Dizer o Direito

terça-feira, 19 de abril de 2022

O art. 178, II, do CPC afirma que o MP será intimado para intervir nos processos que envolvam “interesse de incapaz”. Para que a intervenção seja obrigatória é necessário que a pessoa já tenha sido declarada formalmente incapaz?

 

Imagine a seguinte situação adaptada:

Maria padece de enfermidade psíquica grave (esquizofrenia). Ela ajuizou ação de obrigação de fazer contra seu ex-cônjuge Eduardo e seus filhos Jeferson, Daniel e Michele pedindo que os réus fossem condenados a arcar com os custos de sua internação em um estabelecimento adequado.

A sentença julgou improcedente o pedido.

No que tange ao ex-cônjuge, o juiz afirmou que o vínculo conjugal entre as partes foi dissolvido há mais de duas décadas, inexistindo responsabilidade ou obrigação remanescente entre as partes.

Quanto aos filhos, o magistrado disse que eles não possuíam capacidade financeira para custear um local especializado para moradia da autora.

A autora interpôs apelação, mas o TJ/SP manteve a sentença.

 

Recurso especial do MP

O Ministério Público do Estado de São Paulo interpôs recurso especial alegando que houve nulidade absoluta do processo diante da ausência de intimação do Ministério Público. Isso porque o Parquet não foi intimado para intervir no processo no 1º grau de jurisdição, tendo sido intimado apenas do julgamento da apelação.

Os recorridos refutaram o pedido do MP com base em três argumentos:

1) não houve declaração judicial de incapacidade da autora. Logo, não sendo ela juridicamente incapaz, não havia motivos para a intervenção do MP;

2) a nulidade do processo só deve ocorrer se houver prejuízo demonstrado concretamente, o que não foi o caso;

3) não há nulidade do processo em virtude da ausência de intimação do Ministério Público em 1º grau de jurisdição porque houve a intervenção do Parquet no 2º grau de jurisdição, de sorte que ficou suprida essa eventual falha.

 

O STJ concordou com os argumentos do MP ou dos recorridos? Houve nulidade?

Com os argumentos do MP. Houve nulidade. Vamos analisar cada um dos pontos levantados pelos recorridos.

 

1) Havendo fundadas suspeitas de que a parte é incapaz, deverá intervir o MP, ainda que a incapacidade seja de fato (e não de direito)

A autora, apesar de não ter sido judicialmente declarada incapaz e interditada, argumentou, desde a petição inicial, que apresenta enfermidade psíquica grave (esquizofrenia).

Desse modo, deveria ter havido a intimação e intervenção do Ministério Público, na qualidade de fiscal do ordenamento jurídico, conforme preconiza o art. 178, II, do CPC:

 

Art. 279. É nulo o processo quando o membro do Ministério Público não for intimado a acompanhar o feito em que deva intervir.

 

O art. 178, II, do CPC, ao prever a necessidade de intervenção no processo que envolva interesse de incapaz, não se refere apenas ao juridicamente incapaz (legal ou judicialmente declarado como tal). Essa regra abrange, igualmente, o faticamente incapaz. Nesse sentido:

“(...) pode haver atuação ministerial quando se constate a incapacidade de fato (vítima de grave AVC), ainda que não haja declaração formal da incapacidade (interdição). O art. 178, II, do CPC, fala abstratamente em “interesse de incapaz”, de modo que, diante da falta de distinção, atua o MP nos feitos de incapazes de fato e de direito.” (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JR., Zulmar. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2021).

 

“quando houver fundadas suspeitas de que a parte ou interessado é incapaz, deverá intervir o MP, ainda que a incapacidade seja de fato, sob pena de nulidade”. (NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 16ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 729).

 

2) Houve prejuízo concreto porque seria necessário avaliar a necessidade de se propor a interdição da autora

A autora apresenta enfermidade psíquica grave sendo, portanto, fato que, em tese, pode comprometer a sua plena capacidade civil. Desse modo, em princípio, seria necessário avaliar a eventual necessidade de propositura de ação de interdição da autora ou, ao menos, da instauração de procedimento de tomada de decisão apoiada.

A ação de interdição teria que ser ajuizada por um dos legitimados, na forma dos arts. 747 e 748 do CPC:

Art. 747. A interdição pode ser promovida:

I - pelo cônjuge ou companheiro;

II - pelos parentes ou tutores;

III - pelo representante da entidade em que se encontra abrigado o interditando;

IV - pelo Ministério Público.

Parágrafo único. A legitimidade deverá ser comprovada por documentação que acompanhe a petição inicial.

 

Art. 748. O Ministério Público só promoverá interdição em caso de doença mental grave:

I - se as pessoas designadas nos incisos I, II e III do art. 747 não existirem ou não promoverem a interdição;

II - se, existindo, forem incapazes as pessoas mencionadas nos incisos I e II do art. 747.

 

A partir do exame do rol de legitimados previsto no art. 747 do CPC/15, constata-se que, na hipótese, a eventual interdição da autora, em princípio, não poderia ser proposta por cônjuge ou companheiro (pois a autora é divorciada de seu cônjuge, que inclusive compõe o polo passivo), por parentes ou tutores (pois indica, como parentes próximos, os filhos, que igualmente compõem o polo passivo) ou por representante da entidade em que se encontra abrigada (pois, em verdade, não se encontrada abrigada, pretendendo, nesta ação, justamente essa espécie de acolhimento).

Dessa forma, constata-se que o único legitimado indiscutivelmente isento e potencialmente interessado em avaliar a eventual necessidade de promover a ação de interdição seria o Ministério Público, que não foi intimado da existência da ação em 1º grau de jurisdição, oportunidade em que teria ciência da enfermidade psíquica grave da autora e poderia adotar as medidas adequadas para salvaguardar os seus interesses.

 

3) No caso concreto, a intervenção em 2º grau não supriu o vício

O terceiro argumento levantado pelos recorridos, de fato, é a regra geral no STJ.

Assim, em regra, se houve a intervenção do Ministério Público em 2º grau, essa participação já supre a falta de intimação do Parquet no 1º grau de jurisdição. Nesse sentido:

(...) A jurisprudência desta Corte está consolidada no respeito ao princípio da instrumentalidade das formas, considerando sanada a nulidade decorrente da falta de intervenção, em primeiro grau, do Ministério Público, se posteriormente o Parquet intervém no feito em segundo grau de jurisdição, sem ocorrência de qualquer prejuízo à parte. (...)

STJ. 3ª Turma. AgInt no AREsp 1180218/RN, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 16/11/2020.

 

No caso concreto, contudo, a atuação do Ministério Público em 2º grau não era capaz de suprir o vício decorrente da ausência de atuação desde o 1º grau.

A intervenção desde o início se fazia necessária não apenas para a efetiva participação do Parquet na fase instrutória (por exemplo, requerendo diligências para melhor elucidar a situação econômica dos filhos e a suposta impossibilidade de prestar auxílio à mãe), mas também para, se necessário, propor a ação de interdição apta a, em tese, influenciar decisivamente o desfecho desta ação.

 

Em suma:


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