Dizer o Direito

terça-feira, 14 de junho de 2022

É possível que o Poder Judiciário conceda autorização para que a pessoa faça o cultivo de maconha com objetivos medicinais?

 

Imagine a seguinte situação hipotética

Marta apresenta quadro grave de Epilepsia Refratária. Essa condição a faz ter dezenas de crises epilépticas diárias, além de ter sensibilidade extrema a ruídos, o que a impede de levar uma vida normal.

Diante da ineficiência dos tratamentos convencionais, Marta passou a fazer uso do óleo de canabidiol (CBD Oil – um dos princípios ativos da maconha) para fins terapêuticos, o que resultou em expressiva melhora no seu quadro de saúde, controlando suas crises epilépticas, trazendo avanços significativos em sua qualidade de vida.

Marta faz a importação legalizada do óleo que contém canadibiol, no entanto, o processo é burocrático e caro, o que tem dificultado a continuidade do tratamento prescrito.

 

Habeas corpus preventivo

Diante desse cenário, Marta impetrou habeas corpus preventivo pedindo para obter salvo-conduto para que ela fosse autorizada a realizar o cultivo da maconha e a extração doméstica do óleo, por ser essa a melhor forma de prosseguir com o tratamento.

Desse modo, o pedido foi para que a paciente pudesse cultivar 15 mudas de cannabis sativa a cada 3 meses, chegando-se a 60 plantas ao ano para fins de produção de canabidiol.

 

A questão chegou até o STJ. O pedido pode ser acolhido?

O STJ está dividido:

É possível que o Poder Judiciário conceda autorização para que

a pessoa faça o cultivo de maconha com objetivos medicinais?

5ª Turma do STJ: NÃO

6ª Turma do STJ: SIM

É incabível salvo-conduto para o cultivo da cannabis visando a extração do óleo medicinal, ainda que na quantidade necessária para o controle da epilepsia, posto que a autorização fica a cargo da análise do caso concreto pela ANVISA.

STJ. 5ª Turma. RHC 123402-RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 23/03/2021 (Info 690).

É possível a concessão de salvo-conduto para permitir que pessoas com prescrição médica para o uso do canabidiol cultivem plantas de maconha e dela façam a extração do óleo.

 

STJ. 6ª Turma. RHC 147.169, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 14/06/2022.

STJ. 6ª Turma. REsp 1.972.092, Rel. Min. Rogerio Schietti, julgado em 14/06/2022.

A concessão de autorização para o cultivo de maconha depende de critérios técnicos cujo estudo refoge à competência do juízo criminal, que não pode se imiscuir em temas cuja análise incumbe aos órgãos de vigilância sanitária. Isso porque uma decisão desse tipo depende de estudo de diversos elementos relativos à extensão do cultivo, número de espécimes suficientes para atender à necessidade da recorrente, mecanismos de controle da produção do medicamento, dentre outros fatores, cujo exame escapa ao conjunto de competências técnicas do magistrado.

Essa incumbência está a cargo da ANVISA que, diante das peculiaridades do caso concreto, poderá autorizar ou não o cultivo e colheita de plantas das quais se possam extrair as substâncias necessárias para a produção artesanal dos medicamentos. Aliás, a própria ANVISA já regulamenta esse tipo de atividade no âmbito industrial, por meio da RDC n. 16, de 1º de abril de 2014, podendo aplicar esses critérios, de forma extensiva, ao cultivo doméstico, caso as demais condições técnicas sejam atendidas.

Portanto, a melhor solução é, inicialmente, submeter a questão ao exame da autarquia responsável pela vigilância sanitária e, em caso de demora ou de negativa, apresentar o tema ao Poder Judiciário, devendo o pleito ser direcionado à jurisdição cível competente.

A previsão legal acerca da possibilidade de regulamentação do plantio para fins medicinais, art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 11.343/2006, permite concluir tratamento legal díspar acerca do tema: enquanto o uso recreativo estabelece relação de tipicidade com a norma penal incriminadora, o uso medicinal, científico ou mesmo ritualístico-religioso não desafia persecução penal dentro dos limites regulamentares.

Embora a legislação brasileira possibilite, há anos, a permissão, pelas autoridades competentes, de plantio, cultura e colheita de Cannabis exclusivamente para fins medicinais ou científicos, fato é que até hoje a matéria não tem regulamentação ou norma específica, o que bem evidencia o descaso, ou mesmo o desprezo – quiçá por razões morais ou políticas – com a situação de uma número incalculável de pessoas que poderiam se beneficiar com tal regulamentação.

O cultivo de planta psicotrópica para extração de princípio ativo é conduta típica, apenas se desconsiderada a motivação e a finalidade.

A norma penal incriminadora mira o uso recreativo, a destinação para terceiros e o lucro, visto que, nesse caso, coloca-se em risco à saúde pública. A relação de tipicidade não vai encontrar guarida na conduta de cultivar planta psicotrópica para extração de canabidiol para uso próprio, visto que a finalidade, aqui, é a realização do direito à saúde, conforme prescrito pela medicina.

O que se pretende com o plantio da Cannabis não é a extração de droga (maconha) com o fim de entorpecimento – potencialmente causador de dependência – próprio ou alheio, mas, tão somente, a extração das substâncias com reconhecidas propriedades medicinais contidas na planta. Não há, portanto, vontade livre e consciente de praticar o fim previsto na norma penal, qual seja, a extração de droga, para entorpecimento pessoal ou de terceiros.

 

 


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