Olá, amigos do Dizer o Direito,
Foi publicada hoje mais uma novidade legislativa.
Trata-se da Lei nº 14.181/2021,
que alterou o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso, para
aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e
o tratamento do superendividamento.
O que é superendividamento?
Ocorre o superendividamento quando...
- o consumidor pessoa física
- que está de boa-fé
- não consegue pagar a totalidade
de suas dívidas de consumo (exigíveis e vincendas)
- sem comprometer o seu mínimo existencial.
Conforme ensinava há muitos anos a Prof. Cláudia Lima Marques, o superendividamento é um fenômeno muito comum no Brasil e que necessitava “algum tipo de saída ou solução pelo Direito do Consumidor, a exemplo do que aconteceu com a falência e concordata no Direito da Empresa, seja o parcelamento, os prazos de graça, a redução dos montantes, dos juros, das taxas, e todas as demais soluções possíveis para que possa pagar ou adimplir todas ou quase todas as suas dívidas, frente a todos os credores, fortes e fracos, com garantias ou não. Estas soluções, que vão desde a informação e controle da publicidade, direito de arrependimento, para prevenir o superendividamento, assim como para tratá-lo, são fruto dos deveres de informação, cuidado e principalmente de cooperação e lealdade oriundas da boa-fé para evitar a ruína do parceiro (exceção da ruína), que seria esta sua 'morte civil', exclusão do mercado de consumo ou sua 'falência' civil com o superendividamento.” (MARQUES, Cláudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. Revista de Direito do Consumidor. 55/11-52, p. 12, São Paulo, RT, jul-set. 2005).
A Lei nº 14.181/2021 é fruto de todos esses anos de pesquisa e discussão sobre o tema. Vale ressaltar que, não se pode falar a respeito desse assunto no Brasil sem mencionar os inúmeros trabalhos e pesquisas desenvolvidos pela Prof. Cláudia Lima Marques.
O superendividamento está diretamente relacionado com o mínimo
existencial do indivíduo, conforme explicam Pablo Stolze e Carlos Eduardo Elias
de Oliveira:
“O
superendividamento contém traços de uma morte civil social. O indivíduo com o
“nome sujo” e sem margem de crédito tende ao ostracismo. Não consegue montar
novos negócios. Enfrenta estigmas ao buscar emprego. Sujeita-se a viver “de
favor”. Enfim, o superendividamento pode levar o indivíduo a um estado de
desesperança e, nas palavras de Raul Seixas, na música Ouro de Tolo, ficar
sentado ‘no trono de um apartamento, com a boca escancarada cheia de dentes,
esperando a morte chegar’.
O motivo é que
o superendividamento fulmina o mínimo existencial do indivíduo.” (GAGLIANO,
Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Comentários à Lei do Superendividamento
(Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021) e o princípio do crédito responsável.
Uma primeira análise. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26,
n. 6575, 2 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91675. Acesso em:
2 jul. 2021).
ALTERAÇÕES NOS PRINCÍPIOS, INSTRUMENTOS, DIREITOS E CLÁUSULAS ABUSIVAS DO CDC
1) Inserção
de três novos princípios no CDC
O art. 4º elenca os princípios da
defesa do consumidor.
Conforme explica Leonardo Garcia:
“O artigo 4º é um dos artigos mais importantes do código
consumerista. Isso porque traz os objetivos a serem perseguidos pela política
de proteção ao consumidor, assim como enumera os princípios que deverão ser
observados na busca de tais objetivos.
(...)
Segundo o Professor Eros Roberto
Grau, as normas enumeradas no art. 4º são consideradas “normas objetivos”:
possuindo um papel fundamental, uma vez que condicionam a interpretação a ser
feita pelo código. Uma vez que o artigo enumera objetivos a serem perseguidos,
seja através de políticas públicas, seja através da atuação do fornecedor e do
próprio consumidor, e também princípios a serem aplicados, as demais normas
devem ser interpretadas finalisticamente, visando a busca destes objetivos
(resultados).” (GARCIA, Leonardo de Medeiros. Código de Defesa do Consumidor
comentado. 13ª ed., Salvador: Juspodivm, 2017, p. 56-57).
O art. 4º trazia oito “princípios” e a Lei nº 14.181/2021 acrescentou
dois incisos prevendo novos princípios:
Art.
4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento
das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e
segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua
qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo,
atendidos os seguintes princípios:
(...)
IX - fomento
de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores;
X - prevenção
e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do
consumidor.
Desse modo, agora temos novos
“princípios” de defesa do consumidor:
·
educação financeira dos consumidores;
• educação ambiental dos
consumidores;
·
prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão
social do consumidor.
2)
Inserção de dois novos instrumentos da Política Nacional das Relações de
Consumo
O art. 5º previa cinco
instrumentos utilizados para se executar a Política Nacional das Relações de
Consumo.
A Lei nº 14.181/2021 acrescentou dois novos instrumentos ao
rol:
Art. 5º Para
a execução da Política Nacional das Relações de Consumo, contará o poder
público com os seguintes instrumentos, entre outros:
(...)
VI
- instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial
do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa natural;
VII
- instituição de núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de
superendividamento.
3)
Inserção de três novos direitos básicos do consumidor
O art. 6º do CDC elenca, em seus
incisos, uma lista de direitos básicos do consumidor.
A Lei nº 14.181/2021 acrescentou três novos direitos ao rol:
Art. 6º São
direitos básicos do consumidor:
(...)
XI
- a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de
prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo
existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação
da dívida, entre outras medidas;
XII
- a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na
repactuação de dívidas e na concessão de crédito;
XIII
- a informação acerca dos preços dos produtos por unidade de medida, tal como
por quilo, por litro, por metro ou por outra unidade, conforme o caso.
4)
Inserção de duas novas cláusulas abusivas
O art. 51 do CDC prevê um rol
exemplificativo de cláusulas que são consideradas abusivas.
A Lei nº 14.181/2021 acrescentou dois novos incisos, nos
seguintes termos:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas
contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
(...)
XVII
- condicionem ou limitem de qualquer forma o acesso aos órgãos do Poder
Judiciário;
XVIII
- estabeleçam prazos de carência em caso de impontualidade das prestações
mensais ou impeçam o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de
seus meios de pagamento a partir da purgação da mora ou do acordo com os
credores;
PREVENÇÃO E TRATAMENTO DO SUPERENDIVIDAMENTO
A Lei nº 14.181/2021 acrescentou
um novo capítulo com seis artigos no CDC.
Capítulo VI-A
O novo Capítulo VI-A, inserido
dentro da Seção III (Contratos de Adesão) dispõe sobre:
·
prevenção do superendividamento da pessoa natural;
·
crédito responsável e
·
educação financeira do consumidor.
O que é superendividamento?
Segundo o § 1º do novo art. 54-A
do CDC, ocorre o superendividamento quando...
- o consumidor pessoa física
- que está de boa-fé
- não consegue pagar a totalidade
de suas dívidas de consumo (exigíveis e vincendas)
- sem comprometer o seu mínimo existencial.
A definição dada pela doutrina é próxima daquela que foi
acolhida pelo legislador:
“O
superendividamento pode ser definido como impossibilidade global do
devedor-pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas
dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco, oriundas
de delitos e alimentos) em um tempo razoável com sua capacidade atual de rendas
e patrimônio.” (MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM,
Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3ª ed. São Paulo: RT,
2010, p. 1.051).
“O
superendividado é sempre um consumidor, adotando-se para este fim um conceito
ainda mais restrito do que o estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor,
visto que não se concede a tutela à pessoa jurídica. Trata-se, portanto, da
pessoa física que contrata a concessão de crédito, destinado à aquisição de
produtos ou serviço que, por sua vez, visam atender a uma necessidade pessoal,
nunca profissional do adquirente. A mais importante característica refere-se à
condição pessoal do consumidor, que deve agir de boa-fé.” (CARPENA, Heloísa.
CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Superendividamento: proposta para um estudo
empírico e perspectiva de regulação. In: CAVALLAZZI, Rosângela Lurnadelli.
MARQUES, Cláudia Lima (Org.). Direitos do consumidor endividado:
superendividamento e crédito. São Paulo. RT, 2006, Cap. 11, p. 329).
ý (Defensor Público DPE/PR FCC 2017) O superendividamento
é fenômeno contemporâneo que atinge a sociedade de consumo de massa. As dívidas
fiscais, especialmente em época de crise econômica, são o principal
passivo que impedem o consumidor de adimplir com as suas obrigações, dando
origem ao superendividamento. (errado)
Situações nas quais não se aplicam as regras de proteção do
superendividamento (§ 3º do art. 54-A)
As normas protetivas previstas nos arts. 54-A a 54-G do CDC não se
aplicam se as dívidas do consumidor:
a) tiverem sido contraídas mediante fraude ou má-fé;
b) forem oriundas de
contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento;
c) decorrerem da aquisição ou contratação de produtos e serviços de
luxo de alto valor.
Segundo a lição da Profa. Maria Manuel Leitão Marques, citada
por Leonardo Garcia, existem duas espécies de superendividado (Direito do
Consumidor. 14ª ed., Salvador: Juspodivm, 2020, p. 394). Veja o quadro abaixo
no qual foram utilizadas as palavras de Leonardo Garcia:
SUPERENDIVIDADO |
|
ATIVO |
PASSIVO |
É aquele consumidor que se
endivida voluntariamente. Esta categoria se divide em
duas subespécies: a) superendividado ativo
consciente: é aquele que, de má-fé, contrai dívidas convicto de que não
poderá pagá-las, com intenção deliberada de fraudar os credores. b) superendividado ativo inconsciente:
é aquele que agiu impulsivamente, de maneira imprevidente e sem malícia,
deixando de fiscalizar seus gastos. |
O superendividado passivo é
aquele que se endivida em decorrência de fatores externos chamados de “acidentes
da vida”, tais como desemprego; divórcio; nascimento, doença ou morte na
família; necessidade de empréstimos; redução do salário; etc. |
þ (Defensor Público DPE/AP FCC 2018) O consumidor que se
superendivida por questões alheias ao seu controle, mesmo tendo sido prudente
ao realizar suas relações de consumo, atento à sua possibilidade de pagamento,
denomina-se, doutrinária e jurisprudencialmente de superendividado:
a) fortuito
b) ativo
c) passivo
d) ocasional
e) acidental
Letra C
þ (Promotor MP/MG 2012) O superendividamento passivo
decorre de fatos inesperados que oneram excessivamente a situação econômica do
devedor observado certos acidentes da vida (desemprego, morte, divórcio etc.);
o superendividamento ativo decorre de abusos intencionais do consumidor
(conscientemente) ou porque iludido pelo sistema de marketing que o leva a
contratar de forma reiterada (inconscientemente). (certo)
Repare que os dispositivos
inseridos no CDC pela Lei nº 14.181/2021 não protegem o superendividado ativo
consciente. Somente recebem a proteção o superendividado ativo inconsciente e o
superendividado passivo.
Produtos e serviços de luxo de
alto valor
Conforme vimos acima, o § 3º do
art. 54-A não confere proteção do superendividamento caso este tenha decorrido
de dívidas relacionados com a aquisição ou contratação de produtos e serviços
de luxo de alto valor.
Trata-se de aplicação, pela lei,
do “princípio da proteção simplificada do luxo”, “segundo o qual o Direito
protege situações de luxo sem o mesmo prestígio de situações essenciais ou
úteis. Esse conceito está atrelado ao conceito de paradigma da essencialidade,
revelado pela Professora Teresa Negreiros. Segundo a jurista carioca, os
direitos devem ser classificados quanto à essencialidade em direitos
essenciais, direitos úteis e direitos supérfluos. Quanto menor for o grau de
essencialidade do direito, menor deve ser a intervenção do Direito. Esse
princípio guia também a proteção dada aos casos de superendividamento. O
intervencionismo estatal em favor de quem está em situação de
superendividamento não deve alcançar casos oriundos de aquisição de produtos de
luxo de alto valor, mesmo no caso de consumo. Quem, por exemplo, endivida-se
por adquirir um veículo luxuoso de altíssimo valor não pode, posteriormente,
invocar as ferramentas interventivas da Lei do Superendividamento. Sobram-lhe,
apenas, as proteções gerais do Direito, sem prestígios interventivos. A própria
Lei de Superendividamento é expressa nesse sentido (art. 54-A, § 3º, CDC).” (GAGLIANO,
Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Comentários à Lei do Superendividamento
(Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021) e o princípio do crédito responsável.
Uma primeira análise. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26,
n. 6575, 2 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91675. Acesso em:
2 jul. 2021).
Informações adicionais que
devem ser prestadas no fornecimento de crédito e na venda a prazo
O art. 52 do CDC prevê
informações que deverão ser obrigatoriamente prestadas pelo fornecedor quando o
contrato envolver relação de crédito ou de financiamento. Veja:
Art. 52. No fornecimento de produtos ou serviços que envolva
outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor
deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre:
I - preço do produto ou serviço em moeda corrente nacional;
II - montante dos juros de mora e da taxa efetiva anual de
juros;
III - acréscimos legalmente previstos;
IV - número e periodicidade das prestações;
V - soma total a pagar, com e sem financiamento.
A Lei nº 14.181/2021 inseriu o art. 54-B exigindo informações
adicionais para os contratos que envolvam fornecimento de crédito ou venda a
prazo:
Art. 54-B. No
fornecimento de crédito e na venda a prazo, além das informações obrigatórias
previstas no art. 52 deste Código e na legislação aplicável à matéria, o fornecedor
ou o intermediário deverá informar o consumidor, prévia e adequadamente, no
momento da oferta, sobre:
I - o custo
efetivo total e a descrição dos elementos que o compõem;
II - a taxa
efetiva mensal de juros, bem como a taxa dos juros de mora e o total de
encargos, de qualquer natureza, previstos para o atraso no pagamento;
III - o
montante das prestações e o prazo de validade da oferta, que deve ser, no
mínimo, de 2 (dois) dias;
IV - o nome e
o endereço, inclusive o eletrônico, do fornecedor;
V - o direito
do consumidor à liquidação antecipada e não onerosa do débito, nos termos do §
2º do art. 52 deste Código e da regulamentação em vigor.
§ 1º As
informações referidas no art. 52 deste Código e no caput deste artigo devem
constar de forma clara e resumida do próprio contrato, da fatura ou de
instrumento apartado, de fácil acesso ao consumidor.
§ 2º Para
efeitos deste Código, o custo efetivo total da operação de crédito ao
consumidor consistirá em taxa percentual anual e compreenderá todos os valores
cobrados do consumidor, sem prejuízo do cálculo padronizado pela autoridade
reguladora do sistema financeiro.
§ 3º Sem
prejuízo do disposto no art. 37 deste Código, a oferta de crédito ao consumidor
e a oferta de venda a prazo, ou a fatura mensal, conforme o caso, devem
indicar, no mínimo, o custo efetivo total, o agente financiador e a soma total
a pagar, com e sem financiamento.
Novas
proibições na oferta de crédito ao consumidor (novo art. 54-C)
É vedado,
expressa ou implicitamente, na oferta de crédito ao consumidor, publicitária ou
não:
a) indicar que a operação de crédito poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor;
b) ocultar ou dificultar a compreensão sobre os ônus e os riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo;
c) assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio;
d) condicionar o atendimento de pretensões do consumidor ou o início de tratativas à renúncia ou à desistência de demandas judiciais, ao pagamento de honorários advocatícios ou a depósitos judiciais.
Novos deveres prévios do
fornecedor voltados à contratação consciente de crédito (art. 54-D)
Na oferta de
crédito, antes da contratação, o fornecedor ou o intermediário deverá:
I - informar
e esclarecer adequadamente o consumidor, considerada sua idade, sobre a
natureza e a modalidade do crédito oferecido, todos os custos incidentes e as
consequências genéricas e específicas que eles sofrerá em caso de inadimplemento;
II - avaliar,
de forma responsável, as condições de crédito do consumidor, mediante análise
das informações disponíveis em bancos de dados de proteção ao crédito,
observado o disposto neste Código e na legislação sobre proteção de dados;
III - informar a identidade do
agente financiador e entregar ao consumidor, ao garante e a outros coobrigados
cópia do contrato de crédito.
O que acontece caso o
fornecedor descumpra seus deveres de informação (art. 54-D, parágrafo único)?
O descumprimento dos deveres
previstos nos arts. 52, 54-C e 54-D poderá acarretar judicialmente:
a) a redução dos juros, dos
encargos ou de qualquer acréscimo ao principal; e
b) a dilação do prazo de
pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do
fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor;
c) o pagamento de indenização por
danos patrimoniais e morais ao consumidor;
d) outras sanções previstas na
legislação consumerista (ex: multa imposta pelo PROCON).
Hipóteses em que o contrato
de fornecimento de produto ou serviço será considerado conexo, coligado ou
interdependente em relação ao contrato de crédito (art. 54-F)
Veja a redação do art. 54-F:
Art.
54-F. São conexos, coligados ou interdependentes, entre outros, o contrato
principal de fornecimento de produto ou serviço e os contratos acessórios de
crédito que lhe garantam o financiamento quando o fornecedor de crédito:
I
- recorrer aos serviços do fornecedor de produto ou serviço para a preparação
ou a conclusão do contrato de crédito;
II
- oferecer o crédito no local da atividade empresarial do fornecedor de produto
ou serviço financiado ou onde o contrato principal for celebrado.
Existe divergência na doutrina se contratos conexos, coligados ou interdependentes seriam espécies distintas ou expressões sinônimas. Para evitar qualquer discussão nesse sentido, o legislador optou por incluir os três no dispositivo.
Para Carlos Roberto Gonçalves, contratos coligados são aqueles que, embora distintos, estão ligados por uma cláusula acessória, implícita ou explícita.
Nos contratos coligados, as partes celebram uma pluralidade de negócios jurídicos tendo por desiderato um conjunto econômico, criando entre eles efetiva dependência.
Conforme explica Daniel Carnacchioni:
“Nos contratos
coligados ou conexos, há a agregação de vários negócios para a viabilização de
uma operação econômica.
(...)
Nos contratos
coligados estes são desejados como um todo, pois isoladamente
cada contrato não viabilizaria o interesse dos contratantes. Os
contratos condicionam-se reciprocamente em sua
existência e validade e, agregados, formam uma unidade
econômica.” (Manual de Direito Civil. Salvador: JusPodivm, 2017, p.
843).
O contrato reputado
como sendo o principal determina as regras que deverão ser seguidas
pelos demais instrumentos negociais que a este se ajustam. Assim, por exemplo, havendo
invalidade do contrato principal (ex: compra e venda de um carro), o contrato
acessório de concessão do crédito para aquisição deste bem também deverá ser
anulado.
Consoante explica Flávio Tartuce:
“Diante do princípio da gravitação jurídica, pelo qual o acessório segue o principal, tudo o que ocorre no contrato principal repercute no acessório. Desse modo, sendo nulo o contrato principal, nulo será o acessório: sendo anulável o principal o mesmo ocorrerá com o acessório; ocorrendo prescrição da dívida do contrato principal, o contrato acessório estará extinto; e assim sucessivamente.” (TARTUCE, Flávio. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em espécie. 9ª ed. São Paulo: Método: 2014, p. 37).
Os parágrafos do art. 54-F preveem
regras nesse sentido:
Art. 54-F (...)
§ 1º O exercício do direito de arrependimento nas hipóteses
previstas neste Código, no contrato principal ou no contrato de crédito,
implica a resolução de pleno direito do contrato que lhe seja conexo.
§ 2º Nos casos dos incisos I e II do caput deste artigo, se
houver inexecução de qualquer das obrigações e deveres do fornecedor de produto
ou serviço, o consumidor poderá requerer a rescisão do contrato não cumprido
contra o fornecedor do crédito.
§ 3º O direito previsto no § 2º deste artigo caberá igualmente
ao consumidor:
I - contra o portador de cheque pós-datado emitido para
aquisição de produto ou serviço a prazo;
II - contra o administrador ou o emitente de cartão de crédito
ou similar quando o cartão de crédito ou similar e o produto ou serviço forem
fornecidos pelo mesmo fornecedor ou por entidades pertencentes a um mesmo grupo
econômico.
§ 4º A invalidade ou a ineficácia do contrato principal
implicará, de pleno direito, a do contrato de crédito que lhe seja conexo, nos
termos do caput deste artigo, ressalvado ao fornecedor do crédito o direito de
obter do fornecedor do produto ou serviço a devolução dos valores entregues,
inclusive relativamente a tributos.
Vale ressaltar que, mesmo antes
da Lei, já podiam ser encontradas, na jurisprudência do STJ, julgados aplicando
as regras que agora foram positivadas. Nesse sentido, confira esse interessante
caso:
Consumidor adquiriu veículo novo e, para pagar o carro, contratou
leasing oferecido pelo banco da própria montadora. O automóvel apresentou
vício redibitório que o tornou imprestável ao uso. O banco que realizou o
financiamento foi também considerado responsável? O contrato de leasing também foi
rescindido?
Sim. A instituição financeira vinculada à concessionária do
veículo (“banco da montadora”) possui responsabilidade solidária por vício do
produto (veículo novo defeituoso), uma vez que ela foi parte integrante da
cadeia de consumo.
Todos aqueles que participam da introdução do produto ou serviço
no mercado devem responder solidariamente por eventual defeito ou vício.
O contrato de arrendamento mercantil não foi feito de forma
independente. Ao contrário, está atrelado ao contrato de compra e venda, de
forma que é possível vislumbrar a existência de uma “operação casada”.
STJ. 3ª Turma. REsp 1379839-SP, Rel. originária Min. Nancy
Andrighi, Rel. para Acórdão Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em
11/11/2014 (Info 554).
Práticas abusivas
específicas para o fornecedor de produto ou serviço que envolva crédito
O art. 39 do CDC traz uma relação
de práticas consideradas abusivas nas relações de consumo em geral.
A Lei nº 14.181/2021 acrescentou o art. 54-G prevendo uma
nova lista de práticas abusivas, agora específicas para o fornecedor de produto
ou serviço que envolva crédito:
Art. 54-G. Sem
prejuízo do disposto no art. 39 deste Código e na legislação aplicável à
matéria, é vedado ao fornecedor de produto ou serviço que envolva crédito,
entre outras condutas:
I - realizar
ou proceder à cobrança ou ao débito em conta de qualquer quantia que houver
sido contestada pelo consumidor em compra realizada com cartão de crédito ou
similar, enquanto não for adequadamente solucionada a controvérsia, desde que o
consumidor haja notificado a administradora do cartão com antecedência de pelo
menos 10 (dez) dias contados da data de vencimento da fatura, vedada a
manutenção do valor na fatura seguinte e assegurado ao consumidor o direito de
deduzir do total da fatura o valor em disputa e efetuar o pagamento da parte
não contestada, podendo o emissor lançar como crédito em confiança o valor
idêntico ao da transação contestada que tenha sido cobrada, enquanto não
encerrada a apuração da contestação;
II - recusar
ou não entregar ao consumidor, ao garante e aos outros coobrigados cópia da
minuta do contrato principal de consumo ou do contrato de crédito, em papel ou
outro suporte duradouro, disponível e acessível, e, após a conclusão, cópia do
contrato;
III - impedir
ou dificultar, em caso de utilização fraudulenta do cartão de crédito ou
similar, que o consumidor peça e obtenha, quando aplicável, a anulação ou o
imediato bloqueio do pagamento, ou ainda a restituição dos valores
indevidamente recebidos.
No empréstimo cuja liquidação
seja feita mediante consignação em folha de pagamento, a formalização e a
entrega da cópia do contrato ou do instrumento de contratação ocorrerão após o
fornecedor do crédito obter da fonte pagadora a indicação sobre a existência de
margem consignável.
Informações adicionais no
caso de contratos de adesão
Nos contratos de adesão, o
fornecedor deve prestar ao consumidor, previamente, as informações de que
tratam o art. 52 e o art. 54-B do CDC, além de outras porventura determinadas
na legislação em vigor. Além disso, fica obrigado a entregar ao consumidor
cópia do contrato, após a sua conclusão (§ 2º do art. 54-G).
CONCILIAÇÃO NO
SUPERENDIVIDAMENTO
A Lei nº 14.181/2021 também
acrescentou três artigos (arts. 104-A, 104-B e 104-C) tratando sobre a
conciliação no superendividamento, o processo de repactuação de dívidas e o
plano de pagamentos, novidades extremamente importantes.
Processo de repactuação de
dívidas
A requerimento do consumidor
superendividado pessoa natural, o juiz poderá instaurar processo de repactuação
de dívidas.
Será, então, designada audiência
conciliatória, presidida pelo juiz ou por conciliador credenciado no juízo, com
a presença de todos os credores.
Na audiência, o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 anos, preservados o mínimo existencial, as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas.
O pedido do consumidor para
instaurara processo de repactuação:
·
não importará em declaração de insolvência civil; e
·
poderá ser repetido somente após decorrido o prazo de 2 anos, contado da
liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado, sem
prejuízo de eventual repactuação.
Dívidas que não podem ser
objeto do processo de repactuação
Estão excluídas do processo de
repactuação as seguintes dívidas:
a) oriundas de contratos
celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento;
b) provenientes de contratos de
crédito com garantia real;
c) provenientes de financiamentos
imobiliários;
d) provenientes de crédito rural.
Não comparecimento do
credor
O não comparecimento
injustificado de qualquer credor, ou de seu procurador com poderes especiais e
plenos para transigir, à audiência de conciliação acarretará:
a) a suspensão da exigibilidade
do débito;
b) a interrupção dos encargos da
mora; e
c) a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor.
Além disso, o esse credor ausente
somente irá receber após ter sido feito o pagamento dos demais credores que
compareceram à audiência conciliatória.
Sentença judicial que
homologar o plano terá eficácia de título executivo
No caso de conciliação, com
qualquer credor, a sentença judicial que homologar o acordo descreverá o plano
de pagamento da dívida e terá eficácia de título executivo e força de coisa
julgada (§ 3º do art. 104-A).
Conteúdo do plano de
pagamento
Deverão constar no plano de
pagamento:
I - medidas de dilação dos prazos
de pagamento e de redução dos encargos da dívida ou da remuneração do
fornecedor, entre outras destinadas a facilitar o pagamento da dívida;
II - referência à suspensão ou à
extinção das ações judiciais em curso;
III - data a partir da qual será
providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de
inadimplentes;
IV - condicionamento de seus
efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento
de sua situação de superendividamento.
Não havendo êxito na
conciliação (art. 104-B)
Se não houver êxito na
conciliação em relação a quaisquer credores, o juiz, a pedido do consumidor,
instaurará processo por superendividamento com a finalidade de:
·
revisão e integração dos contratos; e
· repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório.
Nesse caso, o juiz fará a citação
de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura
celebrado.
Serão considerados no processo
por superendividamento, se for o caso, os documentos e as informações prestadas
em audiência.
Prazo para credores se manifestarem
contrariamente ao plano
Depois de citados, os credores
terão o prazo de 15 dias para:
·
juntar documentos e
·
apresentar as razões pelas quais se negam a aceder (anuir) ao plano voluntário
ou se negam a renegociar.
Administrador
O juiz poderá nomear
administrador, desde que isso não onere as partes, o qual, no prazo de até 30
dias, após cumpridas as diligências eventualmente necessárias, apresentará
plano de pagamento que contemple medidas de temporização ou de atenuação dos
encargos.
Garantia mínima aos
credores no plano
O plano judicial compulsório
assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido
monetariamente por índices oficiais de preço.
Além disso, preverá a liquidação
total da dívida, após a quitação do plano de pagamento consensual, em, no máximo,
5 anos, sendo que a primeira parcela será devida no prazo máximo de 180 dias,
contado de sua homologação judicial, e o restante do saldo será devido em
parcelas mensais iguais e sucessivas (art. 104-B, § 4º).
Conciliação administrativa
Os órgãos do Sistema Nacional de
Defesa do Consumidor, como o PROCON, também podem fazer a fase conciliatória. É
a chamada conciliação administrativa, prevista no novo art. 104-C do CDC:
Art. 104-C. Compete concorrente e facultativamente aos órgãos
públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor a fase
conciliatória e preventiva do processo de repactuação de dívidas, nos moldes do
art. 104-A deste Código, no que couber, com possibilidade de o processo ser
regulado por convênios específicos celebrados entre os referidos órgãos e as
instituições credoras ou suas associações.
§ 1º Em caso de conciliação administrativa para prevenir o
superendividamento do consumidor pessoa natural, os órgãos públicos poderão
promover, nas reclamações individuais, audiência global de conciliação com
todos os credores e, em todos os casos, facilitar a elaboração de plano de
pagamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, sob a
supervisão desses órgãos, sem prejuízo das demais atividades de reeducação
financeira cabíveis.
§ 2º O acordo firmado perante os órgãos públicos de defesa do
consumidor, em caso de superendividamento do consumidor pessoa natural,
incluirá a data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de
bancos de dados e de cadastros de inadimplentes, bem como o condicionamento de
seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no
agravamento de sua situação de superendividamento, especialmente a de contrair
novas dívidas.
ALTERAÇÃO NO CRIME DO ART. 96
DO ESTATUTO DO IDOSO
O Estatuto do Idoso (Lei nº
10.741/2003) prevê o seguinte delito:
Art. 96. Discriminar pessoa idosa, impedindo ou dificultando seu
acesso a operações bancárias, aos meios de transporte, ao direito de contratar
ou por qualquer outro meio ou instrumento necessário ao exercício da cidadania,
por motivo de idade:
Pena – reclusão de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa.
A Lei nº 14.181/2021 acrescentou
uma causa excludente de tipicidade no § 3º:
Art. 96. (...)
§ 3º Não constitui
crime a negativa de crédito motivada por superendividamento do idoso.
VIGÊNCIA E EFICÁCIA
A Lei nº 14.181/2021 entrou em
vigor na data de sua publicação (02/07/2021).
Quanto à validade, Lei nova não
se aplica para os negócios e atos ocorridos antes da sua vigência.
Por outro lado, a Lei nova já
rege os efeitos produzidos após a sua entrada em vigor.
É o que prevê expressamente o art. 3º da norma:
Art. 3º A
validade dos negócios e dos demais atos jurídicos de crédito em curso
constituídos antes da entrada em vigor desta Lei obedece ao disposto em lei
anterior, mas os efeitos produzidos após a entrada em vigor desta Lei
subordinam-se aos seus preceitos.
Márcio André Lopes Cavalcante
Professor. Juiz Federal