Dizer o Direito

quinta-feira, 21 de julho de 2022

A contratação de servidores temporários sem concurso público, baseada em legislação municipal, configura ato de improbidade administrativa?

 

Imagine a seguinte situação hipotética ocorrida antes da Lei nº 14.230/2021:

João, Prefeito de um Município do interior do Maranhão, contratou Regina, sem concurso público, para exercer a função de professora. Essa contratação durou de abril de 2005 até janeiro de 2009, sendo ela então dispensada, imotivadamente, sem receber direitos trabalhistas.

A Justiça do Trabalho declarou nula a referida contratação, por ofender o art. 37, II, da CF/88 e determinou o encaminhamento de cópias dos autos ao Ministério Público estadual.

O Promotor de Justiça ajuizou ação de improbidade contra João argumentando que essa contratação violou:

• o princípio do concurso público (art. 37, II, da CF/88);

• os princípio da legalidade, da moralidade administrativa, da impessoalidade e da eficiência (art. 37, caput).

Logo, estaria configurado o ato de improbidade administrativa com base no caput e no inciso I do art. 11 da Lei nº 8.429/92 (antes da reforma operada pela Lei nº 14.230/2021):

LEI Nº 8.429/92

Antes da Lei nº 14.230/2021

Depois da Lei nº 14.230/2021

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:

I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;

Revogado.

 

Afirmou que o dolo foi configurado, pois teria havido inércia do réu na realização de um concurso público para o provimento do cargo.

O réu apresentou contestação, alegando, dentre outros argumentos, que a contratação era em caráter temporário (art. 37, IX, da CF/88) e que existe lei municipal autorizando.

De acordo com o réu, o Estatuto dos Servidores Públicos do Município autorizava a contratação, por tempo determinado, de servidores para atender excepcional interesse público, o que retiraria o dolo de improbidade administrativa. Afirmou que não se poderia qualificar como ímprobo o ato daquele que o pratica com o embasamento em lei não declarada inconstitucional. Sustentou que não foi favorecido com a contratação da professora.

 

A questão chegou até o STJ. Houve a prática de ato de improbidade administrativa (levando-se em consideração a Lei nº 8.429/92 antes da Lei nº 14.230/2021)?

NÃO. A conduta não configurou ato de improbidade administrativa mesmo antes da Lei nº 14.230/2021.

A contratação de servidores públicos temporários sem concurso público baseada em legislação local, ainda que considerada posteriormente inconstitucional, afasta a caracterização do dolo genérico para a configuração de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública.

Desse modo, como o Prefeito agiu baseado em lei municipal, não se pode dizer que ele tivesse dolo de praticar o ato de improbidade.

 

Veja a tese fixada pelo STJ:

A contratação de servidores públicos temporários sem concurso público, mas baseada em legislação local, não configura a improbidade administrativa prevista no art. 11 da Lei nº 8.429/92, por estar ausente o elemento subjetivo (dolo), necessário para a configuração do ato de improbidade violador dos princípios da administração pública.

STJ. 1ª Seção. REsp 1.913.638-MA, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 11/05/2022 (Recurso Repetitivo – Tema 1108) (Info 736).

 

E depois da Lei nº 14.230/2021?

Aí é que não configura improbidade administrativa mesmo. Isso porque a Lei nº 14.230/2021 trouxe duas alterações que restringiram ainda mais a possibilidade de caracterização do ato de improbidade administrativa.

 

1ª alteração: agora, só existe ato de improbidade administrativa se houver dolo específico

Antes da Lei nº 14.230/2021, a jurisprudência do STJ afirmava que o dolo genérico era suficiente para a configuração da conduta ímproba:

A configuração do ato de improbidade por ofensa a princípio da administração depende da demonstração do chamado dolo genérico ou lato sensu.

STJ. 2ª Turma. REsp 1383649/SE, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 05/09/2013.

 

Ressalte-se que não se exige dolo específico (elemento subjetivo específico) para sua tipificação.

STJ. 2ª Turma. AgRg no AREsp 307583/RN, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 18/06/2013.

 

Contudo, esse entendimento foi, aparentemente, superado pelo novo § 2º do art. 1º, da LIA, que diz:

Art. 1º (...)

§ 2º Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente. (Incluído pela Lei nº 14.230/2021)

 

Assim, aparentemente, com a mudança operada pela Lei nº 14.230/2021, exige-se dolo + elemento subjetivo especial (“dolo específico”) para configurar a conduta ímproba.

Reforça essa conclusão a previsão do § 3º do mesmo artigo:

Art. 1º (...)

§ 3º O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa.        (Incluído pela Lei nº 14.230/2021)

 

Os §§ 1º e 2º do art. 11 também caminham no mesmo sentido:

Art. 11 (...)

§ 1º Nos termos da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, promulgada pelo Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006, somente haverá improbidade administrativa, na aplicação deste artigo, quando for comprovado na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade. (Incluído  pela Lei nº 14.230/2021)

§ 2º Aplica-se o disposto no § 1º deste artigo a quaisquer atos de improbidade administrativa tipificados nesta Lei e em leis especiais e a quaisquer outros tipos especiais de improbidade administrativa instituídos por lei. (Incluído pela Lei nº 14.230/2021)

 

2ª alteração: o rol de atos de improbidade administrativa do art. 11 da LIA passou a ser taxativo e não se pode mais enquadrar a conduta no caput nem no inciso I, que foi revogado

Vamos novamente comparar as redações do art. 11 da LIA:

LEI Nº 8.429/92

Antes da Lei nº 14.230/2021

Depois da Lei nº 14.230/2021

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:

I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;

Revogado.

 

Antes da Lei nº 14.230/2021, as expressões “qualquer” e “notadamente” utilizadas no caput do art. 11 da LIA demonstravam que o rol dos atos de improbidade administrativa era exemplificativo (numerus apertus).

No entanto, a Lei nº 14.230/2021 modificou a redação do caput do art. 11 para inserir a expressão “caracterizada por uma das seguintes condutas”. Logo, agora, pode-se dizer que os incisos do art. 11 encerram uma lista exaustiva.

Desse modo, os princípios que o MP afirmou que o Prefeito havia violado se enquadravam no caput e no inciso I do art. 11 da LIA, mas não encontram, atualmente, correspondência nos incisos desse mesmo artigo.

 

A situação poderia ser enquadrada no inciso V do art. 11?

NÃO. Veja o que diz o dispositivo:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:         (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)

(...)

V - frustrar, em ofensa à imparcialidade, o caráter concorrencial de concurso público, de chamamento ou de procedimento licitatório, com vistas à obtenção de benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros;       (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)

 

Esse inciso V do art. 11 se destina aos casos em que há fraude no concurso público, ou seja, em que se viola o caráter concorrencial do concurso, favorecendo a e não para as hipóteses em que se deixa de fazer o certame.



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