Imagine a seguinte situação adaptada:
João foi condenado pela prática do crime previsto no art.
218-B, § 2º, I, do Código Penal:
Art. 218-B. Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou
outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por
enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a
prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10
(dez) anos.
(...)
§ 2º Incorre nas mesmas penas:
I - quem pratica conjunção carnal ou
outro ato libidinoso com alguém menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze)
anos na situação descrita no caput deste artigo;
(...)
Ficou provado que João era
cliente de uma rede de prostituição de menores, organizada pela corré Daniela,
tendo mantido relações sexuais com 7 vítimas adolescentes.
Após o trânsito em julgado, o
advogado de João descobriu o seguinte:
- o procedimento investigativo
que apurou essa rede de prostituição foi instaurado pelo Ministério Público do
Estado;
- um dos agentes policiais que
auxiliou o MP na investigação foi o Delegado de Polícia Civil Sandro;
- durante as interceptações
telefônicas, foi captada conversa entre Antônio e a investigada Daniela, na
qual ele combina com a proxeneta (cafetina) a contratação de uma adolescente
para relações sexuais. Em outras palavras, Antônio seria também um dos clientes
da rede de prostituição;
- ocorre que Antônio é pai de
Sandro, um dos Delegados da investigação;
- vale ressaltar que Antônio não
chegou a ser indiciado ou mesmo investigado;
- de igual modo, o Delegado não
se afastou da investigação.
Revisão criminal
João ajuizou revisão criminal, com fundamento no art. 621,
III, do CPP, alegando que somente após o trânsito em julgado da condenação, a
defesa descobriu a filiação do delegado:
Art. 621. A revisão dos processos findos será admitida:
(...)
III - quando, após a sentença, se
descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que
determine ou autorize diminuição especial da pena.
A condenação de João foi
anulada em virtude desse fato?
NÃO.
A suspeição da autoridade
policial e seus efeitos sobre o processo judicial
Segundo prevê o art. 107 do CPP:
Art. 107. Não se poderá opor suspeição
às autoridades policiais nos atos do inquérito, mas deverão elas declarar-se
suspeitas, quando ocorrer motivo legal.
Essa previsão é bastante
criticada em sede doutrinária. A despeito disso, continua válido e vigente,
inexistindo declaração de sua não recepção pelo STF.
Para o STJ, o descumprimento do
art. 107 do CPP não gera, por si só, a nulidade do processo judicial, sendo
necessária a demonstração do prejuízo suportado pela parte ré.
Vale ressaltar que, segundo a
tradicional compreensão doutrinária e pretoriana hoje predominante, o inquérito
é uma peça de informação, destinada a auxiliar a construção da opinio
delicti do órgão acusador.
Logo, possíveis irregularidades
ocorridas no inquérito policial não afetam a ação penal.
Importante lembrar que, ressalvadas as provas irrepetíveis,
cautelares e antecipadas, nos termos do art. 155 do CPP, não há propriamente
produção de provas na fase inquisitorial, mas apenas colheita de elementos
informativos para subsidiar a convicção do Ministério Público quanto ao
oferecimento (ou não) da denúncia. Também por isso, o inquérito é uma peça
facultativa, como se depreende do art. 39, § 5º, do CPP:
Art. 39 (...)
§ 5º O órgão do Ministério Público
dispensará o inquérito, se com a representação forem oferecidos elementos que o
habilitem a promover a ação penal, e, neste caso, oferecerá a denúncia no prazo
de quinze dias.
Todos os elementos colhidos no
inquérito, quando integram a acusação e são considerados pela sentença,
submetem-se ao contraditório no processo judicial, e é este o locus
adequado para rebatê-los.
Também as provas irrepetíveis,
cautelares e antecipadas passam pelo crivo do contraditório, ainda que de forma
diferida, cabendo à defesa o ônus de apontar possíveis vícios processuais e
apresentar suas impugnações fáticas.
Por isso, como resta preservada a
ampla possibilidade de debate dos elementos de prova em juízo, é correto manter
incólume o processo mesmo diante de alguma irregularidade cometida na fase
inquisitorial (desde que, é claro, não tenham sido descumpridas regras de
licitude da atividade probatória).
Ausência de prejuízo no
caso concreto
Dentre as provas que
fundamentaram a condenação do réu, apenas a interceptação telefônica foi
realizada com a participação do Delegado suspeito. A defesa, contudo, não se
insurge contra o conteúdo material das conversas gravadas, tampouco indica
serem falsas em alguma medida.
Assim, como não foi demonstrado
qualquer prejuízo causado pela suspeição, é inviável decretação de nulidade da
condenação.
Em suma:
A ausência de afirmação da autoridade policial de sua
própria suspeição não eiva de nulidade o processo judicial por si só, sendo
necessária a demonstração do prejuízo suportado pelo réu.
STJ. 5ª
Turma. REsp 1.942.942-RO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 10/08/2021 (Info
704).