A situação concreta foi a
seguinte:
O art. 3º, § 1º, da Lei nº 7.713/88 e os arts. 5º e 54 do
Decreto nº 3.000/99 (Regulamento do Imposto de Renda (RIR) preveem que incide
imposto de renda sobre os valores recebidos em dinheiro a título de pensão
alimentícia. Confira:
Lei nº 7.713/88:
Art. 3º O imposto incidirá sobre o
rendimento bruto, sem qualquer dedução, ressalvado o disposto nos arts. 9º a 14
desta Lei.
§ 1º Constituem rendimento bruto todo o
produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, os alimentos e
pensões percebidos em dinheiro, e ainda os proventos de qualquer natureza,
assim também entendidos os acréscimos patrimoniais não correspondentes aos
rendimentos declarados.
(...)
Decreto nº 3.000/99:
Art. 5º No caso de rendimentos
percebidos em dinheiro a título de alimentos ou pensões em cumprimento de
acordo homologado judicialmente ou decisão judicial, inclusive alimentos
provisionais ou provisórios, verificando-se a incapacidade civil do alimentado,
a tributação far-se-á em seu nome pelo tutor, curador ou responsável por sua
guarda (Decreto-Lei nº 1.301, de 1973, arts. 3º, § 1º, e 4º).
(...)
Art. 54. São tributáveis os valores
percebidos, em dinheiro, a título de alimentos ou pensões, em cumprimento de
decisão judicial ou acordo homologado judicialmente, inclusive a prestação de
alimentos provisionais (Lei nº 7.713, de 1988, art. 3º, § 1º).
O Instituto Brasileiro de Direito
de Família (IBDFAM) propôs ADI contra esses dispositivos afirmando que é
inconstitucional a incidência do imposto de renda sobre os valores recebidos em
dinheiro a título de alimentos ou de pensão alimentícia estabelecida com base
no direito de família.
Primeira pergunta: o IBDFAM
possuía legitimidade para propor essa ADI?
SIM. O STF considerou que o
IBDFAM se enquadra no conceito de entidade de classe de âmbito nacional, nos
termos do art. 103, IX, da CF/88.
A Corte também entendeu que
estava presente o requisito da pertinência temática.
Os dispositivos impugnados versam
a respeito da incidência do imposto de renda sobre os valores recebidos em
dinheiro a título de pensão alimentícia, entre outras hipóteses. Note-se que
uma das principais fontes da obrigação de pagar alimentos é o direito de
família. E um dos objetivos do IBDFAM é “atuar como força representativa nos
cenários nacional e internacional e instrumento de intervenção
político-científica, ajustados aos interesses da família e aos direitos de
exercício da cidadania”.
Há, portanto, correlação entre os
objetivos institucionais do requerente e o objeto da ação direta de
inconstitucionalidade.
Segunda pergunta: o pedido foi
acolhido? Pode-se dizer que é inconstitucional a incidência do imposto de renda
sobre valores recebidos a título de alimentos ou pensão alimentícia fixadas
segundo o direito de família?
SIM. Vamos entender com calma.
A materialidade do imposto
de renda está relacionada à existência de acréscimo patrimonial
O imposto de renda está previsto no art. 153, III, da CF/88:
Art. 153. Compete à União instituir
impostos sobre:
(...)
III - renda e proventos de qualquer
natureza;
Quando o dispositivo fala em
“renda e proventos de qualquer natureza”, isso significa que somente é possível
instituir imposto de renda se houver “acréscimo patrimonial”.
Por isso, é comum você ouvir ou
ler a seguinte afirmação: “a materialidade do imposto de renda está relacionada
à existência de acréscimo patrimonial.” Repetindo: só haverá incidência de
imposto de renda se houver acréscimo patrimonial.
O IR só pode incidir uma
única vez sobre a mesma realidade
O imposto de renda só pode
incidir uma única vez sobre a mesma realidade, sob pena de ocorrência de bis
in idem vedado pelo sistema tributário.
Pressupostos necessários
para que haja a obrigação de alimentar
A obrigação
de pagar alimentos ou pensão alimentícia oriunda do direito de família tem os
seguintes pressupostos:
a) existência de vínculo de parentesco ou de reciprocidade;
b) necessidade da pessoa que reclama os alimentos, sendo
isso presumido no caso de o reclamante ser menor;
c) possibilidade da pessoa que se encontra obrigada a
pagá-los;
d) proporcionalidade na fixação do valor a ser pago a
título de alimentos.
Personagens da obrigação alimentar
De um lado da obrigação está o devedor (alimentante) que,
por ter renda ou provento de qualquer natureza, consegue ter a possibilidade de
pagar os alimentos ou a pensão alimentícia.
Do outro lado está o credor dessa pensão, que necessita
dos alimentos para, em regra, viver de modo compatível com sua condição social,
inclusive para atender às necessidades de sua educação.
Esse quadro revela a seguinte realidade: o devedor dos
alimentos, quando recebe a sua renda ou o provento de qualquer natureza
(acréscimos patrimoniais) já paga o imposto de renda, tendo em vista que isso
configura o fato gerador desse tributo. Depois de pagar o imposto, o
alimentante utiliza o que sobrou para adimplir a obrigação alimentícia.
Por
isso, submeter também os valores recebidos pelo alimentado ao pagamento do IR representa
nova incidência do mesmo tributo sobre a mesma realidade, configurando bis in idem camuflado e sem justificação
legítima, em evidente violação ao texto constitucional.
Nas exatas palavras do Min. Dias Toffoli:
“Alimentos ou
pensão alimentícia oriundos do direito de família não são renda nem provento de
qualquer natureza do credor dos alimentos, mas simplesmente montantes retirados
dos rendimentos (acréscimos patrimoniais) recebidos pelo alimentante para serem
dados ao alimentado. Nesse sentido, para o último, o recebimento de valores a
título de alimentos ou de pensão alimentícia representa tão somente uma entrada
de valores.”
A inconstitucionalidade dessa cobrança fica ainda mais
evidente quando se compara duas situações:
Situação 1: imagine um homem e uma mulher que são casados
e que possuem um filho. Suponhamos que o provedor da família é apenas o homem e
que a mulher não tenha qualquer rendimento;
Situação 2: imagine
agora um ex-casal, ou seja, um homem e uma mulher que se separaram. No
divórcio, a sentença determinou que o homem pagasse pensão alimentícia ao filho
e à ex-esposa.
Na primeira situação, o cônjuge e o filho comum são considerados
como dependentes do homem, para fins de declaração de imposto de renda, em razão
de necessitarem financeiramente dele.
Na segunda situação, a ex-esposa e o filho do casal não
podem ser considerados dependentes do homem na declaração do imposto de renda. Apesar
disso, é evidente, no presente caso, que ambos continuam a dele depender
financeiramente.
Com a separação, o que muda é a forma por meio da qual
esse último passa a suprir as necessidades daqueles dois sujeitos: antes, o
homem supria as necessidades diretamente; depois do divórcio, passa a fazer
isso por meio do pagamento da pensão alimentícia. Note-se, assim, que não há,
por força da pensão alimentícia, nova riqueza dada aos alimentados.
Além do mais, em ambas as situações a quantia destinada à
manutenção dos três sujeitos é a mesma, sendo ela, reitere-se, tributada quando
de seu recebimento pelo mantenedor. Todavia, em razão da aludida separação e do
recebimento dos alimentos (segunda situação), parte dessa quantia (a relativa
às pensões alimentícias) passa a ser tributada mais uma vez, sem justificação
legítima, pelo imposto de renda, ofendendo, desse modo, o texto constitucional.
Em suma:
É
inconstitucional norma que prevê a incidência do imposto de renda sobre valores
percebidos pelo alimentado a título de alimentos ou pensão alimentícia.
STF.
Plenário. ADI 5422/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 3/6/2022 (Info 1057).
Com base nesse entendimento, o
Plenário, por maioria, julgou procedente o pedido para dar interpretação
conforme a Constituição ao art. 3º, § 1º, da Lei nº 7.713/88, aos arts. 4º e 46
do Anexo do Decreto nº 9.580/2018, e aos arts. 3º, caput e § 1º; e 4º do
Decreto-lei nº 1.301/1973, com o intuito de afastar a incidência do imposto de
renda sobre valores decorrentes do direito de família percebidos pelos alimentados
a título de alimentos ou de pensões alimentícias.
Obs: a decisão acima se limitou a
analisar os alimentos e pensões alimentícias estabelecidas com base no direito
de família, pois o IBDFAM, ao formular suas razões, não apresentou fundamentos
de inconstitucionalidade da incidência do imposto sobre outras realidades.