Dizer o Direito

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Provedor de aplicação deve remover conteúdo ofensivo a menor na internet, mesmo sem ordem judicial

 

O caso concreto, com adaptações, inclusive quanto aos nomes, foi o seguinte:

Um indivíduo fez uma publicação no Facebook com a foto de João e seu filho Gustavo (de 5 anos), acompanhado do seguinte texto:

“Atenção. Comunicado urgente. Cuidado com esse homem. Ele é pedófilo. Estuprou a própria sobrinha. Se alguém o ver (sic) denuncie. Ele é perigoso. Seu nome é... Não deixe seus filhos perto dele”.

 

Ao tomar conhecimento dessa postagem, João “denunciou” a postagem na ferramenta que a própria rede social disponibiliza para isso. O Facebook respondeu o seguinte:

“Agradecemos o tempo dedicado em denunciar algo que você acredita violar nossos padrões da comunidade. Denúncias como a sua são uma parte importante do processo para tornar o Facebook um local seguro e acolhedor. Analisamos a foto denunciada por você por assédio e constatamos que ela não viola nossos padrões de comunidade”.

 

Vale ressaltar que João nunca foi sequer investigado por qualquer crime contra a dignidade sexual e nem mesmo possui sobrinha.

Diante disso, ele procurou a polícia, fez um boletim de ocorrência e ajuizou ação contra o Facebook.

O juiz condenou a empresa a:

a) retirar a publicação;

b) apresentar os endereços de IP's e URL's relativos à página delituosa e sua localização;

c) pagar R$ 30 mil a João e R$ 30 mil a seu filho Gustavo.

 

O TJ/MG manteve a sentença.

O Facebook interpôs recurso especial afirmando que, segundo o art. 19 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), ele somente poderia ser responsabilizado se tivesse recebido uma ordem judicial para retirar a publicação e tivesse descumprido. Como recebeu apenas uma notificação extrajudicial, ele não seria obrigado a retirar o conteúdo. Veja a redação do art. 19 invocado pelo Facebook:

Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.

 

A condenação do Facebook foi mantida pelo STJ?

SIM.

Inicialmente, é importante esclarecer que o art. 19 do Marco Civil da Internet realmente diz isso que o Facebook alegou.

Se o provedor de aplicações (exs: Facebook, Instagram, Youtube) disponibilizar conteúdo gerado por terceiros e a postagem feita causar prejuízos a alguém (ex: ofensa à honra), o que deve ser feito para a remoção do material? Exige-se autorização judicial para a remoção do conteúdo?

Em regra, sim.

O art. 19 do MCI consagra a reserva de jurisdição e exige ordem judicial para a remoção do conteúdo.

Assim, a pessoa lesada precisa ingressar com ação para conseguir uma ordem judicial específica determinando ao provedor que remova o conteúdo.

Exige-se ordem judicial porque a regra no ordenamento jurídico à liberdade de expressão e a proibição da censura.

Desse modo, em regra, o provedor de aplicações somente será responsabilizado se, mesmo recebendo a ordem judicial, não tomar as providências devidas e possíveis, dentro do prazo assinalado, para tornar indisponível o conteúdo.

No caso concreto, contudo, a situação é diferente porque se tratava de post envolvendo publicação ofensiva a imagem de uma criança.

 

Proteção conferida pela CF/88 e pelo ECA

O Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 18) e a Constituição Federal (art. 227) impõem, como dever de toda a sociedade, zelar pela dignidade da criança e do adolescente, colocando-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, com a finalidade, inclusive, de evitar qualquer tipo de tratamento vexatório ou constrangedor.

As leis protetivas do direito da infância e da adolescência possuem natureza especialíssima, pertencendo à categoria de diploma legal que se propaga por todas as demais normas, com a função de proteger sujeitos específicos, ainda que também estejam sob a tutela de outras leis especiais.

Para atender ao princípio da proteção integral consagrado no direito infantojuvenil, é dever do provedor de aplicação na rede mundial de computadores (Internet) proceder à retirada de conteúdo envolvendo menor de idade - relacionado à acusação de que seu genitor havia praticado crimes de natureza sexual - logo após ser formalmente comunicado da publicação ofensiva, independentemente de ordem judicial.

O provedor de aplicação que, após notificado, nega-se a excluir publicação ofensiva envolvendo menor de idade, deve ser responsabilizado civilmente, cabendo impor-lhe o pagamento de indenização pelos danos morais causados à vítima da ofensa.

 

Relevante omissão de sua conduta

A responsabilidade civil, em tal circunstância, deve ser analisada sob o enfoque da relevante omissão de sua conduta, pois o provedor deixou de adotar providências que estavam sob seu alcance e que minimizariam os efeitos do ato danoso praticado por terceiro.

Assim, apesar do art. 19 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) dispor que o provedor somente será responsável civilmente, em razão de publicação gerada por terceiro, se descumprir ordem judicial determinando as providências necessárias para cessar a exibição do conteúdo ofensivo, afigura-se insuficiente a sua aplicação isolada.

O art. 19 do MCI deve ser interpretado à luz do art. 5º, X, da Constituição Federal, de forma que ele não impede a responsabilização do provedor de serviços por outras formas de atos ilícitos, que não se limitam ao descumprimento da ordem judicial a que se refere o dispositivo da lei especial.

 

Constitucionalidade do art. 19

Registra-se, por fim, que a constitucionalidade do art. 19 da Lei nº 12.965/2014 será ainda decidida pelo Supremo Tribunal Federal (Tema nº 987/STF), que reconheceu repercussão geral da questão constitucional suscitada, sem determinar a suspensão dos processos em curso.

 

Em suma:


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