Dizer o Direito

terça-feira, 7 de junho de 2022

A Lei Maria da Penha pode ser aplicada em favor de mulheres trans ?

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

O pai chegou bêbado em casa e passou a agredir sua filha, que é uma mulher trans.

Uma mulher trans é uma pessoa que nasceu com o sexo físico masculino, mas que se identifica como uma pessoa do gênero feminino. Vamos entender um pouco mais sobre o assunto:

“O termo trans é utilizado para se referir a uma pessoa que não se identifica com o gênero ao qual foi designado em seu nascimento. Quando nascemos, nossos gêneros são determinados pelo nosso sexo. Assim, uma pessoa que nasce com um pênis é considerada como um homem e uma pessoa que nasce com uma vagina, como uma mulher. Contudo, algumas pessoas percebem que se identificam com outro gênero e passam a viver como assim desejam e se sentem melhor consigo mesmas.

Dessa forma, podemos utilizar ‘mulher trans’ ou ‘pessoa transfeminina’ para se referir a alguém que foi designado homem, mas se entende como uma figura feminina. Já o termo “homem trans’ ou “pessoa transmasculina’ é indicado para tratar uma pessoa que foi designada mulher, mas se identifica com uma imagem pessoal masculina.” (https://transcendemos.com.br/transcendemosexplica/trans/)

 

A vítima conseguiu fugir e procurou a Delegacia da Mulher.

A autoridade policial encaminhou ao juízo pedido de medidas protetivas em favor da vítima, nos termos do art. 12, III, da Lei nº 11.340/2006.

O juiz, contudo, negou o pedido afirmando que a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, somente se aplicaria para vítimas que sejam do sexo feminino em seu sentido biológico.

O TJ/SP manteve a decisão do magistrado.

O Ministério Público, então, recorreu ao STJ em favor da vítima.

 

Para o STJ, a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) se aplica para mulheres trans?

SIM.

 

Sexo, gênero e identidade de gênero

É importante diferenciar esses três conceitos, a partir do “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”, aprovado na Recomendação nº 128, de 15 de fevereiro de 2022, do Conselho Nacional de Justiça.

Veja abaixo o que o Protocolo fala sobre o tema.

 

Sexo

O conceito de sexo está relacionado aos aspectos biológicos que servem como base para a classificação de indivíduos entre machos, fêmeas e intersexuais. Em nossa sociedade, seres humanos são divididos nessas categorias – em geral, ao nascer – a partir de determinadas características anatômicas, como órgãos sexuais e reprodutivos, hormônios e cromossomos.

Ocorre que, atualmente, o conceito de sexo é considerado obsoleto enquanto ferramenta analítica para refletirmos sobre desigualdades. Isso porque deixa de fora uma série de outras características que não são puramente biológicas, mas sim socialmente construídas e atribuídas a indivíduos e que têm maior relevância para entendermos como opressões acontecem no mundo real.

 

Gênero

Utilizamos a palavra gênero quando queremos tratar do conjunto de características socialmente atribuídas aos diferentes sexos.

Enquanto o sexo se refere à biologia, o gênero se refere à cultura.

Quando pensamos em um homem ou em uma mulher, não pensamos apenas em suas características biológicas; pensamos também em uma série de construções sociais, referentes aos papéis socialmente atribuídos aos grupos: gostos, destinos e expectativas quanto a comportamentos.

Da mesma forma, como é comum presentear meninas com bonecas, é comum presentear meninos com carrinhos ou bolas. Nenhum dos dois grupos têm uma inclinação necessária a gostar de bonecas ou carrinhos, mas, culturalmente, criou-se essa ideia – que é tão enraizada que, muitas vezes, pode parecer natural e imutável. A atribuição de características diferentes a grupos diferentes não é, entretanto, homogênea. Pessoas de um mesmo grupo são também diferentes entre si, na medida em que são afetadas por diversos marcadores sociais, como raça, idade e classe, por exemplo. Dessa forma, é importante ter em mente que são atribuídos papéis e características diferentes a diferentes mulheres.

 

Identidade de gênero

Muitas vezes, uma pessoa pode se identificar com um conjunto de características não alinhado ao seu sexo designado. Ou seja, é possível nascer do sexo masculino, mas se identificar com características tradicionalmente associadas ao que culturalmente se atribuiu ao sexo feminino e vice-versa, ou então, não se identificar com gênero algum.

Pessoas que não se conformam com o gênero a elas atribuído ao nascer foram e ainda são extremamente discriminadas no Brasil e no mundo, na medida em que a conformidade entre sexo e gênero continua a ser a expectativa dominante da sociedade.

Assim, a identidade de gênero consiste na identificação com características socialmente atribuídas a determinado gênero – mesmo que de forma não alinhada com o sexo biológico de um indivíduo (pessoas cujo sexo e gênero se alinham, são chamadas cisgênero; pessoas cujo sexo e gênero divergem, são chamadas transgênero; existem também pessoas que não se identificam com nenhum gênero.

 

Aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres trans porque o critério é o gênero (que não se confunde com o sexo)

O alcance do art. 5º da Lei nº 11.340/2006 passa necessariamente pelo entendimento do conceito de gênero, que não se confunde com o conceito de sexo biológico.

O elemento diferenciador da abrangência da Lei nº 11.340/2006 é o gênero feminino. Acontece que o sexo biológico e a identidade subjetiva nem sempre coincidem. Nesta ótica, a Lei deve ser dilatada para abranger esses casos, como a situação dos transgêneros, os quais tenham identidade com o gênero feminino.

 

Em suma:

A Lei nº 11.340/2006 (Maria da Penha) é aplicável às mulheres trans em situação de violência doméstica.

STJ. 6ª Turma. REsp 1.977.124/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 5/4/2022 (Info 732).



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