Dizer o Direito

terça-feira, 2 de novembro de 2021

É cabível a pronúncia fundada exclusivamente em testemunhos indiretos de “ouvir dizer”?

 

Procedimento do Tribunal do Júri

Quando a pessoa pratica um crime doloso contra a vida, ela responde a um processo penal que é regido por um procedimento especial próprio do Tribunal do Júri (arts. 406 a 497 do CPP).

 

Procedimento bifásico do Tribunal do Júri

O procedimento do Tribunal do Júri é chamado de bifásico (ou escalonado) porque se divide em duas etapas:

1) Fase do sumário da culpa (iudicium accusationis): é a fase de acusação e instrução preliminar (formação da culpa). Inicia-se com o oferecimento da denúncia (ou queixa) e termina com a preclusão da sentença de pronúncia.

2) Fase de julgamento (iudicium causae).

 

Sentença que encerra o sumário da culpa

Ao final da 1ª fase do procedimento do júri (sumário da culpa), o juiz irá proferir uma sentença, que poderá ser de quatro modos:

Pronúncia

Impronúncia

Absolvição sumária

Desclassificação

O réu será pronunciado quando o juiz se convencer de que existem prova da materialidade do fato e indícios suficientes de autoria ou de participação.

O réu será impronunciado quando o juiz não se convencer:

§  da materialidade do fato;

§  da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação.

 

 

 

 

Ex.: a única testemunha que havia reconhecido o réu no IP não foi ouvida em juízo.

O réu será absolvido, desde logo, quando estiver provado (a):

§ a inexistência do fato;

§ que o réu não é autor ou partícipe do fato;

§ que o fato não constitui crime;

§ que existe uma causa de isenção de pena ou de exclusão do crime.

 

Ex.: todas as testemunhas ouvidas afirmaram que o réu não foi o autor dos disparos.

Ocorre quando o juiz se convencer de que o fato narrado não é um crime doloso contra a vida, mas sim um outro delito, devendo, então, remeter o processo para o juízo competente.

Ex.: juiz entende que não houve homicídio doloso, mas sim latrocínio.

Recurso cabível: RESE.

Recurso cabível: APELAÇÃO.

Recurso cabível: APELAÇÃO.

Recurso cabível: RESE.

 

Imagine agora a seguinte situação hipotética:

Pedro foi morto com 5 tiros.

Foi instaurado inquérito policial para apurar o ocorrido.

Foram ouvidas duas testemunhas que afirmaram que não presenciaram o delito, mas que ouviram dizer que o autor do homicídio foi João.

João foi, então, denunciado por homicídio doloso.

Durante a instrução as referidas testemunhas foram novamente ouvidas e reafirmaram que não presenciaram o delito, mas que ouviram dizer que o autor do homicídio foi João.

 

João poderá ser pronunciado?

NÃO.

A Constituição Federal conferiu ao Tribunal do Júri a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida e os a eles conexos, afirmando que o veredicto dos jurados é soberano (art. 5º, XXXVIII).

Entretanto, a fim de reduzir os casos de erro judiciário, seja para absolver, seja para condenar, exige-se que, antes de o réu ser submetido ao Júri, seja realizada uma instrução prévia, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, perante o juiz togado.

Ao final dessa instrução prévia, o juiz togado irá analisar se estão presentes a prova da materialidade e os indícios de autoria. O réu somente será pronunciado, ou seja, levado a julgamento se esses dois requisitos estiverem preenchidos. Veja o que diz o art. 413, caput, do CPP:

Art. 413.  O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação.

 

Assim, muito embora a análise aprofundada dos elementos probatórios seja feita somente pelo Tribunal Popular, não se pode admitir a pronúncia do réu sem que haja um mínimo de provas.

Essa primeira etapa do procedimento bifásico do Tribunal do Júri (iudicium accusationis) tem dois objetivos principais:

·        funciona como um filtro pelo qual somente passam as acusações fundadas, viáveis, plausíveis, idôneas a serem objeto de decisão pelo juízo da causa (iudicium causae). São evitadas, com isso, imputações temerárias;

·        serve para que sejam produzidas provas, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, a fim de que possam ser utilizadas no plenário do Júri.

 

Espécies de testemunha

As testemunhas podem ser classificadas de acordo com vários critérios. Um deles é o seguinte:

a) Testemunha DIRETA: é aquela que presenciou os fatos. Também chamada de testemunha visual.

b) Testemunha INDIRETA: é aquela que não presenciou os fatos, mas apenas ouviu falar sobre eles. É também chamada de testemunha auricular ou testemunha de “ouvir dizer” (hearsay rule).

 

Testemunha de ouvir dizer (hearsay rule)

A testemunha de ouvir dizer não deve ter grande força probatória. Conforme explica o Min. Rogério Schietti Cruz:

“A razão do repúdio a esse tipo de testemunho se deve ao fato de que, além de ser um depoimento pouco confiável, visto que os relatos se alteram quando passam de boca a boca, o acusado não tem como refutar, com eficácia, o que o depoente afirma sem indicar a fonte direta da informação trazida a juízo.”

 

Já decidiu o STJ:

(...) 6. A norma segundo a qual a testemunha deve depor pelo que sabe per proprium sensum et non per sensum alterius impede, em alguns sistemas – como o norte-americano – o depoimento da testemunha indireta, por ouvir dizer (hearsay rule). No Brasil, embora não haja impedimento legal a esse tipo de depoimento, “não se pode tolerar que alguém vá a juízo repetir a vox publica. Testemunha que depusesse para dizer o que lhe constou, o que ouviu, sem apontar seus informantes, não deveria ser levada em conta.” (Helio Tornaghi). (...)

STJ. 6ª Turma. REsp 1.444.372/RS, Rel. Min Rogerio Schietti, julgado em 16/2/2016.

 

Desse modo, o réu não pode ser pronunciado unicamente com prova de “ouvir dizer”.

 

Em suma:

Não é cabível a pronúncia fundada exclusivamente em testemunhos indiretos de “ouvir dizer”.

Muito embora a análise aprofundada dos elementos probatórios seja feita somente pelo Tribunal do Júri, não se pode admitir, em um Estado Democrático de Direito, a pronúncia baseada, exclusivamente, em testemunho indireto (por ouvir dizer) como prova idônea, de per si, para submeter alguém a julgamento pelo Tribunal Popular.

STJ. 5ª Turma. HC 673.138-PE, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 14/09/2021 (Info 709).

STJ. 6ª Turma. REsp 1649663/MG, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 14/09/2021.

 

Veja como o tema já foi cobrado em prova:

ý (Juiz de Direito TJBA/2019 CEBRASPE) Em decorrência do princípio do in dubio pro societate, o testemunho por ouvir dizer produzido na fase inquisitorial é suficiente para a decisão de pronúncia. (errado)


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