Imagine a seguinte situação
hipotética:
João e Regina, casados, eram pais
de Ricardo, Orlando e Leônidas.
Leônidas, na época com 17 anos, envolvido
com drogas, ceifou a vida de seus pais.
João e Regina deixaram um vasto
patrimônio a título de herança.
Ricardo e Orlando ajuizaram ação de
indignidade contra Leônidas.
Na ação, foi pedido que Leônidas perdesse o direito de
receber a herança em razão de ter sido o autor de homicídio doloso contra seus
pais. O fundamento legal invocado foi o art. 1.814 do Código Civil:
Art. 1.814. São excluídos da sucessão
os herdeiros ou legatários:
I - que houverem sido autores,
co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a
pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou
descendente;
O que é a indignidade, no Direito Civil?
Indignidade são situações previstas no Código Civil nas
quais o indivíduo que normalmente iria ter direito à herança, ficará impedido
de recebê-la em virtude de ter praticado uma conduta nociva em relação ao autor
da herança ou seus familiares. Trata-se, portanto, de uma causa de exclusão da
sucessão.
A indignidade é considerada uma punição, uma “pena civil”
aplicada ao herdeiro ou legatário acusado de atos reprováveis contra o falecido.
Hipóteses de indignidade
As situações que configuram
indignidade estão previstas no art. 1.814 do Código Civil.
O rol do art. 1.814 do CC é taxativo ou exemplificativo?
Taxativo (numerus clausus).
Na esteira da majoritária doutrina, o rol do art.
1.814 do CC/2002, que prevê as hipóteses autorizadoras de exclusão de herdeiros
ou legatários da sucessão, é taxativo, razão pela qual se conclui não ser
admissível a criação de hipóteses não previstas no dispositivo legal por
intermédio da analogia ou da interpretação extensiva.
STJ. 3ª
Turma. REsp 1.943.848-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/02/2022 (Info
725).
Como é feita a exclusão do
indivíduo que praticou ato de indignidade
Para excluir um herdeiro ou
legatário que praticou ato de indignidade, é necessária a propositura de ação
judicial de indignidade.
Assim, a exclusão do herdeiro ou
legatário deverá ser declarada por sentença (art. 1.815), que irá reconhecer
que o indivíduo praticou o ato de indignidade.
Qual é o prazo para a ação
de indignidade?
Prazo decadencial de 4 anos.
O direito de demandar a exclusão
do herdeiro ou legatário extingue-se em 4 anos, contados da abertura da
sucessão (morte).
Vale ressaltar que se houver
herdeiros menores, o prazo só se inicia depois que atingirem a maioridade.
Quem tem legitimidade para
ajuizar a ação de indignidade?
A ação de declaração de
indignidade pode ser proposta por qualquer interessado na sucessão.
E
o Ministério Público, possui legitimidade para ajuizar ação de indignidade?
Em regra, não.
Exceção: o MP
possui legitimidade no caso do inciso I do art. 1.814 do CC (homicídio doloso).
É o que prevê o § 2º do art. 1.815 do CC, incluído pela Lei nº 13.532/2017.
Assim, o Ministério Público pode
ajuizar ação pedindo a declaração de indignidade caso o herdeiro ou legatário
tenha sido:
- autor, coautor ou partícipe de
homicídio doloso (consumado ou tentado)
- praticado contra o autor da
herança, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente.
Caso Suzane Richtofen
A alteração legislativa da Lei
13.532/2017 foi inspirada pelo famoso caso Suzane Richtofen, que, em 2002,
matou os pais, com a ajuda do seu namorado.
A situação de Suzane poderia ser
enquadrada no inciso I do art. 1.814 do CC. Assim, ela poderia ser excluída da
sucessão e não receber a herança dos seus pais. Ocorre que, como o fato foi antes
da Lei 13.532/2017, para isso acontecer, o outro herdeiro (seu irmão, Andréas
Von Richtofen) teve que propor ação de indignidade contra Suzane.
Caso Andréas não tivesse proposto
a ação, Suzane, mesmo tendo matado os pais, em tese, receberia a herança. Isso
parece extremamente injusto e contrário à ética geral.
Pensando nisso, a Lei nº
13.532/2017 acrescentou expressamente a possibilidade de o MP propor a ação de
indignidade neste caso.
Assim, se o caso Suzane Richtofen
tivesse acontecido após a Lei nº 13.532/2017, o Promotor de Justiça poderia
ajuizar a ação de indignidade mesmo sem a iniciativa ou concordância de
Andréas, outro herdeiro.
No caso de Suzane, como já dito, Andréas ajuizou a ação de
indignidade, tendo ela sido julgada procedente já com trânsito em julgado.
Confira trecho do dispositivo da sentença:
“ANDREAS
ALBERT VON RICHTHOFEN moveu AÇÃO DE EXCLUSÃO DE HERANÇA em face de sua irmã
SUZANE LOUISE VON RICHTHOFEN, por manifesta indignidade desta, pois teria ela,
aos 31 de outubro de 2002, em companhia do seu namorado, Daniel Cravinhos de
Paula e Silva, e do irmão dele, Cristian Cravinhos de Paula e Silva,
barbaramente executado seus pais (...)
Conheço desde
logo do pedido, pois se trata de matéria exclusiva de direito, estando a lide
definida com a condenação penal, transitada em julgado, da herdeira Suzane
Louise Von Richthofen pela morte de seus pais, pela qual foi condenada a 39
anos de reclusão e seis meses de detenção.
A indignidade
é uma sanção civil que causa a perda do direito sucessório, privando da fruição
dos bens o herdeiro que se tornou indigno por se conduzir de forma injusta,
como fez Suzane, contra quem lhe iria transmitir a herança (...)
Ante o
exposto, julgo PROCEDENTE a presente Ação de Exclusão de Herança que Andreas
Albert Von Richthofen moveu em face de Suzane Louise Von Richthofen e, em
consequência, declaro a indignidade da requerida em relação à herança deixada
por seus pais, Manfred Albert Von Richthofen e Marísia Von Richthofen, em razão
do trânsito em julgado da ação penal que a condenou criminalmente pela morte de
ambos os seus genitores, nos exatos termos do disposto no artigo 1.814, I, do
Código Civil.
Condeno também
a requerida a restituir os frutos e rendimentos dos bens da herança que
porventura anteriormente percebeu, desde a abertura da sucessão, nos termos do
§ único, artigo 1.817, também do Código Civil. (...)”
Para que se ajuíze a ação de
indignidade com base no inciso I do art. 1.814 é necessário que exista sentença
penal condenatória?
NÃO. Para que se ajuíze a ação de
indignidade, não se exige prévia condenação no juízo criminal. Mesmo que o
processo criminal ainda esteja tramitando, o interessado pode ingressar com a
ação de indignidade, até mesmo porque esta demanda tem prazo decadencial de 4
anos.
Vale ressaltar, no entanto, que o
autor da ação de indignidade deverá provar, no processo cível, a ocorrência da
situação prevista em algum dos incisos do art. 1.814 do CC. Assim, o autor da
ação terá que provar, com testemunhas, perícia etc., que o indigno praticou o
homicídio doloso.
Voltando à situação
hipotética:
Leônidas contestou alegando que
ele ceifou a vida dos pais quando tinha 17 anos. Logo, era adolescente e,
portanto, penalmente inimputável (art. 27 do CP). Diante disso, afirmou que o
pedido dos autores não merece acolhimento tendo em vista que o inciso I do art.
1.814 do CC exige que a pessoa tenha praticado o crime de homicídio e ele (réu)
cometeu ato infracional, que é tecnicamente diferente de crime.
A tese de Leônidas foi
acolhida pelo STJ?
NÃO.
Leônidas praticou ato infracional
análogo ao homicídio.
O ato infracional análogo ao
homicídio, doloso e consumado, praticado contra os pais, pode ser sim incluído
na regra do art. 1.814, I, do CC.
Como vimos acima, o rol do art.
1.814 do CC/2002 é taxativo, não admitindo analogia ou interpretação extensiva.
Contudo, o fato de o rol ser
taxativo não significa que ele só possa ser interpretado literalmente.
Não se pode confundir
taxatividade com interpretação literal.
Mesmo que um rol seja taxativo,
ele pode ser objeto de outras formas de interpretação, como a interpretação lógica,
a histórica, a sistemática, a teleológica, a sociológica etc.
Isso porque não se pode confundir
o texto da lei com a norma jurídica que ela revela a partir da interpretação.
Diante desse cenário, a
interpretação literal (método hermenêutico) é um dos meios, mas não a única
forma de obtenção da norma jurídica.
Inciso I do art. 1.814 não
pode ser interpretado literalmente
Ocorre que
não se pode fazer uma mera interpretação literal.
A cláusula de indignidade baseada
no atentado do herdeiro à vida dos pais se funda em razões éticas e morais.
A finalidade da regra que exclui
da sucessão o herdeiro que atenta contra a vida dos pais é, a um só tempo,
prevenir a ocorrência do ato ilícito, tutelando bem jurídico mais valioso do
ordenamento jurídico, e reprimir o ato ilícito porventura praticado,
estabelecendo sanção civil consubstanciado na perda do quinhão por quem
praticá-lo.
Em suma:
O herdeiro que seja autor,
coautor ou partícipe de ato infracional análogo ao homicídio doloso praticado
contra os ascendentes fica excluído da sucessão.
STJ. 3ª
Turma. REsp 1.943.848-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/02/2022 (Info
725).