ele recebeu por força da decisão judicial modificada.

 

INSS começou a descontar esse valor administrativamente

O INSS passou a descontar, na via administrativa, os valores desembolsados durante a vigência da “tutela antecipada”.

Assim, João, que antes recebia R$ 3 mil por mês, passou a ver em seu contracheque apenas R$ 2.100,00. Aparecia um desconto mensal de R$ 900,00 a título de restituição.

João procurou o INSS e a autarquia argumentou que está autorizada a fazer isso com base no art. 115, II, da Lei nº 8.213/91.

 

O argumento do INSS está correto? O INSS pode descontar, na via administrativa, valores recebidos por força de decisão judicial precária posteriormente cassada em decorrência da improcedência do pedido? Aplica-se o art. 115, II, neste caso?

Antes da Lei 13.846/2019: havia certa polêmica.

O art. 115, II, da Lei nº 8.213/91 não autorizava o INSS a descontar, na via administrativa, valores concedidos a título de tutela antecipada (tutela provisória de urgência), posteriormente cassada com a improcedência do pedido.

STJ. 1ª Turma. REsp 1.338.912-SE, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 23/5/2017 (Info 605).

 

Nesse julgado (REsp 1.338.912-SE), o STJ afirmou que o inciso II do art. 115 aplicava-se apenas para a recuperação de pagamentos feitos pelo INSS na via administrativa, não podendo ser utilizado caso o pagamento tenha sido determinado por decisão judicial. Se o valor pago ao segurado ou beneficiário tivesse ocorrido por força de decisão judicial, o STJ afirmava que o INSS deveria se valer dos instrumentos judiciais para ter de volta essa quantia. Assim, o art. 115, II, não autorizava a Administração Previdenciária a cobrar, administrativamente, valores pagos a título de tutela judicial, sob pena de afronta ao princípio da segurança jurídica.

 

Depois da Lei 13.846/2019: SIM (não há mais dúvidas)

O inciso II do art. 115 da Lei nº 8.213/91 foi alterado e passou a prever expressamente essa possibilidade. Veja novamente a redação do dispositivo:

Art. 115. Podem ser descontados dos benefícios:

(...)

II - pagamento administrativo ou judicial de benefício previdenciário ou assistencial indevido, ou além do devido, inclusive na hipótese de cessação do benefício pela revogação de decisão judicial, em valor que não exceda 30% (trinta por cento) da sua importância, nos termos do regulamento;

 

Em suma:

A reforma da decisão que antecipa os efeitos da tutela final obriga o autor da ação a devolver os valores dos benefícios previdenciários ou assistenciais recebidos, o que pode ser feito por meio de desconto em valor que não exceda 30% (trinta por cento) da importância de eventual benefício que ainda lhe estiver sendo pago.

STJ. 1ª Seção. Pet 12.482-DF, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 11/05/2022 (Recurso Repetitivo – Tema 692) (Info 737).

 

DOD Plus – informações complementares

Alteração no § 3º do art. 115

A Lei nº 13.846/2019 altera a redação do § 3º do art. 115 para dizer que, em caso de dívida decorrente de revogação da tutela provisória, é possível que o INSS faça a inscrição deste débito em dívida ativa:

LEI 8.213/91

Antes da Lei 13.846/2019

Depois da Lei 13.846/2019 (atualmente)

Art. 115 (...)

§ 3º Serão inscritos em dívida ativa pela Procuradoria-Geral Federal os créditos constituídos pelo INSS em razão de benefício previdenciário ou assistencial pago indevidamente ou além do devido, hipótese em que se aplica o disposto na Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980, para a execução judicial. (Incluído pela Lei nº 13.494/2017)

 

Art. 115 (...)

§ 3º Serão inscritos em dívida ativa pela Procuradoria-Geral Federal os créditos constituídos pelo INSS em decorrência de benefício previdenciário ou assistencial pago indevidamente ou além do devido, inclusive na hipótese de cessação do benefício pela revogação de decisão judicial, nos termos da Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980, para a execução judicial.

 

Terceiro beneficiado pode ser também inscrito como devedor na dívida ativa (novos § 4º e 5º ao art. 115)

A Lei nº 13.846/2019 inseriu os §§ 4º e 5º ao art. 115 com a seguinte redação:

§ 4º Será objeto de inscrição em dívida ativa, para os fins do disposto no § 3º deste artigo, em conjunto ou separadamente, o terceiro beneficiado que sabia ou deveria saber da origem do benefício pago indevidamente em razão de fraude, de dolo ou de coação, desde que devidamente identificado em procedimento administrativo de responsabilização.

§ 5º O procedimento de que trata o § 4º deste artigo será disciplinado em regulamento, nos termos da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, e no art. 27 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942.


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