Imagine a seguinte situação adaptada:
João ajuizou ação de indenização
contra a empresa Agroferreira Ltda.
O juiz constatou que a petição inicial preenchia os
requisitos essenciais e que não era caso de improcedência liminar do pedido. Em
razão disso, designou audiência de conciliação entre as partes, nos termos do
art. 334 do CPC:
Art. 334. Se a petição inicial preencher os requisitos
essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz
designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30
(trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de
antecedência.
Na audiência de conciliação, João
compareceu juntamente com seu advogado.
A empresa ré não enviou preposto,
tendo mandado para a audiência apenas o advogado. Vale ressaltar, contudo, que
o advogado da empresa tinha procuração com poderes específicos para transigir.
Mesmo assim, o juiz entendeu que era
indispensável a presença do preposto e que, como ele não estava presente na
audiência, deveria se entender que a parte ré faltou.
Diante disso, o magistrado aplicou multa contra a empresa
por ato atentatório à dignidade da justiça, na forma do § 8º do art. 334 do
CPC:
Art. 334 (...)
§ 8º O não comparecimento injustificado do autor
ou do réu à
audiência de conciliação é considerado ato atentatório à dignidade da justiça
e será sancionado com multa de até dois por cento da vantagem econômica
pretendida ou do valor da causa, revertida em favor da União ou do Estado.
A empresa pode interpor
agravo de instrumento contra essa decisão interlocutória que fixou a multa?
Cabe agravo de instrumento neste caso?
NÃO.
A decisão cominatória da multa do art. 334, §8º, do CPC, à parte
que deixa de comparecer à audiência de conciliação, sem apresentar justificativa
adequada, não é agravável, não se inserindo na hipótese prevista no art. 1.015,
inciso II, do CPC, podendo ser, no futuro, objeto de recurso de apelação, na
forma do art. 1.009, §1º, do CPC.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.762.957/MG, Rel. Min. Paulo de Tarso
Sanseverino, julgado em 10/03/2020.
Essa decisão poderá ser discutida, no futuro, em recurso de
apelação, na forma do art. 1.009, § 1º do CPC:
Art. 1.009. Da sentença cabe apelação.
§ 1º As questões resolvidas na fase de
conhecimento, se a decisão a seu respeito não comportar agravo de instrumento,
não são cobertas pela preclusão e devem ser suscitadas em preliminar de
apelação, eventualmente interposta contra a decisão final, ou nas
contrarrazões.
Superada a análise do cabimento
do recurso, vamos tratar da matéria de fundo. Agiu corretamente o juiz ao impor
a multa neste caso?
NÃO.
Não
cabe a aplicação de multa pelo não comparecimento pessoal à audiência de
conciliação, por ato atentatório à dignidade da Justiça, quando a parte estiver
representada por advogado com poderes específicos para transigir.
STJ.
4ª Turma. RMS 56.422-MS, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 08/06/2021 (Info
700).
A parte tem o direito de se fazer representar na audiência
de conciliação por advogado com poderes para negociar e transigir. Isso está
expressamente previsto no § 10 do art. 334 do CPC/2015:
Art. 334 (...)
§ 10. A parte poderá constituir
representante, por meio de procuração específica, com poderes para negociar e
transigir.
“(...) Caso a parte não deseje
comparecer pessoalmente à audiência, o § 10 do art. 334, do Novo CPC permite a
constituição de um representante, por meio de procuração específica, com
poderes para negociar e transigir. Pode ser seu advogado um ou terceiro, e como
na audiência não haverá outra atividade além da tentativa de solução
consensual, não há qualquer impedimento para a outorga de poderes da parte para
terceiro.” (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual
civil. Volume único. 9ª ed. – Salvador: Juspodivm, 2017, p. 652)
“Constituído o representante com
poder para negociar e transigir, a parte não precisa comparecer pessoalmente à
audiência preliminar”. (DIDIER, Fredie. Curso de direito processual civil. 20ª ed.
Salvador: Juspodivm, 2018, p. 724)
Desse modo, ficando demonstrado que
o procurador da ré, munido de procuração com poderes para transigir, esteve presente
na audiência, tem-se como manifestamente ilegal a aplicação da multa por ato atentatório
à dignidade da Justiça.
DOD plus
Atenção com a Lei 9.099/95 (Lei
do Juizado Especial estadual)
Confira o que a Lei nº 9.099/95 prevê sobre a presença das
partes na audiência:
Art. 17. Comparecendo inicialmente ambas
as partes, instaurar-se-á, desde logo, a sessão de conciliação, dispensados o registro
prévio de pedido e a citação.
Parágrafo único. Havendo pedidos contrapostos,
poderá ser dispensada a contestação formal e ambos serão apreciados na mesma sentença.
Art. 20. Não comparecendo o demandado à
sessão de conciliação ou à audiência de instrução e julgamento, reputar-se-ão verdadeiros
os fatos alegados no pedido inicial, salvo se o contrário resultar da convicção
do Juiz.
Nas palavras da doutrina, o não comparecimento do réu importa
revelia, não bastando que ele se faça representar por advogado, ainda que este tenha
poderes para transigir. Nesse sentido:
“Nos Juizados
Especiais, além dessa, há outra causa de revelia: o não comparecimento do réu a
qualquer uma das audiências, tanto a de conciliação quanto a de instrução e julgamento.
É o que estabelece o art. 20 da Lei n. 9.099/95: ‘Não comparecendo o demandado à
sessão de conciliação ou à audiência de instrução e julgamento, reputar-se-ão verdadeiros
os fatos alegados no pedido inicial, salvo se o contrário resultar da convicção
do juiz’. Há necessidade de comparecimento pessoal, não bastando que ele se faça
representar por advogado, ainda que este tenha poderes para transigir. O Enunciado
n. 20 do Fórum Permanente não deixa dúvidas, ao qualificar de obrigatório o comparecimento
das partes à audiência, podendo a pessoa jurídica fazer-se representar por preposto.
Se o autor não comparecer pessoalmente a qualquer das audiências, o juiz extinguirá
o processo sem resolução de mérito; e se o réu não comparecer, será considerado
revel” (GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios de. Direito processual civil. 12ª
ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021).
Veja os enunciados do FONAJE sobre o tema:
ENUNCIADO 20 – O comparecimento pessoal
da parte às audiências é obrigatório. A pessoa jurídica poderá ser representada
por preposto.
ENUNCIADO 98 (Substitui o Enunciado 17)
– É vedada a acumulação SIMULTÂNEA das condições de preposto e advogado na mesma
pessoa (art. 35, I e 36, II da Lei 8906/1994 combinado com o art. 23 do Código de
Ética e Disciplina da OAB) (XIX Encontro – Aracaju/SE).
ENUNCIADO 99 (Substitui o Enunciado 42)
– O preposto que comparece sem carta de preposição, obriga-se a apresentá-la no
prazo que for assinado, para validade de eventual acordo, sob as penas dos artigos
20 e 51, I, da Lei nº 9099/1995, conforme o caso (XIX Encontro – Aracaju/SE).
Atenção com a Lei nº 10.259/2001
(Lei do Juizado Especial Federal)
Curiosamente, note-se que na Lei nº 10.259/2001 existe previsão
expressa para que as partes nomeiem, “por escrito, representantes para a causa,
advogado ou não”:
Art. 10. As partes poderão designar, por
escrito, representantes para a causa, advogado ou não.
Para a doutrina (Felippe Borring Rocha):
“Nesses Juizados
é possível sustentar não apenas a possibilidade da representação da parte, mas também
que ela seja feita por meio de advogado” (Manual dos juizados especiais cíveis estaduais.
10. ed. São Paulo: Atlas, 2019).
Em outras palavras (Alexandre Chini et al. Juizados especiais
cíveis e criminais no âmbito da justiça federal. Salvador: Juspodivm, 2020,
p. 87):
“Evita-se, com
isso, que uma empresa pública federal, pessoa jurídica de direito privado, como
a Caixa Econômica Federal (CEF), por exemplo, tenha que enviar mais de uma pessoa
para as audiências na Justiça Federal, bastando que se apresente seu advogado devidamente
habilitado, o qual, por força da Lei, terá poderes para atuar sem a necessidade
de terceiros como prepostos, como costumeiramente se faz necessário nos Juizado
Cíveis Estaduais. Portanto, se o advogado de uma empresa pública federal ré (CEF,
por exemplo) comparece à audiência sem a presença de algum preposto, não se configurará
revelia, uma vez que o texto legal lhe confere poderes para atuar sozinho, podendo,
inclusive, conciliar, transigir e desistir, sem que o substabelecimento precise
conferir esses poderes de forma expressa, afinal, a autorização decorre da lei,
não podendo ser derrogada por contrato de substabelecimento particular”.