sexta-feira, 30 de julho de 2021
Comentários à Lei 14.188/2021: crime de violência psicológica, nova qualificadora para lesão corporal por razões da condição do sexo feminino e programa Sinal Vermelho
Olá, amigos do Dizer o Direito,
Foi publicada ontem (29/07) a Lei
nº 14.188/2021, que tratou sobre quatro assuntos:
·
instituiu o programa “Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica" como uma
das medidas de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher;
·
nova qualificadora para a lesão corporal simples cometida contra a mulher por
razões da condição do sexo feminino;
·
criou o crime de violência psicológica contra a mulher;
·
inserção da integridade psicológica no art. 12-C da Lei Maria da Penha.
PROGRAMA “SINAL VERMELHO”
O programa “Sinal Vermelho contra
a Violência Doméstica” é mais uma iniciativa para enfrentar a violência
doméstica e familiar contra a mulher.
Como funciona o programa?
A mulher procura uma repartição
pública ou uma empresa participante do programa (ex: drogarias, restaurantes,
salões de beleza) e, para denunciar que está sendo vítima de violência
doméstica, escreve um “X” com batom vermelho (ou qualquer outro material), na
palma de sua mão ou em um pedaço de papel.
Ao verificar esse sinal, as atendentes
acionam, de forma discreta, a Polícia, por meio de um canal imediato de
comunicação, a fim de que a mulher tenha a devida assistência.
Em seguida, se possível, conduz a vítima a um espaço reservado, para aguardar a chegada da Polícia. Caso não seja possível, anota-se os dados da mulher para fornecer às autoridades.
Veja os artigos da Lei que tratam
sobre o tema:
Art. 2º Fica autorizada a integração entre o Poder Executivo, o
Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública, os órgãos de
segurança pública e as entidades privadas, para a promoção e a realização do
programa Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica como medida de ajuda à
mulher vítima de violência doméstica e familiar, conforme os incisos I, V e VII
do caput do art. 8º da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006.
Parágrafo único. Os órgãos mencionados no caput deste artigo
deverão estabelecer um canal de comunicação imediata com as entidades privadas
de todo o País participantes do programa, a fim de viabilizar assistência e
segurança à vítima, a partir do momento em que houver sido efetuada a denúncia
por meio do código “sinal em formato de X”, preferencialmente feito na mão e na
cor vermelha.
Art. 3º A identificação do código referido no parágrafo único do
art. 2º desta Lei poderá ser feita pela vítima pessoalmente em repartições
públicas e entidades privadas de todo o País e, para isso, deverão ser
realizadas campanha informativa e capacitação permanente dos profissionais
pertencentes ao programa, conforme dispõe o inciso VII do caput do art. 8º da
Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para encaminhamento
da vítima ao atendimento especializado na localidade.
Vale ressaltar que, mesmo antes
da Lei nº 14.188/2021, esse programa já havia sido lançado pelo Conselho Nacional
de Justiça (CNJ) em junho de 2020.
No site do CNJ há cartilhas
explicando o programa que já conta com inúmeras empresas participantes.
NOVA QUALIFICADORA PARA A LESÃO CORPORAL SIMPLES COMETIDA
CONTRA A MULHER
No art. 129 do Código Penal existem diferentes formas de lesão corporal:
LESÃO CORPORAL (art. 129) |
DOLOSA |
Leve (caput e § 9º) Art. 129. Ofender a integridade
corporal ou a saúde de outrem: Pena - detenção, de três meses a um
ano. Obs: pode ser aplicada a substituição do
§ 5º. Obs2: a lesão corporal leve praticada
com violência doméstica era punida no art. 129, § 9º, conforme veremos mais
abaixo. |
Grave (§ 1º) § 1º Se resulta: I - Incapacidade para as ocupações
habituais, por mais de trinta dias; II - perigo de vida; III - debilidade permanente de membro,
sentido ou função; IV - aceleração de parto: Pena - reclusão, de um a cinco anos. Obs: pode ser aplicado o privilégio do
§ 4º. |
||
Gravíssima (§ 2º) § 2º Se resulta: I - Incapacidade permanente para o
trabalho; II - enfermidade incurável; III perda ou inutilização do membro,
sentido ou função; IV - deformidade permanente; V - aborto: Pena - reclusão, de dois a oito anos. Obs: pode ser aplicado o privilégio do
§ 4º. |
||
Seguida de morte (§ 3º) § 3º Se resulta morte e as
circunstâncias evidenciam que o agente não quís o resultado, nem assumiu o
risco de produzi-lo: Pena - reclusão, de quatro a doze anos. Obs: pode ser aplicado o privilégio do
§ 4º. |
||
CULPOSA (§ 6º) |
Lesão corporal culposa (§ 6º) § 6º Se a lesão é culposa: Pena - detenção, de dois meses a um
ano. Obs: aplicam-se os benefícios dos §§ 7º
e 8º à lesão corporal culposa. § 7º Aumenta-se a pena de 1/3 (um
terço) se ocorrer qualquer das hipóteses dos §§ 4º e 6º do art. 121 deste
Código. § 8º Aplica-se à lesão culposa o
disposto no § 5º do art. 121. |
Como tipificar uma lesão
corporal praticada em contexto de violência doméstica?
Depende:
1) Se for lesão leve:
Lesão corporal LEVE praticada em
contexto de violência doméstica |
|
Antes da Lei
14.188/2021 |
Depois da Lei
14.188/2021 |
A conduta se enquadrava no § 9º
do art. 129, não importando se a vítima fosse homem ou mulher: Violência Doméstica § 9º Se a lesão for praticada
contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem
conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações
domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena - detenção, de 3 (três)
meses a 3 (três) anos. |
Depende: 1) Se a lesão for praticada
contra a mulher, por razões da condição do sexo feminino, a conduta se
enquadra no § 13 do art. 129: § 13. Se a lesão for praticada
contra a mulher, por razões da condição do sexo feminino, nos termos do §
2º-A do art. 121 deste Código: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4
(quatro anos). 2) Nos demais casos (ex: vítima
homem): a conduta continua sendo tipificada no § 9º do art. 129 do CP. |
|
2) Se for lesão grave,
gravíssima ou seguida de morte:
Aplica-se o § 1º (grave), § 2º
(gravíssima) ou o § 3º (lesão seguida de morte) cumulada com a causa de aumento
de pena do § 10:
Art. 129 (...)
§ 10. Nos casos previstos nos §§ 1º a 3º deste artigo, se as
circunstâncias são as indicadas no § 9º deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3
(um terço).
O novo § 13 do art. 129 do
CP, inserido pela Lei nº 14.188/2021, pune apenas a lesão corporal praticada no
contexto de violência doméstica?
NÃO. Veja novamente a redação do dispositivo:
Art. 129 (...)
§ 13. Se a lesão for praticada contra a mulher, por razões da
condição do sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro anos).
O legislador
previu, no § 2º-A do art. 121, uma norma penal interpretativa, ou seja, um
dispositivo para esclarecer o que significa “razões de condição de sexo
feminino”:
Art. 121 (...)
§ 2º-A Considera-se que há “razões de condição de sexo feminino”
quando o crime envolve:
I - violência doméstica e familiar;
II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Desse modo, o novo § 13 do art.
129 do CP, inserido pela Lei nº 14.188/2021, pune duas situações distintas:
a) Lesão corporal praticada contra
mulher no contexto de violência doméstica e familiar;
b) Lesão corporal praticada
contra mulher em razão de menosprezo ou discriminação ao seu gênero.
a) Lesão corporal praticada contra
mulher no contexto de violência doméstica e familiar
É preciso contextualizar o tema e
buscar a interpretação sistemática, socorrendo-se da definição de “violência
doméstica e familiar” encontrada no art. 5º da Lei n.° 11.340/2006 (Lei Maria da
Penha), que assim a conceitua:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica
e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte,
lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço
de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as
esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade
formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços
naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor
conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Desse modo, conclui-se que, mesmo
no caso de lesão corporal praticada no contexto de violência doméstica e
familiar, será indispensável que o crime envolva o gênero (“razões de condição
de sexo feminino”).
Ex.1: marido que pratica lesão
corporal contra a mulher porque acha que ela não tem “direito” de se separar
dele.
Ex.2: companheiro que pratica lesão corporal contra a sua companheira porque quando chegou em casa o jantar não estava pronto.
Por outro lado, ainda que a
violência aconteça no ambiente doméstico ou familiar e mesmo que tenha a mulher
como vítima, não se aplicará o art. 129, § 13 do CP se não
existir, no caso concreto, uma motivação baseada no gênero (“razões de condição
de sexo feminino”). Ex: duas irmãs, que vivem na mesma casa, disputam a herança
do pai falecido; determinado dia, durante uma discussão sobre a herança, uma delas
pratica lesão corporal contra a outra; esse crime foi cometido com violência
doméstica, já que envolveu duas pessoas que tinha relação íntima de afeto, mas
não se aplicará o § 13 do art. 129 porque não foi uma lesão baseada no gênero
(não houve violência de gênero, menosprezo à condição de mulher), tendo a
motivação do delito sido meramente patrimonial.
É o que se extrai da
jurisprudência do STJ:
(...) 1. Nos termos do art. 4º da Lei Maria da Penha, ao se
interpretar a referida norma, deve-se levar em conta os fins sociais buscados
pelo legislador, conferindo à norma um significado que a insira no contexto em
que foi concebida. Esta Corte possui entendimento jurisprudencial no sentido de
que a Lei n. 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, objetiva proteger a
mulher da violência doméstica e familiar que lhe cause morte, lesão, sofrimento
físico, sexual ou psicológico, e dano moral ou patrimonial, desde que o crime
seja cometido no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação
íntima de afeto (AgRg no REsp n. 1.427.927/RJ, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO,
Quinta Turma, julgado em 20/3/2014, DJe 28/3/2014).
2. Nesse contexto, é de se ter claro que a própria Lei n. 11.340/2006,
ao criar mecanismos específicos para coibir e prevenir a violência doméstica
praticada contra a mulher, buscando a igualdade substantiva entre os gêneros,
fundou-se justamente na indiscutível desproporcionalidade física existente
entre os gêneros, no histórico discriminatório e na cultura vigente. Ou seja, a
fragilidade da mulher, sua hipossuficiência ou vulnerabilidade, na verdade, são
os fundamentos que levaram o legislador a conferir proteção especial à mulher.
3. A jurisprudência desta Corte Superior orienta-se no sentido
de que, para que a competência dos Juizados Especiais de Violência Doméstica
seja firmada, não
basta que o crime seja praticado contra mulher no âmbito doméstico ou familiar,
exigindo-se que a motivação do acusado seja de gênero, ou que a vulnerabilidade
da ofendida seja decorrente da sua condição de mulher. Na hipótese dos
autos, entretanto, a Corte de origem asseverou que a lesão praticada contra a
vítima, pelo ora recorrido, não se encontra abrangida pelo artigo 5° da Lei
Maria da Penha, uma vez que a agressão originou em razão de uma discussão
relacionada ao fato da motocicleta do namorado da vítima estar na garagem da
residência do acusado e pelo fato do autor não aprovar o relacionamento amoroso
da ofendida. E acrescentou, ainda, que in casu, verifica-se que a
prática do crime de lesão corporal não decorre da existência de uma relação de
domínio/subordinação do acusado para com a vítima no ambiente familiar,
condição sine qua non aplicação da citada norma. Mas, sim, pelo fato do
acusado não aceitar o relacionamento da vítima com a testemunha Givanildo. (...)
STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 1700026/GO, Rel. Min. Reynaldo
Soares da Fonseca, julgado em 03/11/2020.
b) Menosprezo ou discriminação à condição
de mulher
Para ser enquadrado neste inciso,
é necessário que, além de a vítima ser mulher, fique caracterizado que o crime foi
motivado ou está relacionado com o menosprezo ou discriminação à condição de
mulher.
Ex: funcionário de uma empresa
que pratica lesão corporal contra a sua colega de trabalho em virtude de ela
ter conseguido a promoção em detrimento dele, já que, em sua visão, ela, por
ser mulher, não estaria capacitada para a função.
Na hipótese de concurso de
pessoas, essa qualificadora do art. 129, § 13 do CP, se comunica aos demais
agentes?
SIM. Pelo fato de o § 13 do art.
129 do CP guardar relação com a condição da vítima (lesão for praticada contra
a mulher, por razões da condição do sexo feminino), trata-se de qualificadora
de natureza objetiva (ou seja, ligada ao fato praticado).
Perceba que a qualificadora não
está relacionada a aspectos pessoais ou individuais do agente delituoso. Daí
não se falar de qualificadora de natureza subjetiva.
Aliás, o STJ já teve a
oportunidade de se debruçar sobre o tema quando analisou a qualificadora do
feminicídio, podendo o raciocínio ali desenvolvido ser aplicado aqui:
Nos termos do art. 121, § 2º-A, II, do CP, é devida a incidência
da qualificadora do feminicídio nos casos em que o delito é praticado contra
mulher em situação de violência doméstica e familiar, possuindo, portanto,
natureza de ordem objetiva, o que dispensa a análise do animus do
agente. Assim, não há se falar em ocorrência de bis in idem no reconhecimento
das qualificadoras do motivo torpe e do feminicídio, porquanto, a primeira tem
natureza subjetiva e a segunda objetiva.
STJ. 6ª Turma.
HC 433.898/RS, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 24/04/2018.
No mesmo sentido acima, em decisão monocrática, o Min. Felix
Fischer observou com detalhes:
“Isso porque a
natureza do motivo torpe é subjetiva, porquanto de caráter pessoal, enquanto o
feminicídio possui natureza objetiva, pois incide nos crimes praticados contra
a mulher por razão do seu gênero feminino e/ou sempre que o crime estiver
atrelado à violência doméstica e familiar propriamente dita, assim o animus do
agente não é objeto de análise.” (STJ. REsp 1707113, Rel. Min. Felix Fischer,
julgado em 29/11/2017)
Comunica-se, portanto, a
qualificadora de natureza objetiva do art. 129, § 13, do CP, aos demais
agentes.
NOVO CRIME DE VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA A MULHER
A Lei nº 14.188/2021 acrescentou
um novo crime no art. 147-B do Código Penal: o delito de violência psicológica
contra a mulher.
A violência psicológica não
era prevista como crime antes da Lei nº 14.188/2021?
A Lei Maria da Penha (Lei nº
11.340/2006), desde a sua edição, previu que a violência doméstica e familiar
contra a mulher não é apenas a violência física, podendo também ser violência
psicológica, sexual, patrimonial e moral.
Nesse sentido, veja o que diz o
art. 7º, II, da Lei nº 11.340/2006:
Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a
mulher, entre outras:
(...)
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta
que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e
perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações,
comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição
contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização,
exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe
cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
A despeito disso, não havia um tipo penal específico para
punir o agente que causasse violência psicológica contra a mulher. Essa situação
gerava, em alguns casos, uma proteção deficiente para a mulher, conforme
observaram Valéria Diez Scarance Fernandes, Thiago Pierobom de Ávila e Rogério
Sanches Cunha:
“Embora a Lei
Maria da Penha contemple a violência psicológica no art. 7º, inc. II, até a
entrada em vigor da Lei n. 14.188/2021 não havia no ordenamento jurídico
brasileiro um tipo penal correspondente. Era contraditório constar
expressamente essa forma de violência em uma das leis mais conhecidas e
importantes do país, que a define como uma “violação dos direitos humanos”
(art. 6º) e, ao mesmo tempo, a conduta correspondente não configurar
necessariamente um ilícito penal. Diversas condutas consistentes em violência
psicológica – como manipulação, humilhação, ridicularização, rebaixamento,
vigilância, isolamento – não configuravam, na imensa maioria dos casos,
infração penal. Apesar de serem ilícitos civis, não configuravam crime. Não
raras vezes, vítimas compareciam perante autoridades para registrar boletins de
ocorrência por violência psicológica e eram informadas de que a conduta não
configurava infração penal (sequer contravenção).
A ausência de
tipificação também dificultava o deferimento de medidas protetivas de urgência,
pois, embora os tribunais superiores e o art. 24-A da Lei Maria da Penha
permitam a medida protetiva civil autônoma, ainda há, lamentavelmente, muita
resistência em se conceder instrumentos de proteção divorciados da infração
penal, de um registro de boletim de ocorrência ou procedimento criminal.
Com a inserção
do art. 147-B no Código Penal, essa lacuna é preenchida e passa a ser crime
praticar violência psicológica contra a mulher.
(...)” (FERNANDES,
Valéria Diez Scarance. ÁVILA, Thiago Pierobom de; CUNHA, Rogério Sanches. Violência
psicológica contra a mulher: comentários à Lei n. 14.188/2021. Disponível em: https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2021/07/29/comentarios-lei-n-14-1882021/)
Veja abaixo a redação do novo tipo penal:
Violência
psicológica contra a mulher
Art.
147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno
desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações,
comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do
direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde
psicológica e autodeterminação:
Pena -
reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não
constitui crime mais grave.
Em que consiste o crime:
- Causar dano emocional à mulher
que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento; ou
- Causar dano emocional à mulher com o objetivo de degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões.
Esse dano emocional pode ser
praticado, exemplificativamente, por meio de:
·
ameaça;
·
constrangimento;
·
humilhação;
·
manipulação;
·
isolamento;
·
chantagem;
·
ridicularização;
·
limitação do direito de ir e vir; ou
·
qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e
autodeterminação.
Sujeito ativo
Trata-se de crime comum, podendo
ser praticado por qualquer pessoa (homem ou mulher).
Sujeito passivo
Consiste em crime próprio, tendo
em vista que a vítima deve ser mulher (criança, adulta, idosa, desde que do
sexo feminino).
Prevalece na doutrina e jurisprudência
que a Lei Maria da Penha pode ser aplicada para a mulher transgênero, ainda que
não tenha se submetido a cirurgia de redesignação sexual. Logo, a mulher
transgênero pode ser vítima desse crime.
Elemento subjetivo
O crime é punido a título de dolo.
Vale ressaltar, contudo, que o
dolo do agente está ligado às condutas (ameaça, constrangimento, humilhação,
manipulação etc.).
Em outras palavras, não se exige
que o agente queira causar “dano emocional” à vítima. Exige-se que ele pratique
alguma das condutas acima listadas com consciência e vontade.
Importante ressaltar ainda que o
art. 147-B, ao contrário do feminicídio (art. 121, § 2º, VI) e da lesão corporal
do § 13 do art. 129, não exige expressamente que o crime de violência
psicológica tenha sido cometido “por razões da condição do sexo feminino”.
Tipo misto alternativo:
Trata-se de tipo misto alternativo, ou seja, o
legislador descreveu várias condutas (verbos), porém, se o sujeito praticar
mais de um verbo, no mesmo contexto fático e contra o mesmo objeto material,
responderá por um único crime, não havendo concurso de crimes nesse caso.
Consumação
O crime se consuma com a
provocação do dano emocional à vítima. É o que se extrai da locução “causar
dano emocional à mulher”. Trata-se, portanto, de crime material, que exige um
resultado naturalístico.
A tentativa, em tese, é possível,
no entanto, é improvável de ocorrer na prática.
Não se trata de crime
habitual
É muito comum que a violência
psicológica seja praticada mediante reiterados atos. A pessoa humilha em um
dia, pede desculpas no outro, volta a humilhar em seguida e assim por diante.
Vale ressaltar, contudo, que,
para configurar o crime, não se exige reiteração de condutas. Não se trata de
crime habitual.
Desse modo, é possível que o
agente uma única oportunidade, pratique ameaças, constrangimento e humilhação contra
a mulher, causando-lhe dano emocional. A partir desse dia, a mulher decide se
afastar do agressor. O crime, contudo, já terá se consumado.
Violência psicológica x
lesão corporal
Rogério Sanches defende que, se a
violência psicológica resultar em lesão à saúde psicológica da vítima, comprovada
por exame e demonstrado nexo de causalidade (indicando o respectivo CID),
haverá o crime de lesões corporais, que poderá ser leve (art. 129, § 13) ou até
grave, quando, por exemplo, causar a incapacidade da vítima para exercer suas
ocupações habituais por mais de trinta dias (art. 129, § 1º, I, do CP). Também
haverá lesão grave se a doença psicológica gerar pensamentos suicidas, diante
do risco à vida (FERNANDES, Valéria Diez Scarance. ÁVILA, Thiago Pierobom de;
CUNHA, Rogério Sanches. Violência
psicológica contra a mulher: comentários à Lei n. 14.188/2021. Disponível em: https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2021/07/29/comentarios-lei-n-14-1882021/)
Desnecessidade de perícia
A despeito de se tratar de crime
material, penso que não é indispensável a realização de perícia, podendo o dano
emocional ser comprovado por intermédio do depoimento da vítima e da prova
testemunhal, além de eventuais relatórios médicos ou psicológicos.
Vale ressaltar, ademais, que
determinadas condutas praticadas, como constrangimentos intensos, humilhações públicas
e ridicularizações reiteradas se devidamente comprovadas, acarretam, como fatos
axiomáticos, danos emocionais, não sendo necessária perícia para atestar consequências
que são intuitivas.
Ação penal
Trata-se de crime de ação penal
pública incondicionada.
Aplica-se a Lei nº 9.099/95 para o
crime do art. 147-B do CP?
Depende.
· se o
crime do art. 147-B tiver sido praticado no contexto de violência doméstica e
familiar contra a mulher, neste caso, atrairá a Lei Maria da Penha e, portanto,
não se aplicarão os benefícios da Lei nº 9.099/95:
Lei nº 9.099/95
Art. 41. Aos crimes
praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher,
independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 26 de
setembro de 1995.
Vale ressaltar que a Lei nº 9.099/95 não se aplica
nunca e para nada que se refira à lei maria da penha.
Logo, são aplicáveis ao caso as súmulas
536, 542 e 588, todas do STJ:
Súmula 536-STJ: A suspensão condicional
do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos
ao rito da Lei Maria da Penha.
Súmula 542-STJ: A ação penal relativa
ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é
pública incondicionada.
Súmula 588-STJ: A prática de crime ou
contravenção penal contra a mulher com violência ou grave ameaça no ambiente
doméstico impossibilita a substituição da pena privativa de liberdade por
restritiva de direitos.
· por outro
lado, em tese, poderão ser aplicados os benefícios da Lei nº 9.099/95 caso o
crime do art. 147-B do CP tenha sido praticado fora contexto de violência
doméstica e familiar contra a mulher.
É possível o oferecimento de acordo de
não persecução penal?
NÃO. Não é possível o acordo de não
persecução penal, por força da vedação contida no art. 28-A, § 2º, I, do CPP:
Art. 28-A (...)
§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas
seguintes hipóteses:
(...)
IV - nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou
familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo
feminino, em favor do agressor.
“Se a conduta não constitui crime mais
grave”
Há uma subsidiariedade expressa no
preceito secundário do art. 147-B do CP. Isso significa que, se a conduta
praticada puder se enquadrar em um delito mais grave, não será o crime do art. 147-B
do CP.
É o caso, por exemplo, do agente que pratica
cárcere privado contra a mulher, devendo responder pelo delito do art. 148 do
CP:
Art. 148. Privar alguém de sua liberdade, mediante sequestro ou
cárcere privado:
Pena - reclusão, de um a três anos.
Nesse ponto, deve-se tomar
cuidado com a expressão “limitação do direito de ir e vir” presente no art.
147-B do CP:
·
Se o agente implicar, reclamar e ofender a mulher todas as vezes em que ela sai
de casa, fazendo com que, para evitar discussões, ela passe a ficar somente em
casa: haverá, em tese, o crime do art. 147-B do CP.
·
Se o agente privar efetivamente a liberdade da vítima, impedindo que ela saia
de casa: o crime será o do art. 148 do CP.
Se a conduta constitui
crime menos grave, é absorvida pelo art. 147-B do CP
Algumas condutas praticadas
contra a mulher eram anteriormente punidas em tipos penais menos graves e, com
a Lei nº 14.188/2021, podem ser agora tipificadas no art. 147-B do CP. É o caso
da injúria, prevista no art. 140 do CP:
Art. 140. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o
decoro:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Se o agente ofender a dignidade ou o decoro da mulher e isso causar-lhe dano emocional, haverá o crime de violência psicológica (art. 147-B do CP).
Rogério Sanches fornece excelente
exemplo de como uma conduta que configuraria, em tese, o crime de dano (art.
163 do CP) pode ser enquadrada agora como violência psicológica:
“Da mesma
forma, o dano simples poderá ser absorvido pela violência psicológica.
Usualmente, no contexto doméstico e familiar, a conduta de destruir objetos no
interior da residência não tem por finalidade primária gerar prejuízo
patrimonial, mas sim ser uma exibição de poder e autoridade, representando a
possibilidade de dispor sobre a existência de objetos com valor emocional à
mulher (ligados à esfera privada, o locus atribuído à mulher). Não raro o dano
doméstico possui um sentido comunicativo de ameaça e constrangimento, de forma
que o comportamento agressivo significa que o ofensor tem o poder de dispor
sobre tudo que está na casa, inclusive da própria mulher, vista como um objeto
que pertence ao homem e não deve questionar sua autoridade. Especialmente se o
dano é praticado na presença da mulher, se tratará de inegável evento
estressante, com potencial de gerar danos emocionais. Nesses contextos, em
regra, o agente danifica objetos de estima da vítima, relacionados ao seu
trabalho (roupas, relatório de trabalho, utensílios) ou aos seus filhos, como
uma forma de demonstração de poder. O ataque não é patrimonial, mas à
autoestima e autonomia da mulher.” (FERNANDES, Valéria
Diez Scarance. ÁVILA, Thiago Pierobom de; CUNHA, Rogério Sanches. Violência psicológica contra
a mulher: comentários à Lei n. 14.188/2021. Disponível em: https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2021/07/29/comentarios-lei-n-14-1882021/)
Vale ressaltar, obviamente, que tais
condutas, para serem punidas como violência psicológica (art. 147-B do CP)
deverão ter sido praticadas a partir do dia 29/07/2021, data em que entrou em
vigor a Lei nº 14.188/2021, tendo em vista que se trata de novatio legis in
pejus, sendo, portanto, irretroativa.
Diferença entre o crime de perseguição (art. 147-A) e o delito de violência psicológica (art. 147-B)
PERSEGUIÇÃO CONTRA MULHER (ART. 147-A, § 1º, II) |
VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA (ART. 147-B) |
Art. 147-A. Perseguir alguém, reiteradamente e por
qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica,
restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo
ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade. Pena - reclusão, de 6 (seis)
meses a 2 (dois) anos, e multa. § 1º A pena é aumentada de
metade se o crime é cometido: (...) II – contra mulher por razões
da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código; |
Art. 147-B. Causar dano
emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou
que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e
decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou
qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e
autodeterminação: Pena - reclusão, de 6 (seis)
meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave. |
A pena é maior, em razão da
causa de aumento do § 1º, II do art. 147-A. |
A pena da violência psicológica
é menor que a do stalking praticado contra mulher por razões da
condição de sexo feminino. |
É crime de ação pública
condicionada. |
É crime de ação pública incondicionada. |
Exige uma perseguição
reiterada. Trata-se de crime habitual. |
Não exige reiteração. Não é crime habitual. |
Não se exige produção de
resultado naturalístico. Trata-se de crime formal. |
Exige a produção de resultado
naturalístico (a conduta deve causar dano emocional à mulher). Trata-se de crime material. |
Rogério Sanches ensina ainda que:
“Em tese, será
possível o concurso efetivo destes dois crimes, quando cometidos em contextos
distintos. Logo, se o casal, por exemplo, está separado, e o ofensor persegue
reiteradamente a vítima através de ameaças, que a intimidam, restringem sua
liberdade de locomoção e geram um dano emocional à vítima (sofrimento, angústia
significativos), estando presente o mesmo contexto fático, considerando que
ambos os delitos estão inseridos no mesmo título “dos crimes contra a liberdade
pessoal”, será possível que o crime mais grave (a perseguição) venha absorver o
menos grave (a violência psicológica), sendo o dano emocional avaliado na
fixação da pena base. Com a necessária atenção de que a perseguição é
condicionada à representação da vítima e a violência psicológica é
incondicionada. Caso não exercido o direito em relação ao crime de ação penal
pública condicionada, pode o Estado perseguir o crime que seria absorvido.” (FERNANDES,
Valéria Diez Scarance. ÁVILA, Thiago Pierobom de; CUNHA, Rogério Sanches. Violência psicológica contra
a mulher: comentários à Lei n. 14.188/2021. Disponível em: https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2021/07/29/comentarios-lei-n-14-1882021/)
INSERÇÃO DA INTEGRIDADE PSICOLÓGICA NO ART. 12-C DA LEI
MARIA DA PENHA
A Lei nº 14.188/2021 alterou,
ainda, o caput do art. 12-C da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).
O art. 12-C, que foi inserido na
Lei Maria da Penha pela Lei nº 13.827/2019, previa que, em caso de risco à
vida ou à integridade FÍSICA da mulher ou de seus dependentes, o agressor deveria
ser imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a
ofendida.
A Lei nº 14.188/2021 alterou a
redação para dizer que não apenas o risco à integridade física enseja a medida.
Se houver risco à integridade PSICOLÓGICA, isso também acarreta o afastamento
do agressor.
Compare:
LEI MARIA DA PENHA |
|
Antes da Lei
14.188/2021 |
Depois da Lei
14.188/2021 |
Art. 12-C. Verificada a
existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da
mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes,
o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de
convivência com a ofendida: (Incluído
pela Lei nº 13.827/2019) |
Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou
iminente à vida ou à integridade física ou psicológica da mulher em situação de violência doméstica e
familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do
lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida: (...) |
A Lei nº 14.188/2021 entrou em
vigor na data de sua publicação (29/07/2021).
Márcio André Lopes Cavalcante
Juiz Federal