Dizer o Direito

terça-feira, 26 de outubro de 2021

A Unimed pode exigir que o médico seja aprovado em processo seletivo para ser admitido na cooperativa ou isso viola o princípio da porta aberta?

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João, médico oftalmologista, pediu para ingressar na Unimed (cooperativa de médicos).

A Unimed negou o pedido afirmando que, para ingressar na cooperativa, ele precisaria primeiramente ser aprovado em um processo seletivo técnico.

Inconformado, João ajuizou ação de obrigação de fazer contra a Unimed pedindo para que fosse reconhecido seu direito de ingressar na cooperativa independentemente de processo seletivo.

O autor argumentou que essa exigência seria abusiva porque não prevista na Lei nº 5.764/71 (Lei das Cooperativas).

A Unimed contestou a demanda sustentando que essa exigência de processo seletivo técnico está prevista no art. 3º, IV, do estatuto social da cooperativa e que tem por objetivo garantir a possibilidade técnica da prestação dos serviços.

O juiz julgou o pedido procedente, reconhecendo a abusividade da previsão contida no Estatuto porque não teria fundamento na lei.

O TJ/SP manteve a sentença afirmando, inclusive, que o entendimento é pacífico naquela Corte conforme enunciado interno do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

Enunciado X: A exigência de aprovação em processo seletivo ou de realização de curso de cooperativismo como condição de ingresso em cooperativa não tem base legal e viola o princípio das portas abertas.

 

O STJ concordou com o entendimento do TJ/SP? A exigência feita pela Unimed é indevida?

NÃO.

A cooperativa de trabalho médico (no caso, a Unimed) pode sim limitar, por meio de processo seletivo público, o ingresso de novos associados ao fundamento de preservação da possibilidade técnica de prestação de serviços.

Vamos entender.

 

O que é uma cooperativa?

Cooperativas são sociedades de pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro.

 

A admissão de associados pode ser restringida?

SIM. A admissão dos associados poderá ser restrita, a critério do órgão normativo respectivo, às pessoas que exerçam determinada atividade ou profissão ou estejam vinculadas a determinada entidade. Ex: na cooperativa de médicos somente podem ingressar os profissionais regularmente habilitados como médicos.

 

Como funcionam as cooperativas de trabalho?

Nas cooperativas de trabalho, como a de médicos, a produção (ou o oferecimento de serviço) é realizada em conjunto pelos associados, sob a proteção da própria cooperativa.

Assim, a cooperativa coloca à disposição do mercado a força de trabalho, cujo produto da venda - após a dedução de despesas - é distribuído, por equidade, aos associados, ou seja, cada um receberá proporcionalmente ao trabalho efetuado (número de consultas, complexidade do tratamento, entre outros parâmetros).

Essas cooperativas têm como finalidade melhorar os salários e as condições de trabalho pessoal de seus associados, dispensando, mediante ajuda mútua, a intervenção de um patrão ou empresário, procurando sempre o justo preço, já que a entidade não busca o lucro: a sobra apurada em suas operações é distribuída em função do montante operacional de cada associado.

 

O que faz uma cooperativa de trabalho médico?

A cooperativa de trabalho, como a de médicos, coloca à disposição do mercado a força de trabalho.

O produto arrecadado com a prestação desses serviços é utilizado para pagamento das despesas da própria cooperativa e, em seguida, é distribuído, por equidade, entre os associados, ou seja, cada um receberá proporcionalmente ao trabalho efetuado (número de consultas, complexidade do tratamento, entre outros parâmetros).

Conforme explica a doutrina especializada:

“8.1. A realidade brasileira ostenta um expressivo conjunto de cooperativas de serviços, constituídas por médicos, que celebram contratos para que beneficiários contratuais recebam assistência médica por parte de cooperados.

8.2. Têm elas dupla qualificação. São cooperativas, constituídas conforme o Código Civil e a Lei nº 5.764 de 1971 e, igualmente, operadoras de planos de saúde, como tais definidas pela Lei nº 9.656, a lei dos planos de saúde.

8.3. As cooperativas de serviços médicos foram criadas na década de 1970, como movimento classista contra a massificação e o aviltamento financeiro decorrentes da estatização forçada da atividade médica e surgimento de empresas que compravam trabalho médico e revendiam com lucro.

8.4. Os sócios dessas cooperativas oferecem, coletivamente, na forma de convênios, a preços acessíveis, suas clínicas privadas, aos interessados, num atendimento que sobrepuja, em qualidade, o dispensado nas filas previdenciárias e nos ambulatórios das medicinas de grupo. Daí o sucesso crescente do empreendimento que, salvo alguns percalços, espraia-se hoje por toda a geografia brasileira, assumindo a feição de autêntica instituição nacional.” (ROSE, Marco Túlio de. Cooperativas Médicas, Saúde Suplementar e Colisão (Cap. X). In: Comentários à Legislação das Sociedades Cooperativas: Tomo II. KRUEGER, G.; MIRANDA, A. B. (Coord.), Belo Horizonte: Mandamentos, 2007, págs. 284/285)

 

Princípio cooperativista da adesão livre (princípio da livre adesão voluntária)

O princípio cooperativista da adesão livre desdobra-se em dois outros:

a) o princípio da voluntariedade, em que ninguém deve ser coagido a ingressar em uma sociedade cooperativa, de modo que o pedido de ingresso deve partir da vontade livre e desembaraçada do proponente; e

b) o princípio da porta aberta, o qual prega que a adesão deve ser aberta a todas as pessoas que aceitem as responsabilidades próprias da filiação e tenham a possibilidade de usufruir as utilidades da cooperativa.

 

Desse modo, o ingresso nas cooperativas é livre a todos que desejarem utilizar os serviços prestados pela sociedade, desde que adiram aos propósitos sociais e preencham as condições estabelecidas no estatuto.

Em regra, não há limitação quanto ao número de associados.

Exceção: podem ser impostas restrições se houver impossibilidade técnica de prestação de serviços.

Veja os dispositivos da Lei nº 5.764/71 que tratam sobre o tema:

Art. 4º As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características:

I - adesão voluntária, com número ilimitado de associados, salvo impossibilidade técnica de prestação de serviços;

(...)

 

Art. 29. O ingresso nas cooperativas é livre a todos que desejarem utilizar os serviços prestados pela sociedade, desde que adiram aos propósitos sociais e preencham as condições estabelecidas no estatuto, ressalvado o disposto no artigo 4º, item I, desta Lei.

 

Princípio da porta aberta

Por força do princípio da porta aberta, consectário do princípio da livre adesão, não podem existir restrições arbitrárias e discriminatórias à livre entrada de novo membro na cooperativa, devendo a regra limitativa da impossibilidade técnica de prestação de serviços ser interpretada segundo a natureza da sociedade cooperativa, sobretudo porque a cooperativa não visa o lucro, além de ser um empreendimento que possibilita o acesso ao mercado de trabalhadores com pequena economia, promovendo, portanto, a inclusão social.

A proibição imotivada de novos cooperados é proibido pela lei porque o incentivo ao cooperativismo é de interesse público, tal como preconizado pelo art. 174, § 2º da Constituição Federal:

Art. 174 (...)

§ 2º A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.

 

Logo, não atingida a capacidade máxima de prestação de serviços pela cooperativa, que deverá ser aferida por critérios técnicos e verossímeis, pois isso a impediria de cumprir sua finalidade de colocar suas atividades à disposição de seus componentes, é vedada a recusa de admissão de novos associados qualificados (STJ. 4ª Turma. REsp nº 661.292/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 8/6/2010).

Em outras palavras, a recusa de ingresso de profissional na cooperativa de trabalho médico não pode se dar sem haver estudos técnicos de viabilidade, somente em razão de presunções acerca da suficiência numérica de associados na região exercendo a mesma especialidade.

A simples inconveniência para cooperados que já compõem o quadro associativo (eventual diminuição de lucros para eles) não caracteriza motivo técnico suficiente para impedir o ingresso de novos cooperados (STJ. 3ª Turma. REsp nº 1.479.561/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 28/11/2014).

 

Princípio da porta aberta não é absoluto

O princípio da porta aberta (livre adesão) não é absoluto, devendo a cooperativa de trabalho médico, que também é uma operadora de plano de saúde, velar por sua qualidade de atendimento e situação financeira estrutural, até porque pode ser condenada solidariamente por atos danosos de cooperados a usuários do sistema (a exemplo de erros médicos), o que impossibilitaria a sua viabilidade de prestação de serviços.

Dessa forma, se for atingida a capacidade máxima de prestação de serviços pela cooperativa, aferível por critérios objetivos e verossímeis, é possível a recusa de novos associados já que o número acima do tolerado impediria a cooperativa de cumprir as suas finalidades.

 

Licitude do processo seletivo público

Com base, portanto, nessas premissas, deve-se considerar que é lícita a previsão contida no estatuto social da cooperativa médica impondo a realização de processo seletivo público e de caráter impessoal.

Nesta seleção poderão ser exigidos conteúdos a respeito de ética médica, cooperativismo e gestão em saúde como requisitos de admissão de profissionais médicos para compor os quadros da entidade. Isso se justifica porque, por força de lei, o interessado deve aderir aos propósitos sociais da cooperativa e preencher as condições estatutárias estabelecidas. Logo, o princípio da porta aberta deve ser compatibilizado com a possibilidade técnica de prestação de serviços e a viabilidade estrutural econômico-financeira da sociedade cooperativa.

 

Em suma:

É lícita a previsão, em estatuto social de cooperativa de trabalho médico, de processo seletivo público como requisito de admissão de profissionais médicos para compor os quadros da entidade, devendo o princípio da porta aberta ser compatibilizado com a possibilidade técnica de prestação de serviços e a viabilidade estrutural econômico-financeira da sociedade cooperativa.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.901.911-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 24/08/2021 (Info 673).

 

O interessado que não lograr êxito no processo seletivo da cooperativa continuará a exercer sua especialidade médica em consultórios, hospitais e demais estabelecimentos de saúde, podendo, inclusive, ser prestador de serviço credenciado de outras operadoras de plano de assistência à saúde.

Esse é o entendimento atualmente pacífico do STJ:

As Turmas que integram a Segunda Seção do STJ entendem que o princípio da porta-aberta, consectário do princípio da livre adesão, deve ser interpretado no sentido de ser possível a exigência de processo seletivo para admissão de novo cooperado, desde que haja previsão estatutária e a condição não tenha a finalidade de restringir o acesso de forma abusiva.

STJ. 2ª Seção. AgInt nos EREsp 1561337/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 18/08/2021.

 


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