Imagine a seguinte situação
hipotética:
Lucas, que mora em Londrina (PR)
comprou, pela internet, ecstasy, de Julian um vendedor de drogas residente na
Holanda.
Julian remeteu, da Holanda, a caixa
contendo a droga.
Ocorre que, ao chegar no Brasil,
em um voo internacional que pousou em São Paulo, a caixa foi levada para
inspeção no posto da Receita Federal e lá se descobriu, por meio da máquina de
raio X, a existência da droga.
Desse modo, tem-se o seguinte
cenário:
·
endereço do destinatário da droga importada via Correio: Londrina (PR).
·
local da local da apreensão da droga remetida do exterior pela via postal: São
Paulo (SP).
Qual foi o delito em tese
praticado pela pessoa que seria destinatária da droga (que encomendou o
entorpecente)?
Tráfico transnacional de drogas
(art. 33 c/c art. 40, I, da Lei nº 11.343/2006). Lucas importou a droga.
A competência para julgar
será da Justiça Estadual ou Federal?
Justiça Federal, nos termos do art. 109, V, da CF/88 e art.
70 da Lei nº 11.343/2006:
Art. 109. Aos juízes federais compete
processar e julgar:
(...)
V - os crimes previstos em tratado ou
convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha
ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;
Art. 70. O processo e o julgamento dos
crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta Lei, se caracterizado ilícito
transnacional, são da competência da Justiça Federal.
A
competência será da Justiça Federal de São Paulo ou de Londrina?
Importação da droga via postal (Correios) Tráfico transnacional de drogas (art.
33 c/c art. 40, I, da Lei nº 11.343/2006) A competência será do local onde
a droga foi apreendida ou do local de destino da droga? |
|
Entendimento
anterior do STJ: Local de apreensão
da droga (no ex: SP) |
Entendimento atual
do STJ: Local de destino da
droga (no ex: Londrina) |
Essa posição estava manifestada
na Súmula 528 do STJ, aprovada em 13/05/2015: Súmula 528-STJ: Compete ao juiz
federal do local da apreensão da droga remetida do exterior pela via postal
processar e julgar o crime de tráfico internacional. |
Na hipótese de importação da
droga via correio cumulada com o conhecimento do destinatário por meio do
endereço aposto na correspondência, a Súmula 528/STJ deva ser flexibilizada
para se fixar a competência no Juízo do local de destino da droga, em favor
da facilitação da fase investigativa, da busca da verdade e da duração
razoável do processo. STJ. 3ª Seção. CC 177.882-PR,
Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 26/05/2021 (Info 698). |
Argumentos desse antigo
entendimento: O CPP prevê que a competência é
definida pelo local em que o crime se consumar: Art. 70. A competência será, de
regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de
tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução. A conduta prevista no art. 33, caput,
da Lei nº 11.343/2006 constitui delito formal, multinuclear, sendo que, para
sua consumação, basta a execução de qualquer das condutas previstas no
dispositivo legal. No caso em tela, a pessoa que
encomendou a droga praticou o verbo “importar”, que significa “fazer vir de
outro país, estado ou município; trazer para dentro.” Logo, pode-se afirmar
que o delito se consumou no instante em que o produto importado tocou o
território nacional, entrada essa consubstanciada na apreensão da droga. Vale ressaltar que, para que
ocorra a consumação do delito de tráfico transnacional de drogas, é
desnecessário que a correspondência chegue ao destinatário final. Se chegar,
haverá mero exaurimento da conduta. A consumação (importação) ocorreu quando
a encomenda entrou no território nacional. Dessa forma, o delito se
consumou no local de entrada da mercadoria, sendo esse o juízo competente,
nos termos do art. 70 do CPP. |
Argumentos do novo entendimento: ·
O primeiro argumento decorre do bom senso. Em São Paulo desembarca a maioria
das remessas importadas, via correios, do
exterior. A existência de destinatário certo e devidamente identificado colocaria
a Polícia Federal lotada no Estado de São Paulo para investigar indivíduo que
residisse, v.g., em Porto Alegre, no Rio de Janeiro, em Boa Vista, em Cuiabá
etc. Enfim, em qualquer lugar do Brasil para onde a encomenda estivesse
endereçada. Isso dificultaria sobremaneira as investigações, quando não as inviabilizasse
por completo; ·
O segundo argumento decorre da regra que define a competência pelo lugar em
que efetivamente se consuma a infração, circunstância esta essencial para a fixação
da competência, nos termos do art. 70, do CPP. para que haja a remessa da
droga ao Brasil é necessário que o importador entabule um negócio (evidentemente
ilícito). Não é crível, ainda mais no âmbito do tráfico internacional, que
alguém remeta drogas para o Brasil gratuitamente ou ofereça essa remessa como
um presente sem ônus. É evidente que há um negócio espúrio preliminar à
remessa do entorpecente. Assim, quando o importador acerta a remessa do entorpecente,
efetua o pagamento do preço e se cerca dos cuidados para que receba o
produto, o negócio se encontra aperfeiçoado, dependendo o seu êxito integral,
tão somente, do efetivo recebimento da droga. Desse modo, a consumação da importação
da droga ocorre no momento da entabulação do negócio jurídico. Logo, o local
de apreensão da mercadoria em trânsito não se confunde com o local da
consumação do delito, o qual já se encontrava perfeito e acabado desde a
negociação. |
A ementa oficial do julgado fala
em “flexibilização da Súmula 528 do STJ”:
“(...) 7. A fixação da
competência no local de destino da droga, quando houver postagem do exterior
para o Brasil com o conhecimento do endereço designado para a entrega,
proporcionará eficiência da colheita de provas relativamente à autoria e,
consequentemente, também viabilizará o exercício da defesa de forma mais ampla.
Em suma, deve ser estabelecida a competência no Juízo do local de destino do entorpecente,
mediante flexibilização da Súmula n. 528/STJ, em favor da facilitação da fase
investigativa, da busca da verdade e da duração razoável do processo. (...)”
Em suma:
Na hipótese de importação da droga
via correio cumulada com o conhecimento do destinatário por meio do endereço
aposto na correspondência, a Súmula 528/STJ deva ser flexibilizada para se
fixar a competência no Juízo do local de destino da droga, em favor da
facilitação da fase investigativa, da busca da verdade e da duração razoável do
processo.
STJ.
3ª Seção. CC 177.882-PR, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 26/05/2021
(Info 698).
Logo, para fins de concurso
público, deve-se adotar essa expressão (“flexibilização da Súmula 528 do STJ”).
Na prática, contudo, o que se percebe é que o enunciado foi superado, ou seja,
seu entendimento não mais representa a jurisprudência atual do Tribunal e, na
minha opinião, não resta outro caminho a não ser cancelar a súmula ou, no
mínimo, alterar a sua redação. Tanto isso é verdade que o Min. Relator Joel
Ilan Paciornik determinou que fosse encaminhada cópia da decisão “à Comissão de
Jurisprudência para adequação da Súmula n. 528/STJ”.
Alguns poderiam argumentar que a Súmula
528 continua a ser aplicada nos casos em que a droga é remetida via postal, mas
não se conhece o destinatário. Essa hipótese é improvável. Isso porque toda correspondência
remetida já deve ter, necessariamente, o endereço do destinatário. Logo, me
parece que, a partir de agora, se a droga foi remetida via postal, a competência
sempre será do juízo do destinatário da droga. Este é o novo critério.