Imagine a seguinte situação
hipotética
Marta apresenta quadro grave de
Epilepsia Refratária. Essa condição a faz ter dezenas de crises epilépticas diárias,
além de ter sensibilidade extrema a ruídos, o que a impede de levar uma vida
normal.
Diante da ineficiência dos
tratamentos convencionais, Marta passou a fazer uso do óleo de canabidiol (CBD
Oil – um dos princípios ativos da maconha) para fins terapêuticos, o que
resultou em expressiva melhora no seu quadro de saúde, controlando suas crises
epilépticas, trazendo avanços significativos em sua qualidade de vida.
Marta faz a importação legalizada
do óleo que contém canadibiol, no entanto, o processo é burocrático e caro, o
que tem dificultado a continuidade do tratamento prescrito.
Habeas corpus preventivo
Diante desse cenário, Marta
impetrou habeas corpus preventivo pedindo para obter salvo-conduto para que ela
fosse autorizada a realizar o cultivo da maconha e a extração doméstica do
óleo, por ser essa a melhor forma de prosseguir com o tratamento.
Desse modo, o pedido foi para que
a paciente pudesse cultivar 15 mudas de cannabis sativa a cada 3 meses,
chegando-se a 60 plantas ao ano para fins de produção de canabidiol.
A questão chegou até o STJ.
O pedido pode ser acolhido?
O STJ está dividido:
É possível que o Poder
Judiciário conceda autorização para que a pessoa faça o cultivo de
maconha com objetivos medicinais? |
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5ª Turma do STJ: NÃO |
6ª Turma do STJ: SIM |
É incabível salvo-conduto para
o cultivo da cannabis visando a extração do óleo medicinal, ainda que na
quantidade necessária para o controle da epilepsia, posto que a autorização
fica a cargo da análise do caso concreto pela ANVISA. STJ. 5ª Turma. RHC 123402-RS, Rel. Min.
Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 23/03/2021 (Info 690). |
É possível a concessão de salvo-conduto
para permitir que pessoas com prescrição médica para o uso do canabidiol
cultivem plantas de maconha e dela façam a extração do óleo. STJ. 6ª Turma. RHC 147.169,
Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 14/06/2022. STJ. 6ª Turma. REsp 1.972.092, Rel. Min. Rogerio
Schietti, julgado em 14/06/2022. |
A concessão de autorização para
o cultivo de maconha depende de critérios técnicos cujo estudo refoge à
competência do juízo criminal, que não pode se imiscuir em temas cuja análise
incumbe aos órgãos de vigilância sanitária. Isso porque uma decisão desse
tipo depende de estudo de diversos elementos relativos à extensão do cultivo,
número de espécimes suficientes para atender à necessidade da recorrente,
mecanismos de controle da produção do medicamento, dentre outros fatores,
cujo exame escapa ao conjunto de competências técnicas do magistrado. Essa incumbência está a cargo
da ANVISA que, diante das peculiaridades do caso concreto, poderá autorizar
ou não o cultivo e colheita de plantas das quais se possam extrair as
substâncias necessárias para a produção artesanal dos medicamentos. Aliás, a
própria ANVISA já regulamenta esse tipo de atividade no âmbito industrial, por
meio da RDC n. 16, de 1º de abril de 2014, podendo aplicar esses critérios,
de forma extensiva, ao cultivo doméstico, caso as demais condições técnicas
sejam atendidas. Portanto, a melhor solução é,
inicialmente, submeter a questão ao exame da autarquia responsável pela
vigilância sanitária e, em caso de demora ou de negativa, apresentar o tema
ao Poder Judiciário, devendo o pleito ser direcionado à jurisdição cível
competente. |
A previsão legal acerca da
possibilidade de regulamentação do plantio para fins medicinais, art. 2º,
parágrafo único, da Lei nº 11.343/2006, permite concluir tratamento legal
díspar acerca do tema: enquanto o uso recreativo estabelece relação de
tipicidade com a norma penal incriminadora, o uso medicinal, científico ou
mesmo ritualístico-religioso não desafia persecução penal dentro dos limites
regulamentares. Embora a legislação brasileira
possibilite, há anos, a permissão, pelas autoridades competentes, de plantio,
cultura e colheita de Cannabis exclusivamente para fins medicinais ou
científicos, fato é que até hoje a matéria não tem regulamentação ou norma
específica, o que bem evidencia o descaso, ou mesmo o desprezo – quiçá por
razões morais ou políticas – com a situação de uma número incalculável de
pessoas que poderiam se beneficiar com tal regulamentação. O cultivo de planta
psicotrópica para extração de princípio ativo é conduta típica, apenas se
desconsiderada a motivação e a finalidade. A norma penal incriminadora
mira o uso recreativo, a destinação para terceiros e o lucro, visto que,
nesse caso, coloca-se em risco à saúde pública. A relação de tipicidade não
vai encontrar guarida na conduta de cultivar planta psicotrópica para
extração de canabidiol para uso próprio, visto que a finalidade, aqui, é a
realização do direito à saúde, conforme prescrito pela medicina. O que se pretende com o plantio
da Cannabis não é a extração de droga (maconha) com o fim de entorpecimento –
potencialmente causador de dependência – próprio ou alheio, mas, tão somente,
a extração das substâncias com reconhecidas propriedades medicinais contidas
na planta. Não há, portanto, vontade livre e consciente de praticar o fim
previsto na norma penal, qual seja, a extração de droga, para entorpecimento
pessoal ou de terceiros. |