Dizer o Direito

quinta-feira, 2 de junho de 2022

Se o condutor do veículo recebe ordem de parada do carro, mas não a cumpre, ele comete o crime de desobediência?

 

Imagine a seguinte situação adaptada:

A vítima Regina estava no interior do seu veículo, quando foi abordada por João que, mediante grave ameaça com emprego de arma de fogo, determinou-lhe que deixasse a chave do automóvel e saísse rápido.

Assim que a vítima saiu do carro, João fugiu do local dirigindo o automóvel.

Algumas horas depois, dois policiais militares que haviam sido avisados do roubo, avistaram João dirigindo o veículo subtraído de Regina. Eles ordenaram que o condutor parasse o automóvel, mas ele não obedeceu a ordem e saiu em fuga.

Uma guarnição da polícia perseguiu João até que o fugitivo bateu o carro em um poste, tendo sido preso.

 

Se você fosse o Promotor de Justiça, denunciaria João por quais delitos?

• Roubo majorado pelo emprego de arma de fogo (art. 155, § 2º-A, I, do Código Penal):

Art. 157. Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:

Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.

(...)

§ 2º-A A pena aumenta-se de 2/3 (dois terços):

I – se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma de fogo;

(...)

 

• Desobediência (art. 330 do CP):

Art. 330. Desobedecer a ordem legal de funcionário público:

Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.

 

Argumento da defesa

A defesa alegou que o réu não atendeu à ordem de parada emitida pela autoridade em razão de estar em situação de flagrante delito.

O delito de desobediência se configura apenas quando o destinatário da ordem legal tem o dever jurídico de obedecê-la

No caso concreto, a conduta de desobedecer à ordem emanada da autoridade pública não configurou crime porque se deu com o objetivo de preservar a própria liberdade. Logo, foi exercício de autodefesa.

 

O STJ concordou com a tese da defesa?

NÃO.

A CF/88 estabelece, em seu art. 5º, incisos LV e LXIII:

Art. 5º (...)

LV — aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

LXIII — o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

 

Vale ressaltar, contudo, que o direito ao silêncio e o direito de não produzir prova contra si mesmo não são absolutos. Logo, tais direitos não podem ser invocados para a prática de outros delitos.

Exemplo disso na jurisprudência:

Súmula 522-STJ: A conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de alegada autodefesa.

 

No caso concreto, conforme apontado pelo Ministério Público Federal em seu parecer que foi acolhido pelo STJ:

“a possibilidade de prisão por outro delito não é suficiente para afastar a incidência da norma penal incriminadora, haja vista que a garantia da não autoincriminação não pode elidir a necessidade de proteção ao bem jurídico tutelado pelo crime de desobediência. [...] O acusado tem direito constitucional de permanecer calado, de não produzir prova contra si e, inclusive, de mentir acerca do fato criminoso. Contudo, a pretexto exercer tais prerrogativas, não pode praticar condutas consideradas penalmente relevantes pelo ordenamento jurídico, pois tal situação caracteriza abuso do direito, desbordando a respectiva esfera protetiva”.

 

Assim, o entendimento segundo o qual o indivíduo, quando no seu exercício de defesa, não teria a obrigação de se submeter à ordem legal oriunda de funcionário público pode acarretar o estímulo à impunidade e dificultar, ou até mesmo impedir, o exercício da atividade policial e, consequentemente, da segurança pública.

 

Em suma:

A desobediência à ordem legal de parada, emanada por agentes públicos em contexto de policiamento ostensivo, para a prevenção e repressão de crimes, constitui conduta penalmente típica, prevista no art. 330 do Código Penal Brasileiro.

STJ. 3ª Seção. REsp 1.859.933-SC, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 09/03/2022 (Recurso Repetitivo – Tema 1060) (Info 732).

 

DOD Plus - cuidado para não confundir:

Jurisprudência em Teses (ed. 114):

12) A desobediência a ordem de parada dada pela autoridade de trânsito ou por seus agentes, ou por policiais ou outros agentes públicos no exercício de atividades relacionadas ao trânsito, não constitui crime de desobediência, pois há previsão de sanção administrativa específica no art. 195 do CTB, o qual não estabelece a possibilidade de cumulação de punição penal.

 

Importante fazer aqui a seguinte distinção:

• o condutor do veículo desobedece a ordem de parada dada em atividades relacionadas ao TRÂNSITO: não há crime de desobediência.

• o condutor do veículo desobedece a ordem de parada dada em contexto de policiamento ostensivo para prevenção e repressão de crimes, atuando os agentes públicos diretamente na segurança pública: configura o crime de desobediência (REsp 1.859.933-SC).


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