Imagine a seguinte situação
hipotética:
João impetrou mandado de
segurança na 1ª instância.
O juiz concedeu a sentença
(julgou procedente o pedido formulado).
O ente público interpôs apelação.
O Tribunal Regional Federal deu
provimento à apelação.
João não se conformou e
quer recorrer. Qual é o recurso cabível neste caso?
Recurso especial, nos termos do art. 105, III, da CF/88:
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal
de Justiça:
(...)
III - julgar, em recurso especial, as
causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais
Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios,
quando a decisão recorrida:
(...)
Ocorre que o advogado de João
interpôs recurso ordinário...
O recurso ordinário envolvendo mandado de segurança encontra-se
assim previsto no art. 105, II, da CF/88:
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal
de Justiça:
(...)
II - julgar, em recurso ordinário:
(...)
b) os mandados de segurança decididos
em única instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos
Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando denegatória a decisão;
(...)
Veja que não cabia mandado de
segurança porque, no caso concreto, o Tribunal Regional Federal não decidiu o
mandado de segurança em única instância. O TRF decidiu uma apelação (ainda que
envolvendo mandado de segurança).
Não se deve, portanto, confundir:
• se o mandado de segurança foi
impetrado diretamente no TJ ou TRF e o Tribunal julgou contra o impetrante:
cabe recurso ordinário para o STJ.
• se o mandado de segurança foi
impetrado em 1ª instância e o TJ ou TRF julgou contra o impetrante em grau de
recurso: cabe recurso especial para o STJ.
Os dois recursos são
julgados pelo STJ. Existe alguma diferença entre eles?
SIM. Existem relevantes
diferenças práticas:
• recurso especial: para que seja
cabível é necessário o enquadramento em uma das alíneas do art. 105, III, da
CF/88, exige-se prequestionamento, não é admitido para simples reexame de prova
etc.
• recurso ordinário: para que
seja cabível basta que a decisão do TJ/TRF tenha sido denegatória da segurança,
não se exige prequestionamento, haverá amplo revolvimento probatório etc.
Voltando ao nosso caso
concreto:
O Ministro Relator, no STJ, percebeu
que foi interposto o recurso inadequado e, por decisão monocrática, não conheceu
do recurso ordinário em mandado de segurança.
O autor interpôs agravo interno,
dirigido à 2ª Turma, contra essa decisão monocrática pedindo a aplicação do
princípio da fungibilidade de forma que o recurso ordinário fosse recebido como
recurso especial.
O agravo interno foi
provido?
NÃO.
Para o Ministro Relator, a parte
ingressou com recurso ordinário (em vez de recurso especial, como seria correto),
de forma proposital, a fim de evitar a incidência da Súmula nº 7 do STJ, que
diz: A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.
Em outras palavras, como a parte
queria reexaminar prova e isso não é possível por meio de recurso especial, ela
teria interposto recurso ordinário para transpor esse obstáculo.
Segundo o Ministro Relator:
“A tática
confessadamente deliberada de manejar-se o recurso ordinário com o intuito de
afastar a incidência da Súmula n. 7/STJ revela-se particularmente afrontosa ao
Poder Judiciário. A competência desta (e de outras) Cortes se afirma pelo
ordenamento constitucional e suas derivações, não pela estratégia processual
articulada pelas partes.”
Seria possível aplicar o
princípio da fungibilidade neste caso?
NÃO. Isso porque não existe fungibilidade
recursal entre as vias ordinária e especial, ante a ausência de dúvida objetiva
patente sobre as hipóteses de cabimento das espécies recursais.
Além disso, para o STJ, existe erro
grosseiro na interposição do recurso ordinário contra acórdão de apelação em
mandado de segurança. “O fato de se tratar de erro deliberado, com intuito de
burlar a compreensão desta Corte sobre os requisitos constitucionais de manejo
do recurso especial não mitiga ou afasta tal equívoco; ao contrário.”
A jurisprudência do STJ é no
sentido de que constitui erro grosseiro interpor recurso ordinário, em vez de
recurso especial, contra acórdão de apelação e remessa necessária em mandado de
segurança.
Ainda que se admitisse a descabida
fungibilidade, por obviedade lógica, a análise do recurso sob a via especial
esbarraria, no óbice de que tentou se esquivar, resultando igualmente no não
conhecimento da pretensão. Explicando melhor essa frase: ainda que se admitisse
a fungibilidade, não caberia recurso especial no presente caso porque a parte
queria fazer o “simples reexame de prova”, o que não é possível em sede de recurso
especial (Súmula 7 do STJ).
Em suma:
É incabível a interposição de recurso ordinário
contra apelação em mandado de segurança.
STJ. 2ª Turma. RMS 66.905-SP, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em
22/03/2022 (Info 731).
Obs: no caso concreto, a Turma, além de negar provimento ao
agravo, impôs multa de 1% do valor atualizado da causa, nos termos do art.
1.021, § 4º, do CPC:
Art. 1.021 (...)
§ 4º Quando o agravo interno for
declarado manifestamente inadmissível ou improcedente em votação unânime, o
órgão colegiado, em decisão fundamentada, condenará o agravante a pagar ao
agravado multa fixada entre um e cinco por cento do valor atualizado da causa.