ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
(ANPP)
O julgado a seguir comentado trata
sobre acordo de não persecução penal (ANPP).
Antes de verificar o que foi
decidido, irei fazer uma breve revisão sobre o tema com base na excelente obra
de Leonardo Barreto (Manual de Processo Penal. Salvador: Juspodivm,
2021).
Se estiver sem tempo, pode ir
diretamente para a explicação do julgado logo em seguida:
Acordo de não persecução
penal (ANPP)
A Lei nº 13.964/2019 (“Pacote
Anticrime”) inseriu o art. 28-A ao CPP, prevendo o instituto do acordo de
não persecução penal (ANPP), que pode ser assim conceituado:
- é um acordo (negócio jurídico)
- celebrado entre o Ministério
Público e o investigado, mas com a necessidade de homologação judicial
- firmado, em regra, antes do
início da ação penal (em regra, é pré-processual)
- ajuste esse permitido apenas
para certos tipos de crimes
- no ajuste, o investigado se
compromete a cumprir determinadas condições
- e caso cumpra integralmente o
acordo, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.
Mitigação ao princípio da
obrigatoriedade da ação penal
Segundo o princípio da
obrigatoriedade, havendo justa causa e estando preenchidos todos os requisitos
legais, o membro do Ministério Público é obrigado a oferecer a denúncia.
Trata-se de um dever, e não uma
faculdade, não sendo reservado ao Ministério Público um juízo discricionário
sobre a conveniência e oportunidade de seu ajuizamento.
Pode-se dizer, então, que o ANPP
é uma exceção ao princípio da obrigatoriedade. Outro exemplo de exceção: o
acordo de colaboração premiada, no qual o MP pode conceder ao colaborador como
benefício o não oferecimento da denúncia.
Justiça Penal Consensual
O instituto do ANPP está
diretamente ligado ao movimento chamado Justiça Penal Consensual ou Negociada
ou Pactual.
O Min. Reynaldo Soares da Fonseca
afirma que se trata de instrumento para otimização dos recursos públicos e a
efetivação da chamada Justiça multiportas, com a perspectiva restaurativa (HC
607003-SC).
Formalidades do acordo
O acordo será formalizado por
escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e
por seu defensor (§ 3º do art. 28-A).
A celebração e o cumprimento do
acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes
criminais, exceto para ficar registrado que esse mesmo investigado não poderá
fazer novo ANPP no prazo de 5 anos (§ 12 do art. 28-A).
O acordo de não persecução
penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que
não recebida a denúncia
A Lei nº 13.964/2019, no ponto em
que institui o ANPP, é considerada lei penal de natureza híbrida, admitindo
conformação entre a retroatividade penal benéfica e o tempus regit actum.
O ANPP se esgota na etapa
pré-processual, sobretudo porque a consequência da sua recusa, sua não
homologação ou seu descumprimento é inaugurar a fase de oferecimento e de
recebimento da denúncia.
O recebimento da denúncia encerra
a etapa pré-processual, devendo ser considerados válidos os atos praticados em
conformidade com a lei então vigente.
Dessa forma, a retroatividade
penal benéfica incide para permitir que o ANPP seja viabilizado a fatos
anteriores à Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia.
Assim, mostra-se impossível
realizar o ANPP quando já recebida a denúncia em data anterior à entrada em
vigor da Lei nº 13.964/2019.
STJ. 5ª Turma. HC 607003-SC, Rel. Min.
Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 24/11/2020 (Info 683).
STF. 1ª Turma. HC 191464 AgR,
Rel. Roberto Barroso, julgado em 11/11/2020.
Requisitos
(caput e § 2º do art. 28-A)
REQUISITOS PARA QUE O MP POSSA
PROPOR O ANPP
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1) não ser o caso de arquivamento
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Se não houver justa causa ou
existir alguma outra razão que impeça a propositura da ação penal, não é caso
de oferecer o acordo, devendo o MP pedir o arquivamento do inquérito policial
ou investigação criminal.
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2) o investigado deve ter confessado a prática da
infração penal
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O ANPP exige que o investigado
tenha confessado formal (em ato solene) e circunstancialmente (com detalhes) a
prática da infração penal.
O art. 18, § 2º, da Res. 181/2017-CNMP
exige que a confissão seja registrada em áudio e vídeo.
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3) infração penal foi cometida sem violência e sem grave
ameaça
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A infração penal não pode ter
sido cometida com violência ou grave ameaça.
Prevalece que é cabível ANPP se
a infração foi cometida com violência contra coisa.
Assim, o ANPP somente é
proibido se a infração foi praticada com grave ameaça ou violência contra pessoa.
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4) a pena mínima da infração penal é menor que 4
anos
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A infração penal cometida deve
ter pena mínima inferior a 4 anos.
Se a pena mínima for igual
ou superior a 4 anos, não cabe.
Para aferição da pena mínima,
serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso
concreto.
Aplicam-se ao ANPP, por
analogia, as súmulas 243-STJ e 723-STF.
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5) o acordo deve se mostrar necessário e suficiente
para reprovação e prevenção do crime no caso concreto
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Esse requisito revela que a
propositura, ou não, do acordo está atrelada a certo grau de discricionariedade
do membro do MP, que avaliará se essa necessidade e suficiência estão
presentes no caso concreto.
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6) não caber transação penal
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Se for cabível transação penal (art.
76 da Lei nº 9.099/95), o membro do MP deve propor a transação (e não o
ANPP). Isso porque se trata de benefício mais vantajoso ao investigado.
Por outro lado, mesmo que seja
cabível a suspensão condicional do processo, ainda assim, o membro do MP pode
propor o ANPP.
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7) o investigado deve ser primário
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Se o investigado for
reincidente (genérico ou específico), não cabe ANPP.
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8) não haver elementos probatórios que indiquem
conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes
as infrações penais pretéritas
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Regra: se houver elementos
probatórios que indiquem que o investigado possui uma conduta criminal
habitual, reiterada ou profissional, não cabe ANPP.
Exceção: se essas infrações
pretéritas que o investigado se envolveu forem consideradas “insignificantes”,
será possível propor ANPP.
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9) o agente não pode ter sido beneficiado nos 5
anos anteriores ao cometimento da infração com outro ANPP, transação penal ou
suspensão condicional do processo
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No momento de decidir se vai
propor o ANPP, o membro do MP deverá analisar se, nos últimos 5 anos
(contados da infração), aquele investigado já foi beneficiado:
·
com outro ANPP;
·
com transação penal ou
·
com suspensão condicional do processo.
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10) a infração praticada não pode estar submetida à
Lei Maria da Penha
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Não cabe ANPP nos crimes
praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra
a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.
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Condições
O Ministério Público irá propor
que o investigado cumpra as seguintes condições “ajustadas cumulativa e
alternativamente”:
I - reparar o dano ou restituir a
coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;
II - renunciar voluntariamente a
bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou
proveito do crime;
III - prestar serviço à
comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima
cominada ao delito diminuída de 1/3 a 2/3, em local a ser indicado pelo juízo
da execução;
IV - pagar prestação pecuniária a
entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução,
que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou
semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou
V - cumprir, por prazo
determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que
proporcional e compatível com a infração penal imputada.
Recusa do MP de oferecer o
acordo
No caso de recusa, por parte do
Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado
poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 do
CPP (§ 14º do art. 28-A).
Obrigatória a realização de
audiência
Conforme vimos acima, o ANPP
precisa de homologação judicial.
Antes de decidir pela homologação,
o juiz deverá designar audiência para analisar:
a) a legalidade do acordo, isto
é, se todos os requisitos do art. 28-A do CPP foram cumpridos; e
b) a voluntariedade, ou seja, se
o investigado deseja realmente o ajuste. Para isso, o magistrado irá fazer
oitiva do investigado na presença do seu defensor.
“Quanto à voluntariedade, o
magistrado verificará a ocorrência de algum tipo de vício de vontade, como o
erro, o dolo e a coação. Além disso, deverá observar se o agente possui pleno e
integral conhecimento do conteúdo do acordo por ele celebrado. No que diz
respeito à legalidade, o juiz deverá examinar se o ANPP foi firmado em
atendimento às hipóteses legais, assim como se as suas cláusulas estão em
consonância com o regramento contido no art. 28-A do CPP. Certo é que o
magistrado não poderá apreciar o mérito/conteúdo do acordo, matéria privativa
do Ministério Público e do investigado, dentro do campo de negociação reconhecido
pela Justiça Penal Consensual, sob pena de violação da sua imparcialidade e do
próprio sistema acusatório.” (MOREIRA ALVES, Leonardo Barreto. Manual de
Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 356).
Devolução dos autos ao MP
Se o juiz considerar inadequadas,
insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução
penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a
proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor (§ 5º do art.
28-A).
Recusa à homologação
O juiz poderá recusar homologação
à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a
adequação a que se refere o § 5º do art. 28-A acima mencionado (§ 7º do
art. 28-A).
Recusada a homologação, o juiz
devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de
complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia (§ 8º do art.
28-A).
Homologação do acordo
Homologado judicialmente o acordo
de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para
que inicie sua execução perante o juízo de execução penal (§ 6º do art. 28-A).
Vítima deverá ser informada
da celebração do acordo e de eventual descumprimento
A vítima será intimada da
homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento (§ 9º do
art. 28-A).
Cumprimento do acordo
Cumprido integralmente o acordo
de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de
punibilidade (§ 13 do art. 28-A).
Descumprimento do acordo
Descumpridas quaisquer das
condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público
deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento
de denúncia (§ 10 do art. 28-A).
O descumprimento do acordo de não
persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério
Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão
condicional do processo (§ 11 do art. 28-A).
EXPLICAÇÃO DO JULGADO
Feita essa revisão, imagine agora
a seguinte situação adaptada:
João foi denunciado pela prática do crime de corrupção
ativa, previsto no art. 333, parágrafo único do Código Penal:
Art. 333. Oferecer ou prometer vantagem
indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou
retardar ato de ofício:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12
(doze) anos, e multa.
Parágrafo único - A pena é aumentada de
um terço, se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou omite
ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional.
Após o encerramento da instrução
processual, entrou em vigor a Lei nº 13.964/2019 que acrescentou o art. 28-A no
CPP.
Diante disso, o juiz abriu vista
ao Procurador da República para que se manifestasse sobre o interesse em propor
acordo de não persecução penal.
O Procurador da República manifestou-se
pela impossibilidade de celebração do acordo, requerendo o prosseguimento do
processo.
A defesa não concordou e pediu a aplicação do § 14 do art.
28-A, do CPP:
Art. 28-A (...)
§ 14. No caso de recusa, por parte do
Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado
poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste
Código.
A 5ª Câmara de Coordenação e
Revisão do MPF manteve a recusa do Procurador da República em oferecer o acordo
afirmando que ele estava certo.
Ainda irresignada, a defesa
impetrou habeas corpus no Tribunal Regional Federal insistindo na tese de que
deveria ser oferecido o ANPP.
O TRF denegou o pedido da defesa
que, então, recorreu ao STJ alegando que o Ministério Público não fundamentou
adequadamente a recusa ao oferecimento do ANPP, razão pela qual seria possível a
intervenção do Poder Judiciário para obrigar o Parquet.
O STJ concordou com o pedido
da defesa?
NÃO.
No caso concreto, o ANPP
pretendido deixou de ser ofertado em razão de o Ministério Público ter
considerado que a celebração do acordo não seria suficiente para a reprovação e
prevenção do crime, pois violaria o postulado da proporcionalidade em sua
vertente de proibição de proteção deficiente, destacando que a conduta criminosa
foi praticada no contexto de uma rede criminosa envolvendo vários empresários
do ramo alimentício e servidores do Ministério da Agricultura.
Não há ilegalidade na recusa do
oferecimento de proposta de acordo de não persecução penal quando o
representante do Ministério Público, de forma fundamentada, constata a ausência
dos requisitos subjetivos legais necessários à elaboração do acordo, de modo
que este não atenderia aos critérios de necessidade e suficiência em face do
caso concreto.
Não se trata de direito
subjetivo do investigado
A possibilidade de oferecimento
do acordo de não persecução penal é conferida exclusivamente ao Ministério
Público, não constituindo direito subjetivo do investigado:
As condições descritas em lei são requisitos necessários para o
oferecimento do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), importante instrumento
de política criminal dentro da nova realidade do sistema acusatório brasileiro.
Entretanto, não obriga o Ministério Público, nem tampouco garante ao acusado
verdadeiro direito subjetivo em realizá-lo. Simplesmente, permite ao Parquet a opção,
devidamente fundamentada, entre denunciar ou realizar o acordo, a partir da
estratégia de política criminal adotada pela Instituição.
O art. 28-A do Código de Processo Penal, alterado pela Lei 13.964/19,
foi muito claro nesse aspecto, estabelecendo que o Ministério Público 'poderá
propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para
reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições'.
STF. 1ª Turma. HC 191124 AgR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado
em 08/04/2021.
Cuidando-se de faculdade do
Parquet, a partir da ponderação da discricionariedade da propositura do acordo,
mitigada pela devida observância do cumprimento dos requisitos legais, não cabe
ao Poder Judiciário determinar ao Ministério Público que oferte o acordo de não
persecução penal. Nesse sentido:
O Poder Judiciário não pode impor ao Ministério Público a
obrigação de ofertar acordo de não persecução penal (ANPP).
Não cabe ao Poder Judiciário, que não detém atribuição para
participar de negociações na seara investigatória, impor ao MP a celebração de
acordos.
STF. 2ª Turma.
HC 194677/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 11/5/2021 (Info 1017).
O STJ considerou que estava devidamente
fundamentado o não oferecimento do acordo de não persecução penal, em razão do
não preenchimento de todos os requisitos legais e tendo o Ministério Público
entendido que o acordo não era suficiente para a reprovação e prevenção do
crime. Por essa razão, o Tribunal entendeu que não havia nenhuma flagrante
ilegalidade a ser sanada.
Em suma: