Dizer o Direito

quinta-feira, 19 de maio de 2022

É incabível a interposição de recurso ordinário contra apelação em mandado de segurança

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João impetrou mandado de segurança na 1ª instância.

O juiz concedeu a sentença (julgou procedente o pedido formulado).

O ente público interpôs apelação.

O Tribunal Regional Federal deu provimento à apelação.

 

João não se conformou e quer recorrer. Qual é o recurso cabível neste caso?

Recurso especial, nos termos do art. 105, III, da CF/88:

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

(...)

III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:

(...)

 

Ocorre que o advogado de João interpôs recurso ordinário...

O recurso ordinário envolvendo mandado de segurança encontra-se assim previsto no art. 105, II, da CF/88:

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

(...)

II - julgar, em recurso ordinário:

(...)

b) os mandados de segurança decididos em única instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando denegatória a decisão;

(...)

 

Veja que não cabia mandado de segurança porque, no caso concreto, o Tribunal Regional Federal não decidiu o mandado de segurança em única instância. O TRF decidiu uma apelação (ainda que envolvendo mandado de segurança).

Não se deve, portanto, confundir:

• se o mandado de segurança foi impetrado diretamente no TJ ou TRF e o Tribunal julgou contra o impetrante: cabe recurso ordinário para o STJ.

• se o mandado de segurança foi impetrado em 1ª instância e o TJ ou TRF julgou contra o impetrante em grau de recurso: cabe recurso especial para o STJ.

 

Os dois recursos são julgados pelo STJ. Existe alguma diferença entre eles?

SIM. Existem relevantes diferenças práticas:

• recurso especial: para que seja cabível é necessário o enquadramento em uma das alíneas do art. 105, III, da CF/88, exige-se prequestionamento, não é admitido para simples reexame de prova etc.

• recurso ordinário: para que seja cabível basta que a decisão do TJ/TRF tenha sido denegatória da segurança, não se exige prequestionamento, haverá amplo revolvimento probatório etc.

 

Voltando ao nosso caso concreto:

O Ministro Relator, no STJ, percebeu que foi interposto o recurso inadequado e, por decisão monocrática, não conheceu do recurso ordinário em mandado de segurança.

O autor interpôs agravo interno, dirigido à 2ª Turma, contra essa decisão monocrática pedindo a aplicação do princípio da fungibilidade de forma que o recurso ordinário fosse recebido como recurso especial.

 

O agravo interno foi provido?

NÃO.

Para o Ministro Relator, a parte ingressou com recurso ordinário (em vez de recurso especial, como seria correto), de forma proposital, a fim de evitar a incidência da Súmula nº 7 do STJ, que diz: A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.

Em outras palavras, como a parte queria reexaminar prova e isso não é possível por meio de recurso especial, ela teria interposto recurso ordinário para transpor esse obstáculo.

Segundo o Ministro Relator:

“A tática confessadamente deliberada de manejar-se o recurso ordinário com o intuito de afastar a incidência da Súmula n. 7/STJ revela-se particularmente afrontosa ao Poder Judiciário. A competência desta (e de outras) Cortes se afirma pelo ordenamento constitucional e suas derivações, não pela estratégia processual articulada pelas partes.”

 

Seria possível aplicar o princípio da fungibilidade neste caso?

NÃO. Isso porque não existe fungibilidade recursal entre as vias ordinária e especial, ante a ausência de dúvida objetiva patente sobre as hipóteses de cabimento das espécies recursais.

Além disso, para o STJ, existe erro grosseiro na interposição do recurso ordinário contra acórdão de apelação em mandado de segurança. “O fato de se tratar de erro deliberado, com intuito de burlar a compreensão desta Corte sobre os requisitos constitucionais de manejo do recurso especial não mitiga ou afasta tal equívoco; ao contrário.”

A jurisprudência do STJ é no sentido de que constitui erro grosseiro interpor recurso ordinário, em vez de recurso especial, contra acórdão de apelação e remessa necessária em mandado de segurança.

Ainda que se admitisse a descabida fungibilidade, por obviedade lógica, a análise do recurso sob a via especial esbarraria, no óbice de que tentou se esquivar, resultando igualmente no não conhecimento da pretensão. Explicando melhor essa frase: ainda que se admitisse a fungibilidade, não caberia recurso especial no presente caso porque a parte queria fazer o “simples reexame de prova”, o que não é possível em sede de recurso especial (Súmula 7 do STJ).

 

Em suma:

É incabível a interposição de recurso ordinário contra apelação em mandado de segurança.

STJ. 2ª Turma. RMS 66.905-SP, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 22/03/2022 (Info 731).

 

Obs: no caso concreto, a Turma, além de negar provimento ao agravo, impôs multa de 1% do valor atualizado da causa, nos termos do art. 1.021, § 4º, do CPC:

Art. 1.021 (...)

§ 4º Quando o agravo interno for declarado manifestamente inadmissível ou improcedente em votação unânime, o órgão colegiado, em decisão fundamentada, condenará o agravante a pagar ao agravado multa fixada entre um e cinco por cento do valor atualizado da causa.


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