Imagine a seguinte situação
hipotética:
Evandro (24 anos) e Andrea (21
anos) são irmãos. Eles moravam juntos em uma casa deixada para eles pelos pais.
Assim, os dois são coproprietários do imóvel.
Determinado dia, houve uma
discussão entre eles e Evandro ameaçou Andrea.
Foi instaurado inquérito policial para apurar o fato e a
Juíza, entendendo que houve violência doméstica, determinou, dentre outras
medidas protetivas, o afastamento provisório de Evandro do lar e a proibição de
que mantenha contato com Andrea, nos termos do art. 22, II e III, “a”, da Lei
nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha):
Art. 22. Constatada a prática de
violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz
poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as
seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
(...)
II - afastamento do lar, domicílio ou
local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas
condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus
familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes
e o agressor;
(...)
Evandro foi denunciado pelo
Ministério Público e encontra-se respondendo processo criminal pela prática do
crime de ameaça (art. 147 do CP).
Ação proposta por Evandro
Evandro ajuizou, então, ação de
extinção de condomínio cumulada com arbitramento de aluguéis.
O autor argumentou que é
proprietário de 50% do imóvel e que, diante da impossibilidade de se manter o
condomínio (copropriedade sobre o bem), a melhor alternativa é a venda da casa
e a divisão do preço entre os proprietários.
Diante disso, pediu:
1) a extinção do condomínio, com
a consequente venda judicial do imóvel;
2) a condenação de Andrea ao
pagamento de aluguéis, no valor de R$ 2 mil, conforme os valores médios das
avaliações apresentadas.
Andrea afirmou que concorda com a
venda, mas não aceita pagar aluguel enquanto se aguarda o alienação do bem.
Isso porque o afastamento de Evandro do lar se deu em virtude de decisão
judicial em razão de medida protetiva de urgência.
O TJ negou o pedido de pagamento
de aluguéis, fazendo com que Evandro interpusesse recurso especial.
O STJ concordou com o
pedido de Evandro? É devido o pagamento de aluguéis neste caso?
NÃO.
A jurisprudência do STJ, alicerçada no art. 1.319 do Código
Civil, assenta que a utilização ou a fruição da coisa comum indivisa com
exclusividade por um dos coproprietários, impedindo o exercício de quaisquer
dos atributos da propriedade pelos demais consortes, enseja o pagamento de
indenização àqueles que foram privados do regular domínio sobre o bem, tal como
o percebimento de aluguéis:
Art. 1.319. Cada condômino responde
aos outros pelos frutos que percebeu da coisa e pelo dano que lhe causou.
Essa é a regra geral. O caso
examinado, contudo, é diferente.
Impor à vítima de violência
doméstica e familiar obrigação pecuniária consistente em locativo pelo uso
exclusivo e integral do bem comum constituiria proteção insuficiente aos
direitos constitucionais da dignidade humana e da igualdade, além de ir contra
um dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro de promoção do bem de todos
sem preconceito de sexo, sobretudo porque serviria de desestímulo a que a
mulher buscasse o amparo do Estado para rechaçar a violência contra ela
praticada, como assegura a Constituição Federal em seu art. 226, § 8º, a
revelar a desproporcionalidade da pretensão indenizatória em tais casos.
A imposição judicial de uma
medida protetiva de urgência - que procure cessar a prática de violência
doméstica e familiar contra a mulher e implique o afastamento do agressor do
seu lar - constitui motivo legítimo a que se limite o domínio deste sobre o
imóvel utilizado como moradia conjuntamente com a vítima, não se evidenciando,
assim, eventual enriquecimento sem causa, que legitime o arbitramento de
aluguel como forma de indenização pela privação do direito de propriedade do
agressor.
Portanto, afigura-se descabido o
arbitramento de aluguel, com base no disposto no art. 1.319 do CC/2002, em
desfavor da coproprietária vítima de violência doméstica, que, em razão de
medida protetiva de urgência decretada judicialmente, detém o uso e gozo
exclusivo do imóvel de cotitularidade do agressor, seja pela
desproporcionalidade constatada em cotejo com o art. 226, § 8º, da CF/88, seja
pela ausência de enriquecimento sem causa (art. 884 do CC/2002).
Em suma:
Incabível o arbitramento de aluguel em desfavor da
coproprietária vítima de violência doméstica, que, em razão de medida protetiva
de urgência decretada judicialmente, detém o uso e gozo exclusivo do imóvel de
cotitularidade do agressor.
STJ. 3ª
Turma. REsp 1.966.556-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em
08/02/2022 (Info 724).
Isso significa que o art.
1.319 do CC foi declarado inconstitucional? A decisão foi da 3ª Turma do STJ.
Para declarar inconstitucional o dispositivo não seria necessário obedecer a
cláusula de reserva de plenário e que o julgamento fosse pela Corte Especial do
STJ?
O STJ fez apenas uma
interpretação conforme do art. 1.319 do Código Civil.
A interpretação conforme a Constituição
de lei ou ato normativo, atribuindo ou excluindo determinado sentido entre as
interpretações possíveis em alguns casos, não viola a cláusula de reserva de
plenário, consoante já assentado pelo Supremo Tribunal Federal no RE 572.497
AgR/RS, Rel. Min. Eros Grau, DJ 11/11/2008, e no RE 460.971, Rel. Min.
Sepúlveda Pertence, DJ 30/3/2007 (ambos reproduzindo o entendimento delineado
no RE 184.093/SP, Rel. Moreira Alves, publicado em 29/4/1997).