Dizer o Direito

segunda-feira, 21 de março de 2022

O descumprimento das formalidades exigidas para o reconhecimento de pessoas (art. 226 do CPP) gera a nulidade do ato; o réu condenado será absolvido, salvo se houver provas da autoria que sejam independentes

 

O que é o reconhecimento de pessoas e coisas?

É um meio de prova, previsto nos arts. 226 a 288 do CPP.

Um indivíduo conhece ou viu determinada pessoa ou coisa que supostamente está relacionado com um crime que está sendo apurado.

Esse indivíduo é chamado pelos órgãos de persecução penal para dizer se a pessoa ou coisa que lhe será mostrada realmente é aquela que ele conhece ou que viu.

Ex: uma testemunha viu a pessoa que matou a vítima e depois fugiu. Tempos depois, a polícia prende um homem suspeito de ser o autor do crime. Esse suspeito será mostrado à testemunha para que ela diga se ele é, ou não, o indivíduo que viu no momento do crime.

 

Formalidades

O art. 226 do CPP descreve um procedimento para a realização do reconhecimento de pessoas e coisas:

1ª etapa: o indivíduo que tiver de fazer o reconhecimento será convidado a descrever a pessoa que deva ser reconhecida. Ex: a pessoa tem aproximadamente 1,80m, pele branca, cabelo preto, uma cicatriz no rosto etc.

2ª etapa: a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança. Em seguida, pede-se para o indivíduo que fará o reconhecimento apontar qual é daquelas pessoas que estão lado a lado.

3ª etapa: algumas vezes, o fato de o indivíduo estar face a face com a pessoa a ser reconhecida pode gerar intimidação ou outra influência negativa que lhe impeça de dizer a verdade. Por isso, a lei permite que a pessoa a ser reconhecida não veja o indivíduo que fará o reconhecimento. Isso é feito, por exemplo, por meio de “vidros espelhados” nos quais somente um dos lados enxerga o outro. Obs: vale ressaltar essa cautela só pode ser feita na fase de investigação pré-processual. Na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento a pessoa a ser reconhecida terá direito de também ver o indivíduo que está lhe reconhecendo, sendo esse ato feito ainda na presença do juiz, do Ministério Público e da defesa.

4ª etapa: será lavrado um auto pormenorizado narrando o que ocorreu no ato de reconhecimento. Esse auto deverá ser subscrito pela autoridade, pelo indivíduo que foi chamado para fazer o reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

 

Obs: no caso de reconhecimento de objeto também deverão ser observadas, no que couber, as cautelas previstas para o reconhecimento pessoal (art. 227).

Obs2: se várias forem as pessoas chamadas a efetuar o reconhecimento de pessoa ou de objeto, cada uma fará a prova em separado, evitando-se qualquer comunicação entre elas (art. 228).

 

Como vimos acima, o art. 226 do CPP estabelece formalidades para o reconhecimento de pessoas (reconhecimento pessoal). O descumprimento dessas formalidades enseja a nulidade do reconhecimento?

SIM.

1) O reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime;

2) À vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo;

3) Pode o magistrado realizar, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório, bem como pode ele se convencer da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento;

4) O reconhecimento do suspeito por simples exibição de fotografia(s) ao reconhecedor, a par de dever seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo.

STJ. 6ª Turma. HC 598.886-SC, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 27/10/2020 (Info 684).

 

O reconhecimento(fotográfico ou presencial) efetuado pela vítima, em sede inquisitorial, não constitui evidência segura da autoria do delito, dada a falibilidade da memória humana, que se sujeita aos efeitos tanto do esquecimento, quanto de emoções e de sugestões vindas de outras pessoas que podem gerar “falsas memórias”, além da influência decorrente de fatores, como, por exemplo, o tempo em que a vítima esteve exposta ao delito e ao agressor; o trauma gerado pela gravidade do fato; o tempo decorrido entre o contato com o autor do delito e a realização do reconhecimento; as condições ambientais (tais como visibilidade do local no momento dos fatos); estereótipos culturais (como cor, classe social, sexo, etnia etc.).

Diante da falibilidade da memória seja da vítima seja da testemunha de um delito, tanto o reconhecimento fotográfico quanto o reconhecimento presencial de pessoas efetuado em sede inquisitorial devem seguir os procedimentos descritos no art. 226 do CPP, de maneira a assegurar a melhor acuidade possível na identificação realizada.

Tendo em conta a ressalva, contida no inciso II do art. 226 do CPP, a colocação de pessoas semelhantes ao lado do suspeito será feita sempre que possível, devendo a impossibilidade ser devidamente justificada, sob pena de invalidade do ato.

O reconhecimento fotográfico serve como prova apenas inicial e deve ser ratificado por reconhecimento presencial, assim que possível. E, no caso de uma ou ambas as formas de reconhecimento terem sido efetuadas, em sede inquisitorial, sem a observância (parcial ou total) dos preceitos do art. 226 do CPP e sem justificativa idônea para o descumprimento do rito processual, ainda que confirmado em juízo, o reconhecimento falho se revelará incapaz de permitir a condenação, como regra objetiva e de critério de prova, sem corroboração do restante do conjunto probatório, produzido na fase judicial.

STJ. 5ª Turma. HC 652284/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 27/04/2021.

 

Vimos acima julgados do STJ sobre o tema. O STF comunga do mesmo entendimento?

SIM.

O descumprimento das regras de procedimento do art. 226 do CPP acarreta a nulidade do ato. Logo, esse reconhecimento não poderá ser utilizado para fins decisórios.

 

Procedimento representa uma garantia mínima da pessoa investigada

O reconhecimento de pessoas, presencial ou por fotografia, deve observar o procedimento previsto no art. 226 do CPP, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime e para uma verificação dos fatos mais justa e precisa.

A inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita, de modo que tal elemento não poderá fundamentar eventual condenação ou decretação de prisão cautelar, mesmo se refeito e confirmado o reconhecimento em juízo.

 

Se a nulidade do reconhecimento só foi decretada depois de o réu ter sido condenado, isso significa que ele deverá ser absolvido? Ex: o réu foi condenado pelo juiz; em apelação, o TJ decide que o reconhecimento foi nulo porque descumpriu as formalidades; esse réu será absolvido?

Depende:

• Se a condenação somente se fundamentou no reconhecimento: sim. O réu deverá ser necessariamente absolvido.

• Se a condenação se baseou também em outros elementos de prova independentes e não contaminados: não. Neste caso, a condenação poderá ser mantida.

 

Desse modo, se declarada a irregularidade do ato, eventual condenação já proferida poderá ser mantida, se fundamentada em provas independentes e não contaminadas.

 

Em suma:

A desconformidade ao regime procedimental determinado no art. 226 do CPP deve acarretar a nulidade do ato e sua desconsideração para fins decisórios, justificando-se eventual condenação somente se houver elementos independentes para superar a presunção de inocência.

STF. 2ª Turma. RHC 206846/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 22/2/2022 (Info 1045).



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