Dizer o Direito

quinta-feira, 10 de março de 2022

Decisão do STJ sobre o pedido de trancamento da ação penal no “Caso Miguel Otávio”

 

A situação concreta, com adaptações e notícias divulgadas na imprensa, foi a seguinte:

Mirtes trabalhava como empregada doméstica no apartamento de Sarí, que ficava em um edifício no Recife (PE).

Determinado dia, Mirtes levou seu filho Miguel (de 5 anos) para o trabalho. O menino ficava brincando no apartamento enquanto a mãe fazia seu serviço.

Mirtes teve que levar o cachorro da família para passear na área comum do prédio.

Miguel permaneceu no apartamento aos cuidados da empregadora Sarí.

Ocorre que a criança começou a sentir falta de mãe e resolveu ir à sua procura.

“Imagens do circuito interno de segurança mostram que Miguel entrou no elevador pelo menos cinco vezes. Na última, segundo a polícia, Sarí acionou a tecla do elevador que dá acesso à cobertura. O elevador parou no nono andar. A criança passou por um corredor, escalou uma parede, subiu em um condensador de ar e caiu de uma altura de 35 metros.” (https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/02/15/caso-miguel-ministro-do-stj-nao-ve-abandono-de-incapaz-e-diz-que-morte-de-menino-nao-era-previsivel.ghtml)

O Ministério Público ajuizou ação penal em face de Sarí, acusando-a da prática do crime de abandono de incapaz com resultado morte, delito previsto no art. 133, § 2º, do Código Penal:

Art. 133. Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono:

Pena - detenção, de seis meses a três anos.

(...)

§ 2º - Se resulta a morte:

Pena - reclusão, de quatro a doze anos.

 

O delito do art. 133 do CP é crime próprio, ou seja, somente pode ser praticado por uma pessoa que tenha o dever de cuidado, guarda violência ou autoridade sobre a vítima.

Na denúncia, o MP afirmou que Sarí assumiu um dever de cuidar da criança enquanto a mãe estava fora, enquadrando-se na posição de garante, nos termos do art. 13, § 2º, “b”, do CP:

Relação de causalidade

Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

(...)

Relevância da omissão

§ 2º A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;

b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;

c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

 

O MP afirmou, ainda, que a ré seria garante porque a legislação (CF e ECA) determina a proteção das crianças e adolescentes. Logo, ela tinha o dever legal de proteger a criança.

O juiz recebeu a denúncia.

Contra essa decisão, a defesa impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça pedindo o trancamento da ação penal.

O TJ/PE indeferiu a ordem, razão pela qual a defesa interpôs recurso ordinário ao STJ.

A defesa pediu o trancamento da ação penal.

 

O STJ acolheu o pedido da defesa para trancamento da ação penal?

NÃO.

A 5ª Turma do STJ, por maioria de votos, acompanhou a divergência inaugurada pelo Min. Joel Ilan Paciornik e negou o pedido da defesa por entender que o trancamento da ação penal por meio de habeas corpus é medida excepcional, admitida apenas quando manifestamente clara a inépcia da inicial, o que não é o caso.

Inicialmente, o STJ afirmou que o dever geral de proteção previsto no art. 227 da Constituição Federal e reforçado no art. 70 da Lei nº 8.069/90 (ECA) se traduz numa norma de conteúdo programático e não se amolda à alínea “a” do art. 13, § 2º, do Código Penal. Esses dispositivos representam mais um objetivo mirado pelo constituinte, que impõem principalmente ao Poder Público uma atuação orientada com a finalidade de proteger os interesses das crianças e adolescentes, em virtude da sua peculiar condição de pessoas em desenvolvimento. Assim, esse dever geral não é compatível com a especial relação disposta no delito de abandono de incapaz, que exige um dever de assistência decorrente de cuidado, guarda, vigilância ou autoridade entre os sujeitos ativo e passivo.

Apesar disso, mesmo não havendo uma obrigação legal da ré de cuidar e proteger a criança, pode-se dizer que, em tese, ela, no caso concreto, assumiu a esse compromisso, nos termos do art. 13, § 2º, “b”, do CP.

 

Em uma análise preliminar, a ré assumiu a responsabilidade de que não iria acontecer nada de errado com a criança enquanto a mãe estava fora. Essa assunção do encargo foi voluntária e consciente do dever assumido.

Da assunção decorreu uma expectativa, uma confiança de que haveria por parte da garantidora a efetiva assistência ao incapaz.

É verdade que a assunção da posição de garantidor não é irrestrita. Assim, a garantidora não irá responder por qualquer resultado relacionado com a vítima. Existem limites definidos pelo contexto do caso concreto.

Nesse contexto, a defesa alegava que a ré não poderia responder pelo resultado porque não havia como ela impedir que o menino entrasse no elevador, além de não ser previsível que ele iria cair do prédio.

No entanto, em uma análise preliminar, o STJ considerou que, tendo em vista a tenra idade da vítima (5 anos), o simples fato de o garoto ter conseguido entrar sozinho no elevador já configura, em tese, uma omissão penalmente relevante cometida pela ré que, presumivelmente, não agiu com a necessária cautela e com a abnegação que lhe era devida.

É certo que a defesa ainda poderá alegar e comprovar que a “fuga” da criança e a sua entrada no elevador eram inevitáveis. No entanto, isso deverá ainda ser objeto de cautelosa, sensível e detalhada instrução probatória, pois não restará configurado o delito omissivo quando demonstrado que a pessoa à qual se atribui a obrigação de evitar o resultado não tinha condições de agir para impedi-lo.

O certo é que, a partir de uma análise perfunctória (superficial, não aprofundada) própria da via estreita do habeas corpus, não se vislumbra inequívoca atipicidade da conduta imputada à ré.

 

Isso significa que podemos atribuir, com certeza, ao caso concreto a tipificação do crime de abandono de incapaz?

NÃO. Isso porque não houve até o momento a fase de instrução probatória capaz de elucidar as nuances fáticas do caso concreto. Assim finaliza o próprio STJ:

“No entanto, as nuances que definirão esse lapso temporal atípico deverão ser objeto de cautelosa, sensível e detalhada instrução probatória, pois não restará configurado o delito omissivo quando demonstrado que a pessoa à qual se atribui a obrigação de evitar o resultado não tinha condições de agir para impedi-lo. Portanto, da análise perfunctória consentânea à via estreita do habeas corpus, não se vislumbra inequívoca atipicidade da conduta irrogada à paciente. Ademais, com esteio nos fatos descritos na denúncia, teoricamente, é possível identificar na exordial acusatória as situações ensejadoras do perigo concreto: 1) a tenra idade da vítima (absolutamente incapaz de defender-se de quaisquer situações de perigo que se apresentassem à sua frente); 2) a falta de familiaridade com o local; 3) a incapacidade de determinar o correto curso do elevador, tendo em vista que acionou diversos botões aleatoriamente, exceto o que o levaria ao encontro de sua genitora, no pavimento térreo. Com efeito, a complexidade dos fatos e da adequação típica das condutas a eles, na conformidade da plausível articulação de juízos normativos preliminares da denúncia implicam a conveniência da instrução probatória”.

 

Em suma:

Não há falar em trancamento da ação penal quando a complexidade dos fatos e da adequação típica das condutas a eles, na conformidade da plausível articulação de juízos normativos preliminares da denúncia, implicam a conveniência da instrução probatória.

STJ. 5ª Turma. RHC 150.707-PE, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Rel. Acd. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 15/02/2022 (Info 725).

 


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