Dizer o Direito

terça-feira, 15 de março de 2022

O Estado-membro pode se recusar a promover o servidor alegando que já atingiu o limite prudencial previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal?

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João é servidor público estadual (agente de polícia civil). Ele requereu administrativamente a sua progressão funcional (promoção).

O Conselho Superior da Polícia Civil constatou que o servidor preencheu todos os requisitos legais para ser promovido.

A despeito disso, o Secretário de Administração negou a promoção sob o argumento de que o Estado-membro já havia ultrapassado o limite prudencial, que é previsto no art. 22, parágrafo único, da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000).

Segundo argumentou o Secretário, como a progressão funcional do servidor acarreta um aumento de gastos com pessoal, isso estaria vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

 

O argumento acima exposto está correto? A recusa do Estado de promover o servidor foi lícita?

NÃO.

 

Lei de Responsabilidade Fiscal

A Lei Complementar nº 101/2000 estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. Ela é popularmente conhecida como “Lei de Responsabilidade Fiscal”.

Essa Lei estabelece, nos arts. 18 e seguintes, os limites de gastos com pessoal para cada ente da Federação, em termos globais e setoriais, bem como as correspondentes exceções.

Além disso, criou medidas de controle das despesas caso esses gastos se aproximem ou ultrapassem os tetos impostos.

No art. 19 da LRF são previstas as despesas totais com pessoal da União, dos Estados e dos Municípios.

No art. 20, por sua vez, estão elencados os limites globais de gastos com pessoal de cada Poder.

 

Limite prudencial

O limite prudencial é aquele previsto no parágrafo único do art. 22 da LRF e que, se for ultrapassado, impõe uma série de vedações:

Art. 22. A verificação do cumprimento dos limites estabelecidos nos arts. 19 e 20 será realizada ao final de cada quadrimestre.

Parágrafo único. Se a despesa total com pessoal exceder a 95% (noventa e cinco por cento) do limite, são vedados ao Poder ou órgão referido no art. 20 que houver incorrido no excesso:

I - concessão de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a qualquer título, salvo os derivados de sentença judicial ou de determinação legal ou contratual, ressalvada a revisão prevista no inciso X do art. 37 da Constituição;

II - criação de cargo, emprego ou função;

III - alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa;

IV - provimento de cargo público, admissão ou contratação de pessoal a qualquer título, ressalvada a reposição decorrente de aposentadoria ou falecimento de servidores das áreas de educação, saúde e segurança;

V - contratação de hora extra, salvo no caso do disposto no inciso II do § 6º do art. 57 da Constituição e as situações previstas na lei de diretrizes orçamentárias.

 

LRF não proíbe a progressão funcional

Mesmo que os limites de gastos com pessoal sejam ultrapassados, a LRF não proíbe a progressão funcional.

O rol de proibições do art. 22, parágrafo único, da LRF é expresso e taxativo, não havendo previsão legal de vedação à progressão funcional, que é direito subjetivo do servidor público quando os requisitos legais forem atendidos em sua plenitude.

 

Mas o art. 22, parágrafo único, I, da LRF fala em concessão de aumento e a progressão funcional acarreta um aumento na remuneração...

É verdade. No entanto, a progressão não pode ser incluída nessas hipóteses mencionadas no dispositivo.

Conceder vantagem, aumento, reajuste ou adequar a remuneração a qualquer título engloba aumento real dos vencimentos em sentido amplo, de forma irrestrita à categoria de servidores públicos, sem distinção, e deriva de lei específica para tal fim. A vedação presente no art. 22, parágrafo único, inciso I, da LC 101/2002 se dirige a essa hipótese.

A progressão funcional acarreta um incremento no vencimento, mas isso decorre da movimentação do servidor na carreira e não inova o ordenamento jurídico. Esse aumento já havia sido previsto em lei prévia.

Assim, a progressão é direcionada apenas aos grupos de servidores públicos que possuem os requisitos para sua materialização.

 

Progressão pode ser enquadrada na parte final do inciso I

A própria Lei de Responsabilidade Fiscal, ao vedar, no art. 22, parágrafo único, inciso I, a concessão de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a qualquer título, ressalva os direitos derivados de sentença judicial ou de determinação legal ou contratual.

Assim, como a progressão funcional decorre de determinação legal, podemos dizer que se trata de exceção expressamente prevista no art. 22, parágrafo único, inciso I.

 

Promoção não depende de homologação de outro órgão (ex: Secretaria de Administração)

O ato administrativo do órgão superior da categoria que concede a progressão funcional é simples, e por isso não depende de homologação ou da manifestação de vontade de outro órgão. Ademais, o ato produzirá seus efeitos imediatamente, sem necessidade de ratificação ou chancela por parte da Secretaria de Administração. Trata-se, também, de ato vinculado sobre o qual não há nenhuma discricionariedade da Administração Pública para sua concessão quando presentes todos os elementos legais da progressão.

Condicionar a progressão funcional do servidor público a situações alheias aos critérios previstos por lei poderá, por via transversa, transformar seu direito subjetivo em ato discricionário da Administração, ocasionando violação aos princípios caros à Administração Pública, como os da legalidade, da impessoalidade e da moralidade.

 

Limites da LRF não podem ser utilizados como pretexto para o descumprimento de direitos dos servidores

A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que os limites previstos nas normas da LRF, no que tange às despesas com pessoal do ente público, não podem servir de justificativa para o não cumprimento de direitos subjetivos do servidor público, como é o recebimento de vantagens asseguradas por lei.

Desse modo, o Poder Público não pode alegar crise financeira e o descumprimento dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal para deixar de cumprir leis existentes, válidas e eficazes, e suprimir direitos subjetivos de servidores públicos.

 

Em suma:

É ilegal o ato de não concessão de progressão funcional de servidor público, quando atendidos todos os requisitos legais, a despeito de superados os limites orçamentários previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal, referentes a gastos com pessoal de ente público, tendo em vista que a progressão é direito subjetivo do servidor público, decorrente de determinação legal, estando compreendida na exceção prevista no inciso I do parágrafo único do art. 22 da Lei Complementar n. 101/2000.

STJ. 1ª Seção. REsp 1.878.849-TO, Rel. Min. Manoel Erhardt (Desembargador Convocado do TRF da 5ª região), julgado em 24/02/2022 (Recurso Repetitivo – Tema 1075) (Info 726).

 

 


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