Imagine a seguinte situação
hipotética:
João foi preso em flagrante com :
·
uma munição de calibre .40 (munição de arma de fogo de uso restrito);
·
66,9g de crack; e
·
uma balança de precisão.
Vale ressaltar que não foi
encontrado com ele qualquer arma de fogo (apenas essa munição).
Diante disso, João foi denunciado
e condenado pela prática de:
·
tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/2006);
·
associação para o tráfico (art. 35 da Lei nº 11.343/2006);
·
posse ilegal de munição de uso restrito (art. 16 da Lei nº 10.826/2003).
O réu recorreu alegando que a
apreensão de ínfima quantidade de munição, aliada à ausência de artefato apto
ao disparo (ausência de arma), implica o reconhecimento, no caso concreto, da
incapacidade de se gerar de perigo à incolumidade pública, o que impõe a sua
absolvição.
O argumento do acusado foi
acolhido pelo STJ?
NÃO.
A apreensão de ínfima quantidade
de munição desacompanhada da arma de fogo não implica, por si só, a atipicidade
da conduta.
STJ.
3ª Seção. EREsp 1.856.980-SC, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em
22/09/2021 (Info 710).
O STJ tem entendido que o simples
fato de os cartuchos apreendidos estarem desacompanhados da respectiva arma de
fogo não implica, por si só, a atipicidade da conduta, de maneira que as
peculiaridades do caso concreto devem ser analisadas a fim de se aferir:
a) a mínima ofensividade da conduta
do agente;
b) a ausência de periculosidade
social da ação;
c) o reduzido grau de
reprovabilidade do comportamento; e
d) a inexpressividade da lesão
jurídica provocada.
No caso concreto, embora com o réu
tenha sido preso com apenas uma munição de uso restrito, desacompanhada de arma
de fogo, ele foi também condenado pela prática dos crimes descritos nos arts.
33 e 35, da Lei nº 11.343/2006 (tráfico de drogas e associação para o tráfico),
o que afasta o reconhecimento da atipicidade da conduta, por não estarem
demonstradas a mínima ofensividade da ação e a ausência de periculosidade
social exigidas para tal finalidade.
Quando o crime de posse de munição é praticado dentro do
contexto do delito de tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006),
não cabe a aplicação do princípio da insignificância.
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1695811/SP, Rel. Min. João Otávio de
Noronha, julgado em 14/09/2021.
É possível aplicar o
princípio da insignificância para os crimes de posse ou porte de munição de
arma de fogo?
Esse
entendimento configura a regra geral. No entanto, o STF e o STJ, a depender do
caso concreto, reconhecem a possibilidade de aplicação do princípio da
insignificância para o crime de pose ou porte ilegal de pouca quantidade de
munição desacompanhada da arma. Confira:
(...) I – Recorrente que guardava no interior de sua residência
uma munição de uso permitido, calibre 22. II – Conduta formalmente típica, nos
termos do art. 12 da Lei 10.826/2003.
III – Inexistência de potencialidade lesiva da munição
apreendida, desacompanhada de arma de fogo. Atipicidade material dos fatos.
(...)
STF. 2ª Turma. RHC 143449, Rel. Min. Ricardo Lewandowski,
julgado em 26/09/2017.
É atípica a conduta daquele que porta, na forma de pingente,
munição desacompanhada de arma.
STF. 2ª Turma.
HC 133984/MG, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 17/5/2016 (Info 826).
O atual entendimento do STJ é no sentido de que a apreensão de
pequena quantidade de munição, desacompanhada da arma de fogo, permite a
aplicação do princípio da insignificância ou bagatela.
STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 517.099/MS, Rel. Min. Joel Ilan
Paciornik, julgado em 06/08/2019.
O STJ, alinhando-se ao STF, tem entendido pela incidência do
princípio da insignificância aos crimes previstos na Lei nº 10.826/2003
(Estatuto do Desarmamento), afastando a tipicidade material da conduta quando
evidenciada flagrante desproporcionalidade da resposta penal.
A aplicação do princípio da insignificância deve, contudo, ficar
restrita a hipóteses excepcionais que demonstrem a inexpressividade da lesão,
de forma que a incidência do mencionado princípio não pode levar ao
esvaziamento do conteúdo jurídico do tipo penal em apreço - porte de arma,
incorrendo em proteção deficiente ao bem jurídico tutelado.
STJ. 6ª Turma. HC 473.334/RJ, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado
em 21/05/2019.
Isso significa que a
apreensão apenas da munição tornou-se conduta atípica?
NÃO. Não significa isso.
A apreensão da munição
desacompanhada de arma de fogo é, em princípio, conduta típica, que preenche
não apenas a tipicidade formal, mas também a material, uma vez que o tipo penal
visa à proteção da incolumidade pública, não sendo suficiente a mera proteção à
incolumidade pessoal.
Assim, a posse de munição, mesmo
desacompanhada de arma apta a deflagrá-la, continua a preencher a tipicidade
penal, não podendo ser considerada atípica a conduta.
No entanto, a jurisprudência
passou a admitir a incidência do princípio da insignificância quando se tratar
de posse de pequena quantidade de munição, desacompanhada de armamento capaz de
deflagrá-la e desde que considerado todo o contexto fático a indicar a patente
ausência de lesividade jurídica ao bem tutelado. Nesse sentido:
Para que exista, de fato, a possibilidade de incidência do
princípio da insignificância, deve-se examinar o caso concreto, afastando-se o
critério meramente matemático, de forma que deve ser considerado todo o
contexto fático no qual houve a apreensão da munição, a indicar a patente
ausência de lesividade jurídica ao bem tutelado.
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1960029/SP, Rel. Min. Reynaldo
Soares da Fonseca, julgado em 05/10/2021.
Desse modo, a situação
terá que ser analisada no caso concreto.