Dizer o Direito

segunda-feira, 23 de maio de 2022

PROCON tem legitimidade para ajuizar ação civil pública questionando a abusividade de reajuste no valor cobrado dos usuários da CABESP (plano de saúde de autogestão)?

 

A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:

A Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor de São Paulo (PROCON/SP) ajuizou ação civil pública contra a Caixa Beneficente dos Funcionários do Banco do Estado de São Paulo (CABESP) questionando o reajuste do valores dos planos de saúde.

Imagine que você seja advogada(o) da CABESP. Qual seria uma interessante tese que você poderia invocar para evitar a condenação?

A ilegitimidade ativa do PROCON para essa causa.

Vou explicar com calma.

 

O que é a pertinência temática na ação civil pública?

A pertinência temática consiste na “harmonização entre as finalidades institucionais das associações civis ou dos órgãos públicos legitimados e o objeto a ser tutelado na ação civil pública. Em outras palavras, mencionadas pessoas somente poderão propor a ação civil pública em defesa de um interesse cuja tutela seja de sua finalidade institucional” (DE SOUZA, Motauri Ciocchetti. Ação Civil Pública e Inquérito Civil. 5ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 78).

Assim, o autor de uma ACP deverá, em regra, demonstrar a sua pertinência temática para aquele interesse tutelado.

 

O que acontece caso o juiz entenda que não existe pertinência temática?

Se não houver pertinência temática, a parte deve ser considerada ilegítima para o ajuizamento da ACP, o que ocasionará a extinção do processo sem resolução de mérito (art. 485, VI, CPC).

Veja como o tema já foi cobrado em prova:

þ (Promotor de Justiça MP/SP 2019) A Associação “X”, constituída em 1999 com a única finalidade de tutela coletiva dos direitos dos consumidores, ingressou com ação civil pública ambiental em face do Município “Y”, pretendendo impedir a continuidade de obras de alargamento de um logradouro, sob alegação de que a ampliação poderia causar dano ao meio ambiente. O magistrado, embora reconhecendo o atendimento do requisito da pré-constituição, considerou ausente a pertinência temática para a propositura da demanda. Nesse caso, o processo deve ser extinto, sem resolução do mérito, por ausência de legitimidade ativa. (certo)

 

Quem são os legitimados para propor ACP?

O rol dos legitimados para a ACP está previsto no art. 5º da Lei nº 7.347/85:

Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:

I - o Ministério Público;

II - a Defensoria Pública;

III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista;

V - a associação que, concomitantemente:

a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;

b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

 

A pertinência temática é exigida apenas das associações?

NÃO.

Se formos analisar apenas o texto literal, o art. 5º da Lei nº 7.347/85 apenas exige expressamente da associação a comprovação de pertinência temática para propositura de ação civil pública. É a alínea “b” do inciso V do art. 5º acima transcrito.

Assim, em uma interpretação literal, as autarquias, empresas públicas, fundações públicas e sociedades de economia mista não precisariam comprovar a pertinência temática para ajuizarem ações coletivas.

Nessa perspectiva, os integrantes da administração pública indireta passariam a ter amplos poderes, concorrendo, inclusive, com as finalidades institucionais do Ministério Público e da Defensoria Pública, convertendo-se em verdadeiros “procuradores universais”, com legitimidade para ajuizamento das mais variadas demandas coletivas, independentemente de sua área de atuação.

Ocorre que o STJ não adota essa interpretação literal. Isso porque não se pode esquecer que as autarquias, empresas públicas, fundações públicas e sociedades de economia mista possuem competências legais e estatutárias, as quais delimitam o seu campo de atuação.

Justamente por isso, a doutrina defende e o STJ encampou a tese de que as entidades da administração pública indireta somente poderão ingressar com ACP se demonstrarem a pertinência temática:

“Não basta a existência fática de uma pessoa da Administração Pública indireta: necessário se faz o exame de seu regime estatutário (lei, regulamento, contrato ou ato de constituição etc.). Será o seu estatuto que conferirá legitimidade adequada (ou não) à pessoa jurídica, com densidades diferentes: uma coisa é uma autarquia; outra, uma sociedade de economia mista com capital aberto na bolsa de valores” (MOREIRA, Egon Bockmann; BAGATIN, Andreia Cristina; ARENHART, Sérgio Cruz; FERRARO, Marcella Pereira. Comentários à Lei de Ação Civil Pública. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, pp. 371).

 

Em suma:

 

Voltando ao caso concreto:

NÃO. O PROCON/SP possui natureza jurídica de fundação. Logo, trata-se de entidade da administração pública indireta. Desse modo, a sua legitimidade ativa para ACP depende da demonstração da pertinência temática.

 

O PROCON tinha pertinência temática para a defesa desse interesse em juízo?

NÃO.

O objetivo institucional do PROCON é o de elaborar e executar a política estadual de proteção e defesa do consumidor.

A CABESP é um plano de saúde de autogestão criado para assegurar assistência médica, hospitalar, odontológica, psicológica e paramédica aos funcionários do Banco do Estado de São Paulo S/A.

O STJ consagrou o entendimento no sentido de que não se aplica o Código de Defesa do Consumidor ao contrato de plano de saúde administrado por entidade de autogestão, haja vista a inexistência de relação de consumo:

Súmula 608-STJ: Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão.

 

Dessa forma, como o objetivo do PROCON/SP é a defesa dos interesses dos consumidores e tendo em vista que os usuários do CABESP não podem ser considerados como consumidores, fica muito clara a ausência de pertinência temática.


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