Dizer o Direito

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Robinho poderá cumprir no Brasil a pena imposta pela Justiça italiana?

 

Resumo do caso

Segundo a Justiça Italiana, em 22 de janeiro de 2013, o jogador brasileiro Robinho e mais quatro amigos estupraram uma jovem no camarim de uma boate na Itália, época em que o atleta atuava pelo Milan.

Robinho respondeu processo penal e foi condenado pela Justiça da Itália a uma pena de 9 anos de prisão. A decisão transitou em julgado e, portanto, não cabe mais qualquer recurso.

Ocorre que Robinho encontra-se morando no Brasil.

 

Primeira pergunta: Robinho, que é brasileiro nato, pode ser extraditado para cumprir a pena na Itália?

NÃO. Brasileiro nato não pode nunca ser extraditado pelo Brasil. Essa regra, que está prevista no art. 5º, LI, da CF/88, não comporta exceções:

Art. 5º (...)

LI - nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei;

 

Se Robinho viajar para a Itália poderá ser preso?

SIM.

 

Se Robinho viajar para outro país (sem ser a Itália), poderá ser preso e extraditado para a Itália?

SIM, desde que cumpridos dois requisitos:

a) a Justiça Italiana inclua o nome de Robinho na difusão vermelha;

b) o país para onde Robinho for tenha tratado de extradição com a Itália.

 

“Red notice ou difusão vermelha é o instrumento utilizado pela Interpol (Organização Internacional de Polícia Internacional) com o objetivo de auxiliar as autoridades no cumprimento de mandados de prisão de indivíduos que se encontram no exterior ou que, estando no país, são procurados no estrangeiro. Configuram autênticos mandados de capturas internacionais divulgados nos Estados-membros da Organização.” (MOREIRA ALVES, Leonardo Barreto. Manual de Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 754).

 

É possível homologar uma sentença penal estrangeira para que a pena seja cumprida no Brasil? Existe essa possibilidade?

Se você ler apenas o Código Penal, responderia que não. Isso porque o art. 9º do CP afirma que a sentença penal estrangeira pode ser homologada para que, no Brasil, produza dois efeitos:

a) obrigar o condenado à reparação do dano, a restituições e a outros efeitos civis;

b) sujeitá-lo a medida de segurança.

 

Veja a redação do dispositivo:

Eficácia de sentença estrangeira

Art. 9º A sentença estrangeira, quando a aplicação da lei brasileira produz na espécie as mesmas consequências, pode ser homologada no Brasil para:

I - obrigar o condenado à reparação do dano, a restituições e a outros efeitos civis;

II - sujeitá-lo a medida de segurança.

 

Ocorre que, em 2017, com a edição da Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017) foi inserida a possibilidade de se homologar sentença penal estrangeira para uma terceira finalidade: que o condenado cumpra pena no Brasil. Isso se dá mediante um instituto chamado transferência de execução da penal (TEP), previsto nos arts. 100 a 102 da Lei de Migração (Lei 13.445/2017). Assim, em vez de cumprir a pena no estrangeiro, a sentença é homologada no Brasil para que o condenado aqui cumpra a sanção imposta.

A Lei de Migração criou o instituto da transferência de execução da pena a fim de que a sentença penal condenatória a pena privativa de liberdade seja cumprida contra as pessoas que estão fora das fronteiras do Estado que as condenou.

 

Ah, então, é possível que se homologue a sentença penal da Itália e que Robinho cumpra aqui a pena imposta pela Justiça italiana? É possível aplicar o art. 100 da Lei de Migração para o caso de Robinho?

Aqui temos uma interessante divergência entre dois profundos estudiosos sobre o tema:

Robinho poderá cumprir no Brasil a pena imposta pela Justiça italiana?

É possível transferir a execução penal para ser cumprida no Brasil?

NÃO

Posição de Valério Mazzuoli

SIM

Entendimento de Vladimir Aras

O art. 100 da Lei de Migração (Lei 13.445/2017) prevê a possibilidade de se transferir a execução da pena (TEP) do país estrangeiro para o Brasil, ou seja, o indivíduo condenado, em vez de cumprir a pena no exterior, cumpre a reprimenda aqui.

Ocorre que a lei afirma que a TEP só é admitida nos casos em que existe a possiblidade de extradição.

Essa interpretação é baseada na literalidade do caput do art. 100 da Lei de Migração:

 

Art. 100. Nas hipóteses em que couber solicitação de extradição executória, a autoridade competente poderá solicitar ou autorizar a transferência de execução da pena, desde que observado o princípio do non bis in idem.

 

Assim, nas hipóteses em que couber solicitação de extradição executória, a autoridade competente terá duas opções:

a) solicitar a extradição; ou

b) autorizar a transferência de execução da pena.

 

Desse modo, a pena de Robinho só poderia ser transferida para o Brasil se fosse possível, em tese, que ele fosse extraditado para a Itália. Como essa extradição não é permitida, também não é possível a transferência da execução.

 

O Prof. Valério acrescenta que:

“Apenas tratados internacionais específicos podem disciplinar a questão de modo contrário – não para autorizar a extradição de brasileiros natos, obviamente – e permitir que, estando o brasileiro nato no Brasil, cumpra aqui a pena imposta no Estado estrangeiro. Em casos tais, não se estaria violando o impedimento de extradição de brasileiros natos e o problema se resolveria. Se não houver norma internacional (convencional) em vigor permissiva, a homologação da decisão estrangeira pelo STJ, para efeitos de transferência de execução da pena, será contra legem.

Ocorre que, justamente com a Itália, o único tratado de cooperação judiciária em matéria penal existente prevê, no seu art. 1º, § 3º, que a cooperação entre os dois países em matéria penal ‘não compreenderá a execução de medidas restritivas da liberdade pessoal nem a execução de condenações’ [grifo nosso]. Foi uma opção das duas soberanias, na cooperação internacional judiciária em matéria penal, excluir a execução de medidas restritivas da liberdade e a execução de condenações.” (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/robinho-por-que-a-transferencia-de-execucao-da-pena-nao-se-aplica-24012022)

Estrangeiros condenados no exterior e que estão no Brasil podem ser extraditados. Logo, neste cenário, o Estado estrangeiro não precisará da transferência de sentença penal. Sua opção preferencial será a extradição.

A transferência de execução penal (TEP) é uma alternativa para os casos em que a extradição não é possível ou se torna inviável.

O que o caput do art. 100 da Lei 13.445/2017 diz é que a TEP só tem lugar nos casos em que se cogita de extradição executória (pena imposta no exterior a residente no Brasil). A TEP não se aplica, é claro, a pedidos de extradição instrutória (ação penal em curso no exterior).

Então, o primeiro ponto interpretativo é o seguinte: não cabe TEP em extradição instrutória pelo fato de que não há pena alguma a aplicar aqui. Só cabe TEP quando há a possibilidade de executar a pena estrangeira, isto é, quando se cogitaria de um pedido de extradição executória.

O segundo ponto é o seguinte: por que um Estado recorreria à TEP, se pode obter o preso? Apenas se o caminho preferencial (o da extradição) fosse obstado, o que ocorre com os brasileiros natos. Os estrangeiros e os brasileiros naturalizados podem ser extraditados.

É por isto que se diz que a transferência de execução penal (TEP), como espécie do reconhecimento de decisões estrangeiras, funciona como uma alternativa à extradição, notadamente quando esta não é factível.

Diversos tratados seguem esse modelo de alternatividade. A lei brasileira, como não poderia deixar de ser, adota esse padrão internacional em sede de cooperação.

No caso Robinho cabe solicitação de extradição executória? Cabe, claro. A Itália pode pedir; o Brasil é que não a pode dar. Um pedido dessa ordem, contra um nato, seria indeferido, mas serviria como gatilho para o procedimento de transferência da execução penal.

Brasileiro nato que cometa crime no exterior terá em seu favor o escudo da inextraditabilidade. Mas não há nenhuma regra constitucional que o proteja da transferência de uma sentença penal condenatória imposta no exterior com a observância do devido processo legal.

 

Argumentos expostos no twitter pessoal do Professor Aras:

https://twitter.com/VladimirAras /status/1483956304574038018?s=20

 

Obs: recomendo a leitura do artigo do Prof. Valério no qual ele expõe com mais detalhes (e muito mais competência que eu) os argumentos dessa primeira posição: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/robinho-por-que-a-transferencia-de-execucao-da-pena-nao-se-aplica-24012022.

 

Discussão sobre a possiblidade de retroação do art. 100 da Lei de Migração para crimes ocorridos antes da sua vigência

Ainda que se adote a posição de Vladimir Aras, mesmo assim, haverá dúvidas se esse dispositivo da Lei de Migração (editada em 2017) pode ser aplicado para o caso de Robinho, considerando que o crime ocorreu em 2013. Esse dispositivo poderia incidir para delitos cometidos antes de sua vigência ou isso configuraria retroatividade in pejus, vedada pelo art. 5º, XL, da CF (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”). O Prof. Fernando Capez foi quem primeiro identificou mais essa polêmica. Confira suas palavras:

“Robinho praticou um estupro coletivo em 2013.

O Código Penal, naquela época, não autorizava homologação da condenação estrangeira para execução da pena.

Em 2017, quatro anos depois, surgiu a Lei de Migração, que permitiu a transferência da execução da pena para ser cumprida aqui [no Brasil], em presídio federal.

Nesse caso, se entendermos que a Lei de Migração, nesse aspecto, tem caráter processual, a incidência é imediata e Robinho irá a um presídio federal cumprir a pena de nove anos de reclusão por estupro coletivo.

Mas se entendermos que o dispositivo tem natureza híbrida, até porque ele altera o artigo 9º do Código Penal, ele não poderia retroagir quatro anos, para alcançar um crime cometido em 2013, porque a lei penal não pode retroagir para prejudicar o agente.

Caberá ao Supremo Tribunal Federal decidir:

É híbrida (e não retroage) ou é processual (e Robinho vai preso)?”

 

Quem irá decidir se é possível a transferência da execução da pena de Robinho para que ele cumpra a sanção aqui no Brasil?

O STJ. Isso porque para que haja a transferência da pena é necessário preliminarmente que a sentença condenatória proferida contra Robinho na Itália seja homologada no Brasil. A competência para homologar decisão estrangeira no Brasil é do STJ, nos termos do art. 105, I, “i”, da CF.

 

Qual é o órgão jurisdicional do STJ que examina o pedido?

A Presidência do STJ.

Em regra, é atribuição do Presidente do STJ homologar decisão estrangeira (art. 216-A do RISTJ).

Exceção: se houver contestação ao pedido de homologação, o processo será distribuído para julgamento pela Corte Especial do STJ (art. 216-K).

No caso de Robinho, é provável que haja contestação e que o tema seja apreciado pela Corte Especial do STJ. Também é quase certo que, seja qual for a decisão da Corte Especial, o MP ou a defesa irão interpor recurso extraordinário.

O STF, por seu turno, muito provavelmente, irá entender que existe questão constitucional envolvida e dará a última palavra sobre o assunto.

 

O STJ já possui algum entendimento sobre o assunto? Existe alguma sinalização no sentido de que o STJ adote uma ou outra corrente acima exposta?

SIM. Existem decisões monocráticas permitindo a aplicação do art. 100 da Lei de Migração para que brasileiros natos condenados no exterior cumpram pena no Brasil. De forma mais direta: existem decisões do STJ sinalizando que o Tribunal pode permitir que Robinho cumpra a pena no Brasil.

Vejamos um caso recente apreciado pelo atual Presidente do STJ Ministro Humberto Martins. A situação foi a seguinte:

Fernando, brasileiro nato, cometeu crimes em Portugal. Lá, ele foi condenado a pena de 12 anos de prisão. Ocorre que, no momento do trânsito em julgado, Fernando já estava no Brasil. Por se tratar de brasileiro nato, não poderia ser extraditado para Portugal.

Diante disso, a Justiça portuguesa, por meio de carta rogatória, solicitou o reconhecimento da sentença proferida pelo Tribunal de Lisboa com a consequente transferência da execução da pena imposta a Fernando, com base na promessa de reciprocidade para casos análogos.

O pedido foi feito com base justamente nos arts. 100 e 101, § 1º, da Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração).

O Presidente do STJ concordou com o requerimento, homologou a sentença penal estrangeira e, autorizou a transferência da execução da pena imposta ao brasileiro Fernando.

STJ. Decisão monocrática. Carta Rogatória nº 15889, Presidente Humberto Martins, decidido em 22/04/2021.

 

Caso a Itália decida pedir que Robinho cumpra a pena no Brasil, como isso funcionará, na prática?

A República da Itália formulará um pedido formal de transferência de execução da pena.

Este pedido será recebido pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública, autoridade central designada.

O Ministério, após a verificação da admissibilidade, encaminhará esse pleito ao STJ para a homologação da sentença penal estrangeira.

Vale ressaltar que, antes de encaminhar ao STJ, o Ministério da Justiça fará o exame do preenchimento dos pressupostos formais de admissibilidade exigidos na legislação brasileira ou em tratado de que o Brasil faça parte (art. 101, § 1º, da Lei nº 13.445/2017 e art. 281 do Decreto nº 9.199/2017).

Chegando no STJ, Robinho será citado para, querendo, contestar o pedido de homologação, no prazo de 15 dias. Importante esclarecer que Robinho não poderá mais discutir o mérito da condenação, ou seja, se houve ou não crime. Isso já está decidido e o STJ não irá enfrentar esse tema.

A defesa somente poderá versar sobre a inteligência da decisão alienígena e a observância dos requisitos indicados nos arts. 216-C, 216-D e 216-F do Regimento Interno:

Art. 216-C. A homologação da decisão estrangeira será proposta pela parte requerente, devendo a petição inicial conter os requisitos indicados na lei processual, bem como os previstos no art. 216-D, e ser instruída com o original ou cópia autenticada da decisão homologanda e de outros documentos indispensáveis, devidamente traduzidos por tradutor ofi cial ou juramentado no Brasil e chancelados

pela autoridade consular brasileira competente, quando for o caso.

 

Art. 216-D. A decisão estrangeira deverá:

I - ter sido proferida por autoridade competente;

II - conter elementos que comprovem terem sido as partes regularmente citadas ou ter sido legalmente verificada a revelia;

III - ter transitado em julgado.

 

Art. 216-F. Não será homologada a decisão estrangeira que ofender a soberania nacional, a dignidade da pessoa humana e/ou a ordem pública.

 

Apresentada contestação, serão admitidas réplica e tréplica em 5 dias.

 

Se o STJ autorizar a transferência da execução, Robinho cumprirá a pena em um presídio “comum”?

Ele cumprirá a pena em um presídio federal. É o que se extrai do art. 102, parágrafo único, da Lei de Migração:

Art. 102. A forma do pedido de transferência de execução da pena e seu processamento serão definidos em regulamento.

Parágrafo único. Nos casos previstos nesta Seção, a execução penal será de competência da Justiça Federal.

 

Vamos supor que o STJ ou o STF (ao final) digam que não é possível a transferência do cumprimento da pena imposta na Itália. Imaginemos, portanto, que prevaleceu a posição defendida por Valério Mazzuoli. Neste caso, seria possível que Robinho fosse novamente julgado no Brasil por esse estupro aplicando-se a regra do art. 7º, II, b, do Código Penal?

Parece-me que não.

Recentemente no STF decidiu que:

O agente não pode responder à ação penal no Brasil se já foi processado criminalmente, pelos mesmos fatos, em um Estado estrangeiro.

O art. 5º do Código Penal afirma que a lei brasileira se aplica ao crime cometido no território nacional, mas ressalva aquilo que for previsto em “convenções, tratados e regras de direito internacional”.

A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) proíbem de forma expressa a dupla persecução penal pelos mesmos fatos.

Desse modo, o art. 8º do CP deve ser lido em conformidade com os preceitos convencionais e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), vedando-se a dupla persecução penal por idênticos fatos.

Vale, por fim, fazer um importante alerta: a proibição de dupla persecução penal em âmbito internacional deve ser ponderada com a soberania dos Estados e com as obrigações processuais positivas impostas pela CIDH. Isso significa que, se ficar demonstrado que o Estado que “processou” o autor do fato violou os deveres de investigação e de persecução efetiva, o julgamento realizado no país estrangeiro pode ser considerado ilegítimo. Portanto, se houver a devida comprovação de que o julgamento em outro país sobre os mesmos fatos não se realizou de modo justo e legítimo, desrespeitando obrigações processuais positivas, a vedação de dupla persecução pode ser eventualmente ponderada para complementação em persecução interna.

STF. 2ª Turma. HC 171118/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 12/11/2019 (Info 959).

 

No mesmo sentido:

(...) Ninguém pode expor-se, em tema de liberdade individual, a situação de duplo risco. Essa é a razão pela qual a existência de hipótese configuradora de “double jeopardy” atua como insuperável obstáculo à instauração, em nosso País, de procedimento penal contra o agente que tenha sido condenado ou absolvido, no Brasil ou no exterior, pelo mesmo fato delituoso.

- A cláusula do Artigo 14, n. 7, inscrita no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, qualquer que seja a natureza jurídica que se lhe atribua (a de instrumento normativo impregnado de caráter supralegal ou a de ato revestido de índole constitucional), inibe, em decorrência de sua própria superioridade hierárquico-normativa, a possibilidade de o Brasil instaurar, contra quem já foi absolvido ou condenado no exterior, com trânsito em julgado, nova persecução penal motivada pelos mesmos fatos subjacentes à sentença penal estrangeira.

STF. 2ª Turma. Ext 1223, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 22/11/2011.

 

 


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