A situação concreta, com
adaptações, foi a seguinte:
“M” é uma indústria de bolachas e biscoitos. Seus produtos são todos feitos à base de farinha de trigo. Em razão disso, existe a presença de glúten na sua composição. Por conta dessa circunstância, as embalagens dos seus produtos possuem a seguinte informação destinada ao consumidor: “contém glúten”.
Ocorre que Associação Brasileira
de Defesa dos Consumidores de Plano de Saúde (Abracon) entendeu que essa
informação seria incompleta para a proteção efetiva das pessoas.
Diante disso, ingressou com ação
civil pública contra a indústria pedindo que a ré fosse condenada a veicular no
rótulo dos alimentos industrializados que produz a informação com a seguinte
mensagem mais completa: “Contém glúten. O glúten é prejudicial à saúde das
pessoas com doença celíaca.”
A indústria contestou alegando,
dentre outros argumentos, que a Abracon seria parte ilegítima por falta de
representatividade adequada e de pertinência temática.
Segundo argumentou a ré, o
objetivo estatutário da autora é a defesa dos consumidores de plano de saúde (e
não a promoção da defesa de direitos coletivos de celíacos).
Antes de prosseguir, cumpre
indagar: o que é a pertinência temática na ação civil pública?
A pertinência temática exigida
pela legislação, para a configuração da legitimidade em ações coletivas,
consiste no nexo material entre os fins institucionais do demandante e a tutela
pretendida naquela ação. É o vínculo de afinidade temática entre o legitimado e
o objeto litigioso, a harmonização entre as finalidades institucionais dos
legitimados e o objeto a ser tutelado na ação civil pública (STJ. 4ª Turma.
REsp 1357618/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 26/09/2017).
Na lição da doutrina, trata-se da
“harmonização entre as finalidades institucionais das associações civis ou dos
órgãos públicos legitimados e o objeto a ser tutelado na ação civil pública. Em
outras palavras, mencionadas pessoas somente poderão propor a ação civil
pública em defesa de um interesse cuja tutela seja de sua finalidade
institucional” (DE SOUZA, Motauri Ciocchetti. Ação Civil Pública e Inquérito
Civil. 5ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 78).
Assim, o autor de uma ACP deverá,
em regra, demonstrar a sua pertinência temática para aquele interesse tutelado.
O que acontece caso o juiz
entenda que não existe pertinência temática?
Se não houver pertinência
temática, a parte deve ser considerada ilegítima para o ajuizamento da ACP, o
que ocasionará a extinção do processo sem resolução de mérito (art. 485, VI,
CPC).
Veja como o tema já foi cobrado em prova:
þ
(Promotor de Justiça MP/SP 2019) A Associação “X”, constituída em 1999 com a
única finalidade de tutela coletiva dos direitos dos consumidores, ingressou
com ação civil pública ambiental em face do Município “Y”, pretendendo impedir
a continuidade de obras de alargamento de um logradouro, sob alegação de que a
ampliação poderia causar dano ao meio ambiente. O magistrado, embora
reconhecendo o atendimento do requisito da pré-constituição, considerou ausente
a pertinência temática para a propositura da demanda. Nesse caso, o processo
deve ser extinto, sem resolução do mérito, por ausência de legitimidade ativa.
(certo)
Voltando ao caso concreto:
o STJ acolheu a tese da indústria?
NÃO. Como vimos acima, a
pertinência temática é o nexo que deve existir entre a finalidade institucional
da autora da ACP e aquilo que se pretende na ação.
Essa análise, contudo, não pode
ser extremamente restritiva. Ao contrário. O juízo de verificação da
pertinência temática há de ser responsavelmente flexível e amplo, em
contemplação ao princípio constitucional do acesso à justiça, especialmente se
considerarmos a máxima efetividade dos direitos fundamentais.
No caso concreto, a Abracon
possui entre os fins institucionais a promoção da segurança alimentar e
nutricional, assim como a melhoria da qualidade de vida, especialmente no que
diz respeito a qualidade de produtos e serviços, estando, dessa forma, configurada
a pertinência temática.
Em suma:
O juízo de verificação da pertinência temática para a
proposição de ações civis públicas há de ser responsavelmente flexível e amplo,
em contemplação ao princípio constitucional do acesso à justiça, mormente a
considerar-se a máxima efetividade dos direitos fundamentais.
STJ. 4ª
Turma. AgInt nos EDcl no REsp 1.788.290-MS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão,
julgado em 24/05/2022 (Info 738).
Qual é o entendimento do
STJ quanto ao mérito da demanda? A indústria deverá trazer essa informação
requerida pela associação?
SIM. O STJ já decidiu em 2017
que:
O fornecedor de alimentos deve complementar a
informação-conteúdo "contém glúten" com a informação-advertência de
que o glúten é prejudicial à saúde dos consumidores com doença celíaca.
STJ. Corte Especial. EREsp 1515895-MS, Rel. Min. Humberto
Martins, julgado em 20/09/2017 (Info 612).
DOD Plus –
Tema correlato:
Mesmo sem 1 ano de
constituição, associação poderá ajuizar ACP para que fornecedor preste
informações ao consumidor sobre produtos com glúten
Como regra, para que uma associação possa propor ACP, ela deverá
estar constituída há pelo menos 1 ano.
Exceção. Este requisito da pré-constituição poderá ser
dispensado pelo juiz quando haja manifesto interesse social evidenciado pela
dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser
protegido (§ 4º do art. 5º da Lei nº 7.347/85). Neste caso, a ACP, mesmo tendo
sido proposta por uma associação com menos de 1 ano, poderá ser conhecida e
julgada.
Como exemplo da situação descrita no § 4º do art. 5º, o STJ
decidiu que:
É dispensável o requisito temporal (pré-constituição há mais de
um ano) para associação ajuizar ação civil pública quando o bem jurídico
tutelado for a prestação de informações ao consumidor sobre a existência de
glúten em alimentos.
STJ. 2ª Turma. REsp 1600172-GO, Rel. Min. Herman Benjamin,
julgado em 15/9/2016 (Info 591).